Eleitor faz biometria antes de votar: sentimento das urnas em 2018 enfrentou choque de realidade dois anos depois.| Foto: Arquivo/Gazeta do Povo
Ouça este conteúdo

As eleições de 2018 foram marcadas pela defesa da chamada “nova política”. O presidente Jair Bolsonaro foi eleito utilizando-se desse lema e se colocando como alguém contra o establishment e o status quo. Seu partido à época, o então desconhecido PSL, elegeu 52 deputados sob esse mantra. Outros outsiders – como o governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel (PSC), e o governador de Santa Catarina, Carlos Moisés (PSL) – também surfaram na onda da luta contra a "velha política".

Dois anos depois, porém, Bolsonaro migrou para o presidencialismo de coalizão que ele criticou na campanha. Witzel e Moisés são alvo de processos de impeachment – o primeiro foi afastado suspeito de integrar uma organização criminosa responsável por desviar recursos destinados ao combate da Covid-19; o segundo, depende de parecer favorável de uma Comissão Julgadora Mista para manter-se no cargo. A bancada do PSL no Congresso rachou: metade mantém seus ideais; a outra rendeu-se ao jogo político típico de Brasília.

CARREGANDO :)

Diante desse cenário, cabe a pergunta: afinal de contas, dois anos após sacudir o cenário político nacional, o que aconteceu com nova política?

Publicidade

Políticos e especialistas dizem que "nova política" só foi um slogan eleitoral

Líderes partidários e especialistas apontam que, até o momento, a “nova política” não passou de um bom slogan de campanha por um simples motivo: nem Bolsonaro, nem outros artífices dela conseguiram instituir um modelo que pudesse substituir o sistema político tradicional. Eles até tentaram, mas acabaram vencidos pelas circunstâncias. Integrantes de partidos como o PP, DEM, MDB, PSC, Republicanos e até do PT afirmam que “a realidade se impôs” – o que, para esses líderes, não necessariamente deve ser visto de forma negativa.

Analistas políticos também veem o discurso da nova política como algo mais eleitoral do que efetivo. “Aquela proposta de ‘nova política’, na minha visão, foi mais um argumento de campanha. Bolsonaro passou 28 anos na Câmara e ele sabe como as coisas funcionam dentro do Congresso. Tanto que ele teve que fazer acordos; e os personagens desses acordos são os mesmos líderes partidários que transcendem governos”, afirma o cientista político Antônio Testa, que integrou a equipe de transição do governo Bolsonaro.

Para políticos e especialistas, o problema não é o presidencialismo de coalizão (ou a manutenção de um governo estadual a partir da divisão de espaço para aliados no primeiro escalão). Mas sim o presidencialismo de cooptação – este implantado na era do PT, que vinculava o apoio parlamentar à entrega de cargos e espaços na Esplanada dos Ministérios, independentemente de malfeitos ou esquemas de corrupção de ministros ou de seus auxiliares próximos.

Além disso, políticos e especialistas são uníssonos em destacar que o sistema político brasileiro precisa de mais clareza. Em nome de uma divisão concreta do sistema de pesos e contrapesos típicos da democracia, os Três Poderes tem invadido a competência uns dos outros (decisões do Supremo com caráter legislativo ou decisões do Executivo que invadem competência legislativa, por exemplo). Como resultado, um país tido como presidencialista na teoria na prática funciona como semipresidencialista. Alguns falam até em semiparlamentarismo.

O cientista político Waldir Pucci, da Universidade de Brasília (UNB), nega que a “nova política” tenha simplesmente sido engolida pelo establishment. Entretanto, na visão dele, falta “tangibilidade” – algo concreto sobre uma maneira de se mudar a forma de se fazer política no Brasil. E essa tangibilidade viria a partir de um novo projeto político, por adoção de um sistema de governo realmente claro ao cidadão comum.

“A classe política sabe que não é fácil governar sem esse nosso presidencialismo de coalizão. Mas o problema é que você tem que abraçar as propostas de uma nova política. O que é mais fácil: construir novas instituições ou criticar as atuais?”, observa Pucci. “O que falta ao Brasil é um debate sério sobre o nosso regime de governo. Há uma confusão entre os poderes, mas nada que possa ser classificado como o fim da democracia. Porém, não dá para ficar nessa confusão eternamente.”

Publicidade

Bolsonaro tentou implementar modelo novo, mas recuou

Assim que assumiu a Presidência da República, Bolsonaro até tentou impor um modelo diferente de se fazer política. Não funcionou. Ao invés de dialogar com os caciques partidários, Bolsonaro buscou apoio das bancadas temáticas do Congresso – a evangélica e a da segurança pública, por exemplo. Bolsonaro também não loteou ministérios para os partidos – a chamada “porteira fechada”, em que cada sigla faz o que quer na pasta que recebeu do presidente. Nas redes sociais, o presidente atacou adversários e tentou utilizar-se da pressão pública para fazer valer a sua vontade no Congresso.

Com o tempo, vitórias ou derrotas dependeram da atuação dos caciques políticos. Não necessariamente da articulação política do presidente. Assim, em pautas consensuais, como a reforma da Previdência, houve vitórias do governo. Nas matérias em que Congresso mantinha resistências, como o pacote anticrime, houve derrotas.

A virada no jogo político de Bolsonaro com o Parlamento ocorreu em abril deste ano. A partir da articulação do ministro da Secretaria de Governo, Luiz Eduardo Ramos, e do ministro da Secretaria-Geral da Presidência, Jorge Oliveira, o presidente aproximou-se de caciques como o deputado Arthur Lira (PP-AL) e o senador Ciro Nogueira (PP-PI), ambos réus por crime de corrupção.

Alguns cargos de primeiro escalão foram entregues para essas lideranças, como a direção do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE). Mas, todo indicado, segundo o Gabinete de Segurança Institucional (GSI), passa por uma espécie de crivo anticorrupção.

O fato é que, após essa aproximação, o governo finalmente passou a contar com uma base parlamentar mais confiável.

Publicidade
Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]

Ex-ministro admite que Bolsonaro teve de mudar para governar

Em janeiro de 2019, o então ministro da Cidadania Osmar Terra (MDB-RS) classificava como "corajosa" a tentativa de Bolsonaro romper com o presidencialismo de coalizão. Agora, Terra admite que mudanças foram necessárias em nome da governabilidade.

Apesar disso, o ex-ministro afirma que os princípios do governo foram mantidos. “Em 2019, o presidente tinha acabado de ser eleito e tudo o que ele fez até então foi para mudar a política. Ele fez uma reforma ministerial e não entregou cargos a partidos. O presidente Bolsonaro não mudou. Ele é a mesma pessoa. E detém os mesmos princípios”, diz Terra, que após sair do governo voltou a ocupar o cargo de deputado federal.

Em caráter reservado, líderes de partidos tanto da base quanto da oposição dizem que o fato de Bolsonaro não ter endossado o presidencialismo de coalizão no início do governo ajudou a conter o ímpeto dos partidos por cargos, emendas e privilégios no governo. Como os caciques não tiveram acesso a esse tipo de benesse no início da gestão, Bolsonaro conseguiu apoio em 2020 sendo obrigado a fazer um menor nível de concessões aos caciques em comparação com os governos do PT, por exemplo.

Falta de articulação política sacrificou Witzel e Moisés

A mesma lógica de negociar apoio político no Legislativo também vale para os estados que elegeram governadores que usaram nas eleições o discurso da "nova política". A falta de articulação política já sacrificou o ex-juiz Wilson Witzel no Rio de Janeiro e deve complicar a vida do advogado e ex-bombeiro militar Carlos Moisés.

Publicidade

O governador do Rio foi afastado por determinação do Superior Tribunal de Justiça (STJ) acusado de participar de um esquema de corrupção. A denúncia apresentada ao STJ e que também embasou processo de impeachment de Witzel na Assembleia Legislativa foi assinada pela subprocuradora-geral da República Lindôra Araújo. Além da perda do cargo público, Lindôra pede o pagamento de uma indenização de aproximadamente R$ 1,1 milhão.

Na quarta-feira passada (23), o plenário da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj) aprovou o impeachment dele e confirmou a abertura de um processo de crime de responsabilidade.

Durante pouco mais de um ano e meio de gestão, Witzel colecionou embates com a Assembleia Legislativa fluminense ao tentar impor um estilo de comando baseado no embate direto com os deputados e uso das redes sociais para atacar adversários.

Em junho, por exemplo, os parlamentares deram uma resposta: derrubaram 17 de 18 vetos a projetos de lei aprovados pela Casa, dando uma demonstração de força contra Witzel.

A situação de Witzel é semelhante à de Carlos Moisés em Santa Catarina. Sem apoio na Assembleia Legislativa catarinense, o governador também é alvo de um processo de impeachment por suspeita de crimes de responsabilidade fiscal após ter concedido aumento salarial aos procuradores do estado no ano passado.

Publicidade
Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]