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Rodrigo Pacheco
O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, durante ato que constituiu a comissão de juristas para reforma do Código Civil, em setembro de 2023| Foto: Pedro Gontijo/Senado

Além de relativizar o conceito de família e facilitar o aborto, a proposta do novo Código Civil encomendada pelo presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), também fragiliza um dos pilares de uma democracia liberal: o direito de propriedade. Mudanças apresentadas no relatório final da comissão de juristas encarregada de “atualizar” a lei favorecem a tomada de propriedades rurais por invasores e abrem brecha para que terras e imóveis sejam expropriados sem qualquer indenização aos donos.

Como vem mostrando a Gazeta do Povo, o texto proposto promove uma reforma ampla na lei que define e rege as relações das pessoas em sociedade, dispondo sobre os direitos do indivíduo no âmbito familiar ou comunitário, bem como das empresas numa economia de mercado. Mas o direito fundamental à propriedade, consagrado na Constituição, poderá sair enfraquecido se as mudanças propostas forem aprovadas no Legislativo – o texto ainda está em fase embrionária e não começou a ser analisado pelos parlamentares.

Especialistas que acompanham a discussão se espantaram com duas mudanças.

A primeira está no artigo 1.210 do Código Civil, que disciplina os direitos de quem tem a posse de uma terra, por exemplo. O texto em vigor diz que quem a possui pode mantê-la “em caso de turbação, restituído no de esbulho, e segurado de violência iminente, se tiver justo receio de ser molestado”. Significa que se alguém ameaçar ou efetivamente tomá-la, ele pode ficar nela ou retomá-la, e deve ser protegido de qualquer ato de violência nesses casos.

Nessas situações, a atual lei ainda dá ao possuidor o direito de manter a posse da propriedade “por sua própria força, contanto que o faça logo” e que “os atos de defesa, ou de desforço, não podem ir além do indispensável à manutenção, ou restituição da posse”.

A novidade está na inclusão de um novo trecho, segundo o qual o direito de manter a posse nesses casos poderá ser exercido “coletivamente, em caso de imóvel de extensa área que for possuído por considerável número de pessoas”.

É a brecha para que movimentos de sem-terra, principalmente, que venham a ocupar uma propriedade alheia, dizendo-se possuidores dela, possam impedir que sejam expulsos. O dispositivo pode agravar disputas fundiárias, que voltaram a crescer desde o ano passado, com o apoio do governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) a esses movimentos.

A outra mudança está no artigo 1.228, que trata da propriedade. O texto proposto mantém a previsão de que o dono poderá perder sua terra se ela for apossada de forma “ininterrupta e de boa-fé”, “por mais de cinco anos” e por “considerável número de pessoas, e estas nela houverem realizado, em conjunto ou separadamente, obras e serviços considerados pelo juiz de interesse social e econômico relevante”.

Ocorre que, pelo atual Código Civil, nessas situações, o proprietário é indenizado pelo Estado, caso o juiz considere que os ocupantes da terra merecem se apropriar dela, se entender que ela estava improdutiva e seus ocupantes produzirem ou necessitarem dela para sobreviver. A proposta dos juristas reunidos por Pacheco abre a possibilidade de que o proprietário não receba nada.

Um novo trecho diz que o juiz fixará uma “justa indenização”, que será devida ao proprietário pelos ocupantes. O problema já previsto por advogados experientes na área é que, na maioria dos casos, esses ocupantes não têm condição de pagar a indenização, especialmente no caso de sem-terra invasores. Na prática, portanto, não pagariam nunca.

A proposta até prevê a possibilidade de o poder público arcar com a indenização do dono que perdeu a terra. Mas isso só ocorrerá se os ocupantes forem de “baixa renda” e a administração pública atuar no processo judicial. Se o juiz do caso considerar que o Estado não deve integrar a ação, o dono perderá a terra e não terá direito a qualquer recompensa.

A possibilidade de o proprietário não ser indenizado contraria o que determina a Constituição, que trata a propriedade como direito fundamental. O artigo 5º, inciso XXIII, diz que em caso de desapropriação “por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social”, haverá “justa e prévia indenização em dinheiro”. Terras desapropriadas em favor de trabalhadores sem-terra integram a política de reforma agrária e, por isso, a medida se justifica pelo “interesse social”.

A rigor, isso ocorre quando se comprova que a propriedade rural não cumpre com sua “função social”, preceito também contido na Constituição, e que se configura quando, simultaneamente, ela tem aproveitamento racional e adequado; utilização adequada dos recursos naturais e preservação do meio ambiente; cumpre a legislação trabalhista; e tenha exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.

Na prática, o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) ocupa terras alheias alegando, muitas vezes de forma maliciosa, que elas não cumprem sua função social. Desde o ano passado, o movimento intensificou as invasões, sob o pretexto de que o novo governo tem sido lento na aquisição de terras para assentar famílias sem-terra. Todos os anos, o MST promove o Abril Vermelho, com protestos, acampamentos e invasões a fazendas. A expectativa é de que neste ano os atos sejam mais numerosos do que no ano passado.

Especialistas dizem que mudanças trazem insegurança jurídica

Para Paulo Roberto Kohl, advogado especialista em direito agrário e ambiental aplicado ao agronegócio, a mudança no artigo 1.228 relativiza o direito à justa e prévia indenização, garantido pela Constituição. “Quem pagará a indenização? Os possuidores de boa-fé?  Quem definirá o conceito de ‘possuidores de baixa renda’? Nos casos em que não se verificar a hipótese de possuidores de baixa renda, não se trataria de desapropriação por interesse social? Nessa perspectiva, entendo que poderá gerar insegurança jurídica”, diz ele.

Para Marcelo Macedo, advogado que atua no campo no Rio Grande do Sul, “haverá uma desvalorização da propriedade registral, e uma valorização da posse, dando ênfase na aplicação da função social, e isto somado a discricionariedade concedida ao Judiciário abre brechas para abolir valores importantes”.

Ele entende que as mudanças deixam em aberto termos como “imóvel de extensa área”, “considerável número de pessoas”, “obras e serviços considerados pelo juiz de interesse social e econômico relevante”, dando ao juiz do caso ampla discricionariedade para decidir as consequências de invasões que acabam se apossando de propriedades rurais.

“Preocupante a falta de balizadores no texto da proposta, cuja tarefa caberá aos juízes, correndo-se o risco de as fundamentações destas decisões serem aplicadas e/ou taxadas com caráter político ideológicos”, diz o advogado.

A proposta de revisão do Código Civil no Senado foi formulada por um grupo de juristas reunidos por Rodrigo Pacheco em setembro do ano passado. Em seis meses, produziram um texto de 293 páginas, com alterações em mais de mil artigos do atual Código Civil, aprovado em 2002. O código anterior era de 1916 e sua alteração foi discutida por mais de 40 anos.

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