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Três novas ações que pretendem derrubar o poder de investigação criminal do Ministério Público (MP) chegaram ao Supremo Tribunal Federal (STF) em maio. Os pedidos foram feitos pela Associação dos Delegados de Polícia do Brasil (Adepol) e são assinados por um advogado que há tempos tenta impedir que promotores e procuradores toquem inquéritos penais. Os relatores são os ministros Edson Fachin e Cármen Lúcia, ambos favoráveis ao poder de investigação do MP. Mas há sinais no STF de que possa haver um movimento interno para limitar os poderes do Ministério Público.
As novas ações são uma tentativa de reverter um entendimento firmado em 2015 pelo STF que garantiu ao MP o poder de fazer investigações independentemente da polícia.
Na época, ganhavam impulso as apurações conduzidas pela força-tarefa da Lava Jato, composta por membros da Procuradoria Federal no Paraná. O caso analisado pelos ministros não tinha relação direta com a operação, mas deu a ela a segurança jurídica para continuar a investigar o caso que ficou conhecido como petrolão, além de permitir ao MP prosseguir com outras apurações criminais e abrir novos casos.
Agora, num momento de reviravolta, em que a Lava Jato vem sendo paulatinamente desmontada por decisões do próprio STF, começam a aparecer sinais de que o Supremo pode, ao menos, limitar o poder de investigação do MP – o que já preocupa associações ligadas ao órgão.
O sinal amarelo acendeu em outubro de 2019 e em agosto de 2020, ocasiões em que o ministro Gilmar Mendes interrompeu julgamentos virtuais (com votos escritos, sem debates orais) de ações que discutiam o tema. Ele pediu vista para analisar a questão com mais tempo e profundidade. A surpresa veio do fato de que ele mesmo, em 2015, liderou a corrente majoritária no STF que garantiu ao MP o poder de tocar suas próprias investigações.
Dentro do STF, ainda não se sabe o que Gilmar Mendes poderá propor nas ações. Mas um conhecedor da Corte disse à reportagem, sob reserva, considerar plausível a hipótese de que sejam fixadas “novas balizas” ao poder de investigação do MP como uma forma de corrigir o que uma ala do Supremo entende como abusos cometidos pela Lava Jato.
Nos últimos anos, Gilmar Mendes se tornou um dos maiores críticos da operação, tendo liderado vários julgamentos para anular investigações e condenações. É uma postura oposta à que tinha em 2015, quando costumava avalizar as decisões de primeira e segunda instância nos processos da Lava Jato.
O que dizem os delegados e a Polícia Federal
As ações da Adepol questionam resoluções e decretos do Rio de Janeiro, de Minas Gerais e do Paraná que regulamentam a atuação dos Gaecos (Grupos de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado), criados em vários MPs estaduais há mais de 25 anos.
Os Gaecos são equipes de promotores ou procuradores dedicados a investigações de crimes complexos, que exigem um trabalho conjunto. Nos últimos anos, replicando esse modelo, a própria Procuradoria-Geral da República (PGR) instalou Gaecos no âmbito do MP Federal para substituir as forças-tarefa da Lava Jato no Paraná e no Rio, por exemplo.
A associação dos delegados diz que tanto as forças-tarefas quanto os Gaecos estão se tornando uma “polícia de luxo” e passaram a desempenhar o trabalho policial. Mas, de acordo com os delegados, a Constituição determina que cabe ao MP fiscalizar a atividade policial. Eles questionam, assim, quem controlaria a investigação tocada pelos procuradores.
“É ilegítimo qualquer procedimento investigatório criminal realizado diretamente por órgão ministerial público, uma vez que tal atividade ocorrerá em sigilo e sem qualquer controle de outros órgãos públicos, abalando, diretamente, a garantia do due process of law [devido processo legal]”, dizem as ações da Adepol.
Os delegados ainda dizem que as resoluções acabam estabelecendo “um extravagante poder hierárquico” do MP sobre as polícias Civil e Militar, através dos representantes do Gaeco. Não seria mais um controle externo, de fiscalização, mas sim interno, de comandar a ação policial na apuração de crimes, “inexistindo na legislação constitucional em vigor, qualquer subordinação entre os policiais civis e militares e os membros do Ministério Público”. A linha de argumentação traduz uma antiga rixa entre policiais e procuradores pelo protagonismo de investigações criminais.
Numa manifestação enviada ao STF em julho de 2018, em outra ação que discute o tema, a Polícia Federal também contestou o poder ilimitado dado pelo STF em 2015 para o MP fazer investigações. Para a corporação, esse poder deveria ser subsidiário, isto é, excepcional, só podendo ser exercido após uma omissão da polícia em investigar uma suspeita.
No documento, a PF ainda diz que, além desses limites, o MP só poderia apurar crimes “por meios próprios, como também sofrer o controle do Poder Judiciário, condições essas que são reiteradamente desrespeitadas por parte do Ministério Público”.
O que o STF decidiu sobre o poder de investigação do MP
Em 2015, a maioria dos ministros do STF deu ao MP o poder de investigação com o argumento de que, como o órgão é o responsável por denunciar os investigados na Justiça, sendo o destinatário natural das provas produzidas num inquérito policial, poderia ele mesmo conduzir uma investigação própria. Além disso, o Supremo considerou que há outros órgãos que fazem apurações próprias, como CPIs do Congresso, Receita, Banco Central e comissões disciplinares de órgãos públicos. Ainda que apurem infrações tributárias ou administrativas, as provas coletadas podem indicar crimes, que, por sua vez, são objeto de denúncias apresentadas pelo MP.
O STF estabeleceu que o controle sobre os atos do MP numa investigação caberia ao Judiciário e, durante seu curso, procuradores e promotores deveriam observar direitos e garantias do investigado, os casos em que envolvessem autoridades com foro privilegiado (nos quais a apuração seria submetida ao tribunal adequado), bem como as prerrogativas dos advogados.
Votaram nesse sentido sete ministros: Gilmar Mendes, Luiz Fux, Rosa Weber, Cármen Lúcia, Celso de Mello, Carlos Ayres Britto e Joaquim Barbosa. Os três últimos já se aposentaram e foram sucedidos, respectivamente, por Kassio Marques, Luís Roberto Barroso e Edson Fachin.
Foi formada uma corrente intermediária, de ministros que entendiam que o MP só poderia investigar em situações excepcionais, quando não há investigação policial – como defende a PF. Além disso, a investigação do MP deveria ser regulada pelas mesmas normas de um inquérito policial e, por regra, ser pública, sempre supervisionada pelo Judiciário. Dessa ala fizeram parte os ministros Ricardo Lewandowski, Dias Toffoli e Cezar Peluso – este último já se aposentou e hoje sua cadeira é ocupada por Alexandre de Moraes.
Por fim, o único que votou totalmente contrário a qualquer investigação do MP foi o ministro Marco Aurélio Mello, que deixou o STF no ano passado e foi substituído por André Mendonça. Para Marco Aurélio, o MP teria um poder excessivo se também pudesse investigar.
“Legitimar a investigação por parte do titular da ação penal é inverter a ordem natural dos papéis: o responsável pelo controle não pode exercer a atividade controlada. O Ministério Público, como destinatário das investigações, deve acompanhar o desenrolar dos inquéritos policiais, requisitando diligências, acessando os boletins de ocorrência e exercendo o controle externo, a fiscalização. O que se mostra inconcebível é membro do Órgão colocar estrela no peito, armar e investigar. Sendo o titular da ação penal, terá a tendência de utilizar apenas as provas que lhe servem, desprezando as demais e, por óbvio, prejudicando o contraditório e inobservando o princípio da paridade de armas”, disse o então ministro Marco Aurélio.
Na atual composição, Edson Fachin e Alexandre de Moraes já proferiram votos defendendo enfaticamente o poder de investigação do MP. A posição de Kassio Nunes Marques e André Mendonça ainda é desconhecida.
O que dizem as associações do MP
Procuradas pela reportagem, as duas principais associações de promotores e procuradores dizem acompanhar com atenção o tema no STF e também no Congresso. O presidente da Associação Nacional dos Membros do Ministério Público (Conamp), Manoel Murrieta, confirmou haver receio e preocupação na categoria. “Vejo isso como postura exclusivamente corporativa da Adepol, que não tem nenhum compromisso com a sociedade. Não incrementa nada ao combate à corrupção e à criminalidade organizada. Não consigo ver o porquê de uma única instituição querer dar conta de tantos problemas que ninguém sozinho consegue resolver”, afirma.
Ele diz estar “atento e alerta” para as novas ações, “inadequadas e inoportunas”, segundo ele. A Conamp vai se habilitar para opinar nos processos. É o que também pretende fazer o presidente da Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR), Ubiratan Cazetta.
Além das ações no STF, no Congresso surgiu nos últimos anos uma tentativa de limitar o poder de investigação do MP dentro do projeto do novo Código de Processo Penal. A última versão do texto, porém, preservou essa atribuição para os promotores e procuradores.