No julgamento das cem primeiras denúncias contra manifestantes envolvidos no protesto e vandalismo contra os Três Poderes, no 8 de janeiro, os ministros Kassio Nunes Marques e André Mendonça rebateram vários pontos do voto do relator do caso, Alexandre de Moraes.
Embora vencidos, eles acolheram boa parte dos argumentos das defesas, tanto do grupo acusado apenas por participar do acampamento em frente ao Quartel General do Exército, em Brasília, quanto do grupo flagrado dentro do Palácio do Planalto, do Congresso e do Supremo Tribunal Federal, parcialmente depredados naquele domingo.
As denúncias contra cem participantes dos atos já foram recebidas pela maioria do STF. Significa que eles agora responderão a um processo criminal como réus. Ao longo da ação, terão nova oportunidade de se defender, convocando testemunhas para depor em seu favor, ou juntando novas provas para tentar convencer a Justiça de eventual inocência.
Na análise da denúncia, porém, Nunes Marques e Mendonça criticaram pontos importantes da peça acusatória, da fundamentação de Moraes e da própria forma como o caso está sendo conduzido por ele no STF.
Em primeiro lugar, ambos concordaram que os manifestantes sequer poderiam ser investigados, e muito menos processados na Corte. Para isso, citaram decisões recentes, muitas da Operação Lava Jato, que reafirmaram o entendimento de que só em casos muito excepcionais pessoas sem o chamado foro privilegiado são julgadas no STF.
De fato, foram abertos no STF inquéritos específicos contra Clarissa Tércio (PP-PE), André Fernandes (PL-CE), Silvia Waiãpi (PL-AP), Coronel Fernanda (PL-MT) e Cabo Gilberto Silva (PL-PB), todos apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL). Eles viraram alvo por terem anunciado, comentado ou repercutido em suas redes sociais vídeos de momentos da invasão.
Para justificar a manutenção das denúncias no STF, Alexandre de Moraes afirmou, em seu voto, que os crimes imputados às pessoas que estavam acampadas no QG do Exército ou àquelas que invadiram os prédios teriam “evidente conexão” com esses cinco deputados de direita, investigados por supostamente incentivarem a manifestação do 8 de janeiro.
Citando a Procuradoria-Geral da República (PGR), que fez as denúncias, Moraes apontou um “vínculo intersubjetivo” entre manifestantes, e uma “estreita ligação” com parlamentares, uma vez que provas reunidas contra uns poderiam influir na situação dos outros.
Para Kassio Nunes Marques e André Mendonça, no entanto, o voto do relator não aponta que ligações seriam essas. Por isso, argumentaram que o caso dos manifestantes – sejam os acampados, sejam os invasores – sequer poderia tramitar no STF.
“Não identifiquei circunstância de fato concreta – no voto proferido pelo Relator [Moraes] – que pudesse determinar a excepcional atração de competência, por conexão ou continência, para processamento das investigações e ações penais oriundas dos Inquéritos 4.921 e 4.922, em que os réus não possuem prerrogativa de foro, em relação às investigações ainda em curso envolvendo detentores de foro por prerrogativa de função neste Supremo”, escreveu Nunes Marques.
Em outros trechos do voto, ele ainda fez uma crítica indireta a Moraes, sugerindo que ele não pode exercer um “juízo universal” sobre casos envolvendo ataques às instituições – a expressão foi muito utilizada por ministros e advogados nos últimos anos para criticar a concentração de processos envolvendo corrupção com o ex-juiz Sergio Moro, no âmbito da Lava Jato. Para Nunes Marques, os inquéritos contra os cinco deputados que divulgaram a manifestação nem deveriam, necessariamente, ser conduzidos por Moraes. A relatoria, em seu entendimento, deveria ser sorteada livremente entre os ministros.
Moraes avocou as investigações para si por ver ligação do ato contra os Poderes com os inquéritos das “fake news” (aberto para apurar ofensas e supostas ameaças aos ministros) e com o inquérito das “milícias digitais” (originado da extinta investigação sobre os “atos antidemocráticos”, que alvejava influenciadores e parlamentares de direita por críticas disseminadas nas redes sociais).
Moraes disse que nesses inquéritos são investigados o senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ) e os deputados federais Otoni de Paula (MDB-RJ), Cabo Júnio do Amaral (PL-MG), Carla Zambelli (PL-SP), Bia Kicis (PL-DF), Eduardo Bolsonaro (PL-SP), Filipe Barros (PL-PR), Luiz Phillipe Orleans e Bragança (PL-SP), Eliéser Girão (PL-RN) e Guiga Peixoto (PSC-SP) – o último já não está no exercício do mandato.
Mas, também nesses casos, Nunes Marques disse que não ficou provada a relação dessas investigações com os manifestantes do 8 de janeiro. “Ao longo do tempo, verificou-se uma dinâmica decisória reveladora da ampliação demasiada dos objetos dos Inquéritos 4.781 e 4.874, nos quais foram deferidas prisões e inúmeras medidas cautelares, realidade que persiste até a presente data”, criticou o ministro.
André Mendonça também registrou não haver descrição da conduta dos deputados e sua eventual ligação com os manifestantes. Para ele, não faz sentido que esses sejam processados junto com políticos no STF, até porque respondem a inquéritos diferentes.
“Os detentores de foro por prerrogativa de função eventualmente denunciados não exercerão, de uma forma ou de outra, suas defesas no bojo dos processos instaurados pelas denúncias aqui em comento, pois, onde quer que tramitem tais processos, aqui ou na primeira instância, não figuram como partes neles. Não estarão, a princípio, nas audiências, não contraditarão testemunhas, não farão perguntas. Enfim, não são parte nesta relação processual”, escreveu.
Apoiando-se também na jurisprudência mais recente do STF, Mendonça reforçou que ainda que houvesse conexão entre os parlamentares e manifestantes, a regra seria o desmembramento. Ou seja: só deveriam ficar na Corte os casos de quem tem foro privilegiado, e remetidos para a primeira instância os processos contra cidadão comuns, sem a prerrogativa.
Uma consequência maléfica para os manifestantes seria a supressão da possibilidade de recorrerem nas diferentes instâncias da Justiça, uma vez que o Supremo é o órgão máximo do Poder Judiciário. Em outras palavras, contra suas decisões, não há quem recorrer.
Defensora de Eduardo Bolsonaro e Carla Zambelli, a advogada Karina Kuffa diz que a suposta ligação entre os manifestantes e os parlamentares não foi demonstrada no voto de Moraes. “Iria mais além, não há a conexão entre eles e não há prova da participação de todos os envolvidos. Todo processo deve ter, no mínimo, os fatos bem delineados, de forma individualizada e lastreados em provas ou indícios consistentes”, afirmou.
Denúncias genéricas
Nunes Marques e Mendonça ainda enfatizaram, em seus votos, o fato de as denúncias da PGR, e também os votos de Moraes, serem praticamente idênticos em relação aos dois grupos de denunciados. O primeiro grupo é composto pelos acampados no QG do Exército, acusados de associação criminosa e de incitação das Forças Armadas contra os Poderes Constitucionais (Executivo, Legislativo e Judiciário). O segundo grupo, de invasores e vândalos, é acusado de dano ao patrimônio público, deterioração de bens tombados, tentativa de abolição do Estado Democrático de Direito, de golpe de Estado e associação criminosa.
Para os dois ministros, a denúncia contra os acampados deveria ser integralmente rejeitada. Ambos entenderam que, só pelo fato de estarem reunidos em frente ao QG no dia seguinte à invasão das sedes dos Poderes, não significa que estariam todos incentivando uma intervenção das Forças Armadas para a tomada do poder. Se parte deles se manifestava nesse sentido, caberia à PGR identificar exatamente quem teria praticado essa conduta, quando e de que modo.
“Deixou a acusação de identificar e expor os fatos supostamente criminosos, com todas as suas circunstâncias”, assinalou Nunes Marques. “As denúncias partem de meras ilações, com fotos e descrições das atividades desenvolvidas no acampamento em frente ao Quartel General de Brasília, sem apontar nenhum comportamento concreto dos denunciados que pudesse dar suporte a tal acusação”, escreveu em seguida. Para ele, as denúncias da PGR “apenas narram, de forma genérica, a gravidade abstrata dos delitos investigados”.
Não haveria, ainda, no entendimento de Nunes Marques, o delito de associação criminosa. Citando juristas, afirmou que sua configuração exige que um grupo de pessoas se reúnam com o propósito deliberado de cometer “crimes indeterminados”, o que não seria o caso.
Mendonça também apontou falta de individualização das condutas dos acampados. Para ele, dizer que as pessoas aderiram a uma manifestação que continha faixas e gritos de ordem pedindo a intervenção não significa que concordassem com isso. “O problema desta narrativa da acusação, porém, é que ela pressupõe, sem comprovação, uma absoluta uniformidade e homogeneidade daquela massa de pessoas”, escreveu o ministro.
“Não se olvida de que no acampamento, seguramente, havia pessoas mal-intencionadas, pessoas que desejavam um golpe de Estado, pessoas cujos motivos de presença no local se harmonizavam com o dolo narrado pelo Ministério Público. E é possível, até mesmo, considerar que havia um bom número delas. Tais circunstâncias, todavia, não autorizam a presunção de que rigorosamente todos que lá estavam agiam com as mesmas intenções e, portanto, não permitem a imputação uniforme contra todas aquelas pessoas, sem que se apontem elementos que demonstrem, individualmente, a culpabilidade subjetiva de cada qual”, ponderou Mendonça. “Generalizações são sempre temerárias. Em Direito Penal, e in malan partem [contra o investigado], inadmissíveis”, asseverou.
Ele apresentou como exemplo as manifestações de 2013, na qual a maior parte dos manifestantes sequer foi investigada porque não participou de atos de vandalismo. Registrou que, no dia 9 de janeiro, pessoas presas no QG não resistiram à abordagem da polícia, e sugeriu que muitas nem sabiam que iriam para a cadeia. “Ninguém tentou fugir e ninguém tumultuou a diligência, conforme palavras dos policiais militares que estiveram na operação e foram ouvidos no inquérito”, registrou o ministro. Mendonça acrescentou que, nos depoimentos, vários disseram que chegaram a Brasília no fim do dia 8.
Contra os invasores, Mendonça acompanhou Alexandre de Moraes e aceitou a denúncia por todos os crimes apontados – ainda que defendesse o declínio dos casos para a primeira instância. Nunes Marques, por sua vez, entendeu que eles não deveriam responder por todas as acusações. Para ele, são válidas apenas as imputações de dano ao patrimônio público, deterioração de bens tombados e tentativa de abolir o Estado Democrático de Direito, pelo fato das depredações terem afetado, por semanas ou meses, o funcionamento das instituições.
Advogado de 14 denunciados, entre acampados e invasores, Anderson Cortez considerou acertados os votos divergentes, mas não tem esperança de que, no processo, seus argumentos serão contemplados.
“O STF está decidindo hoje politicamente, não processualmente, nem diante da lei. Os votos dos ministros contrários ao relator são a demonstração daquilo que a defesa vem dizendo desde o início, desde as audiências de custódia. Temos enfatizado as ilegalidades e mudanças de entendimento repentinas e não aplicação do processo penal. Esses votos podem ser usados na instrução processual, mas não vejo muita efetividade, porque a defesa já vem batendo nessas questões. E, o fato de serem votos vencidos, demonstra que não vão ter peso nenhum diante daqueles que estão votando pela aceitação da denúncia. Essas pessoas já estão condenadas, infelizmente. O que poderia ser feito é em âmbito internacional, mas não existe vontade política e jurídica, e a OAB não está interpresada nisso”, disse.
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