Ouça este conteúdo
O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) aprovou em outubro uma tese para condenar, a partir das eleições de 2022, os candidatos cujas campanhas dispararem, de forma massiva por meio de aplicativos de mensagens como o WhatsApp, conteúdos com mentiras contra seus rivais na disputa eleitoral. Mas, apesar de o TSE buscar impedir esse tipo de atividade eleitoral, o novo entendimento pode dificultar a investigação dos disparos em massa e eventuais punições por esse delito eleitoral.
A tese foi firmada durante o julgamento em que o TSE rejeitou uma ação do PT para cassar os mandatos do presidente Jair Bolsonaro e do vice, Hamilton Mourão, num processo em que a chapa deles era acusada justamente de ter feito disparos em massa pelo WhatsApp.
O TSE fixou cinco parâmetros para aferir a gravidade da conduta: 1) teor das mensagens, isto é, se contêm propaganda negativa ou informações "efetivamente inverídicas"; 2) repercussão das mensagens, ou seja, se contribuíram para influenciar a escolha dos eleitores; 3) alcance das mensagens no eleitorado; 4) grau de participação dos candidatos nos disparos; e 5) financiamento do serviço por parte de empresas.
Esses critérios foram propostos pelo ministro Luís Felipe Salomão, relator das ações contra a chapa Bolsonaro-Mourão; e ganharam a adesão de outros quatro ministros da Corte Eleitoral. O recado foi o de que haverá perda de mandato e inelegibilidade dos candidatos que se beneficiarem de ataques aos adversários.
Porém, para especialistas ouvidos pela Gazeta do Povo, a tese aprovada poderá acabar inviabilizando punições por esse tipo de campanha, justamente pela dificuldade de colher provas que permitam avaliar a gravidade da conduta seguindo todos os parâmetros.
Foi a falta dessas provas, aliás, o principal motivo para a rejeição da condenação de Bolsonaro – embora parte dos ministros tenha considerado que não havia sequer comprovação da ocorrência dos disparos contra Haddad e o PT.
Aferir o alcance das mensagens pode ser impossível
Um dos maiores especialistas em direito eleitoral e digital do país, o advogado e professor Diogo Rais estuda há anos o tema das fake news em campanhas. Ele diz que é quase impossível obter dos aplicativos o teor das mensagens e quem as recebeu, por exemplo. No caso do WhatsApp, isso ocorre porque todas as mensagens são criptografadas de ponta a ponta, de modo que só os interlocutores (ou quem tenha o celular em mãos) conhecem seu conteúdo. "Pela característica da mensageria privada, aferir o alcance é muito difícil. Nem a empresa sabe que mensagem vai de quem para quem", diz o advogado.
No caso do Telegram, o usuário pode optar por criptografar ou não as mensagens. Mas, no caso desse aplicativo, a obtenção delas pelo TSE seria mais difícil porque a empresa nem sequer tem representação no Brasil, o que torna mais difícil a colaboração com as investigações. Esse não é o caso do WhatsApp, que desde as eleições de 2020 tem ajudado o TSE a prevenir a disseminação de fake news, barrando usuários que usam robôs para espalhar mensagens em massa de forma artificialmente, independentemente do conteúdo.
"O Telegram pode ser sim um problema, não em razão da tecnologia, mas da distância institucional. É uma empresa sediada em Dubai [Emirados Árabes Unidos], não tem representação no Brasil, o dono tem nome russo e ninguém sabe onde estão servidores. Chamado pelo TSE a colaborar, o Telegram nunca deu resposta. Não é necessariamente um reduto ilegal, mas um reduto impunível. E bani-lo das lojas de aplicativos não vai adiantar", diz Diogo Rais.
O aplicativo Telegram tem se popularizado entre os candidatos – Bolsonaro já tem mais de 1 milhão de inscritos em seu canal; Lula, 35 mil.
Além disso, Rais considera muito difícil aferir a gravidade levando em conta todos os parâmetros estabelecidos pelo TSE. "Se forem pensados como cumulativos, pode tornar quase impossível a condenação à perda de mandato e inelegibilidade", diz.
Para ele, seria melhor enxergar os critérios como "sugestões de vetores", que podem ser analisados de forma separada. Alguns, por si só, podem levar à cassação de mandato, mas não necessariamente à inelegibilidade. Outros levam a penalidades menores, como multas, aplicáveis a propaganda irregular, por exemplo.
"A gravidade pode ser medida só pelo alcance e impacto das mensagens. Se houve impacto ou alcance, a eleição pode ser anulada, mas poderia contar com a participação do candidato depois, nas eleições seguintes", exemplifica.
O advogado Adriano Alves, especialista em direito eleitoral e digital e membro da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (Abradep), afirma que, por outro lado, as provas necessárias para analisar os parâmetros do TSE podem ser mais facilmente obtidas em eleições de abrangência menor.
"O caso Bolsonaro teve uma repercussão nacional. Então, todos os requisitos são de caráter nacional, no país todo. Se nós verificarmos, por exemplo, num pequeno município, a proporção acaba diminuindo. Então, esses parâmetros não necessariamente dificultam a aferição da irregularidade do disparo. Mas ele fixa condições mínimas, e isso é importante para eventualmente não ter perda de mandatos de inocentes. Cada parâmetro requer um nível de culpabilidade mínimo", diz Alves.
Parte dos ministros do TSE alertou para riscos dos critérios
No julgamento do TSE da chapa Bolsonaro-Mourão, dois ministros opuseram-se à aprovação da tese: Edson Fachin e Carlos Horbach. O primeiro disse que o disparo de ataques em massa pode configurar abuso de poder econômico e uso indevido dos meios de comunicação (hipóteses que permitem a cassação), mas rebateu cada um dos critérios. Fachin argumentou que a propaganda negativa em si é permitida, inclusive no horário eleitoral no rádio e na TV, e ainda que contenha "crítica cáustica, feroz e impiedosa".
O ministro acrescentou que definir o teor de uma propaganda como "efetivamente inverídico", como propôs Salomão, daria ao juiz um "excesso de discricionariedade". E mais: seria impossível provar que esse conteúdo influenciou o voto do eleitor. "É prova que exigiria o conhecimento do completo contexto de descoberta que informa a decisão do eleitor em votar, ou não votar, em um candidato, tarefa que beira, inclusive, o inadmissível risco de violar o segredo do sufrágio", advertiu Fachin.
"A presunção de que determinado conteúdo é indevido e somente pode impactar o eleitor de forma prejudicial transpõe a todos a métrica moral do julgador e descarta a compreensão da realidade construída por cada ser humano e, também, a sua possibilidade de entender válida narrativas distintas daquela esposada pelo julgador. Assim, a prova é, de todo, impossível", disse Fachin. Em relação ao "alcance" das mensagens, o ministro afirmou ainda que o fato de uma pessoa receber uma mensagem não significa que a leu e que isso definiu seu voto.
Horbach também votou contra a tese, por entender que não é possível equiparar aplicativos de mensagens ao rádio e à TV (meios de comunicação que, se usados indevidamente por candidatos, podem levar à cassação de mandatos) e nem sequer a redes sociais como Twitter, Facebook e Instagram. A principal diferença é que as mensagens são conversas privadas e não manifestações públicas.
"Aplicativos de mensagens instantâneas pressupõem privacidade, limitação evidente na difusão dos conteúdos por ele abrigados, seja ao próprio autor, aos destinatários ou receptores", disse Horbach. A equiparação do WhatsApp a meio de comunicação, segundo o ministro, só poderia ser feita por lei, não por decisão judicial.