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O que aprendi sobre a felicidade com meu vizinho de 102 anos

Em "O que Aprendi Sobre a Felicidade com Meu Vizinho de 102 Anos", David Von Drehle conta a história fascicante de um anônimo que atravessou o século XX.
Em "O que Aprendi Sobre a Felicidade com Meu Vizinho de 102 Anos", David Von Drehle conta a história fascicante de um anônimo que atravessou o século XX. (Foto: Pixabay/Julita)

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O americano Charlie White atravessou o século XX como testemunha ocular de um período que registrou diversos fatos históricos revolucionários. Também viveu, no âmbito pessoal, todas as alegrias e dificuldades que marcam a experiência humana. E ultrapassou a idade dos cem anos com uma vitalidade invejável.

White morreria conhecido apenas pelas pessoas de seu círculo mais próximo se não fosse por David Von Drehle, um jornalista premiado que, por acaso, acabou se mudando para perto dessa figura surpreendente.

O resultado desse encontro é o livro "O que Aprendi Sobre a Felicidade Com meu Vizinho de 102 Anos", lançado neste ano no Brasil pelo selo Vestígio e do qual selecionamos o trecho a seguir.

O ano era 2007. Minha esposa e eu havíamos desenraizado nossos filhos – de 9, 7, 6 e 4 anos – da capital dos Estados Unidos, Washington, para replantá-los nos subúrbios de Kansas City, Missouri.

Como Karen explicou certa vez, ela havia se cansado das dificuldades da parentalidade urbana: congestionamentos de trânsito, filas longas, aulas de natação a 1 dólar por minuto. Eu me cansara das pessoas discutindo entre si, principal passatempo da capital do país.

Estava começando um novo trabalho que me permitia atuar remotamente, e, após vários anos empolgantes na Costa Leste, este menino do Colorado estava pronto para voltar ao centro do país, onde os céus são maiores que os egos.

Na manhã em questão, nossa nova casa ainda estava cheia de caixas de mudança esvaziadas pela metade. Uma onda do calor de agosto havia se instalado no Meio-Oeste, e embora ainda fossem oito horas da manhã, um paredão escaldante opressivo me atingiu quando saí para pegar o jornal de domingo, como se eu tivesse aberto uma lavalouças cedo demais

A meio caminho da minha garagem, ergui os olhos e, através da claridade de um sol já furioso, vi algo que me fez parar de imediato. Meu novo vizinho estava lavando um carro em sua garagem circular do outro lado da rua.

Pelo que eu me lembro (esse detalhe é motivo para alguma discordância na vizinhança), o carro era um reluzente Chrysler PT Cruiser cor de Fanta Uva. Gosto de acreditar que minha memória é mais precisa do que a lembrança daqueles que dizem que era um carro menos diferenciado, e minha imaginação é desenxabida demais para criar um automóvel da cor de um refrigerante cintilando na fachada da casa do vizinho.

Mas se de fato inventei esse carrinho berinjela, só pode ter sido em homenagem à dona do carro, uma mulher de tal carisma que veículos comuns não a mereceriam. (Nós a conheceremos em seu devido tempo, e ela vale a espera.)

O inegável é o seguinte: meu vizinho estava debaixo do sol de agosto, em uma manhã de domingo, lavando o carro da namorada. Não pude deixar de notar que o veículo em questão estava estacionado no mesmo lugar em que ela o deixara na noite anterior

Deduzi que o encontro que ele tivera no sábado à noite, com a motorista glamorosa do carro possivelmente roxo, evoluíra para o tipo de pernoite que faz um homem ter vontade de ser muito simpático na manhã seguinte.

Meu vizinho estava com o peito nu, vestindo apenas um velho calção de banho. Com uma mangueira de jardim em uma das mãos e uma esponja ensaboada na outra, flexionava seu peito musculoso a cada esguichada e chacoalhada, enquanto seu cabelo ondulado caía jovialmente sobre um dos olhos.

Esse era Charlie White. Idade: 102 anos.

Eu havia sido apresentado ao médico bonitão alguns dias antes por seu genro, Doug, que morava na casa vizinha à nossa. A esposa de Doug era a filha mais nova de Charlie, e o casal havia se mudado para a rua para ficar de olho nele. Sinceramente, eu não via necessidade.

Charlie era saudável, robusto e perspicaz. Quando nos conhecemos, ele me cumprimentou com o que costumava ser conhecido como um aperto de mão másculo, não de esmagar os ossos, mas o tipo de pressão calorosa, firme e sincera.

Seus olhos eram claros, azuis-safira. Tinha boa audição, e a conversa passava com facilidade de um tópico a outro, do passado para o presente, para o futuro e de volta.

O cabelo esvoaçante e branco e o bigode jovial conferiam-lhe um ar elegante, um pouco teatral – lembrou-me vagamente Doc, do seriado dos anos 1950 Gunsmoke –, fator ampliado pela bengala que segurava casualmente ao lado do corpo.

Melhor ainda: numa observação mais atenta, a bengala revelou-se um taco de golfe segurado de cabeça para baixo. Usar um taco de golfe como bengala é de uma elegância que só é possível se ocorrer de maneira natural.

Um leve problema de equilíbrio o mantinha fora do campo de golfe – Charlie contou-me com tristeza naquele primeiro dia, mas (nesse momento, agitou o taco invertido) esperava logo voltar ao batente.

Em resumo, Charlie era um espécime extraordinário. Ainda assim, ao conhecer um homem de 102 anos, ninguém espera estar dando início a uma longa e rica amizade.

Tabelas estatísticas não têm espaço para sentimentos ou desejos, e o que elas dizem é o seguinte: segundo a Administração da Previdência Social, em um grupo aleatório de 100 mil homens, apenas cerca de 350 – menos de 1% – chegam a 102 anos. Entre esses destemidos sobreviventes, o indivíduo médio tem menos de dois anos restantes.

Após 104 anos, a vida se esvai rapidamente, como os últimos grãos de areia em uma ampulheta. No entanto, naquela abafada manhã de domingo, quando Charlie ergueu os olhos do carro e acenou para mim com a mão que segurava a esponja, havia algo nele que me levou a pensar que suas probabilidades não seriam encontradas em gráficos e planilhas.

A vida parecia ser mais leve para ele do que para outros homens. Embora, como veremos, Charlie tivesse tido mais que o suficiente em matéria de tristeza e trabalho duro, não se ressentia das afrontas da vida nem reclamava das humilhações por que passara.

Também não deixava de usufruir as gentilezas fugazes e os lampejos de beleza em sua vivência, entre os quais, agora, a rara chance de lavar ele próprio o carro da namorada, pouco depois do seu 102º aniversário, sob a ampla cobertura de uma velha árvore que morria mais rápido do que ele, ao mesmo tempo que tudo – o carro, a árvore, a esponja ensaboada, o vizinho surpreso arrastando-se até seu jornal, a namorada adormecida e o próprio Charlie – girava rapidamente pelo espaço, a bordo do planeta milagroso chamado Terra.

Mais tarde, eu ouviria uma história sobre Charlie que representaria sua peculiar característica de gratidão à alegria de viver, aquilo que os franceses chamam de joie de vivre. Trata-se de um momento passageiro, nada elaborado ou tortuoso, mas que aponta, de certo modo, para a lição mais libertária e empoderadora da vida.

Maybelle Carter, matriarca da música country norte-americana, dedilhava sua guitarra Gibson e cantava abertamente sobre se manter no lado ensolarado da vida. Juliana de Norwich, mística e visionária do século XIV, sobreviveu à peste bubônica para escrever, com segurança, que “tudo vai dar certo, e todos os tipos de coisas ficarão bem”.

A lição tão simples, mas tão difícil, é que a vida pode ser saboreada ainda que permeada por dificuldades, decepções, perdas e até brutalidade. A escolha de ver sua beleza está disponível para nós a todo momento.

A história envolve Charlie e seu querido jogo de golfe. Muito tempo depois do falecimento de seus companheiros do Blue Hills Country Club, Charlie continuou jogando ao lado de homens muito mais jovens, que mal haviam passado dos 80 anos.

Um dia, ele se viu parado no green [área de grama mais curta, onde ficam os buracos], enquanto seu colega descia até um bunker de areia para fazer uma jogada com uma bola errante.

Algum tempo depois de o homem ter sumido de vista no fundo do bunker, Charlie viu um borrifo de areia subir juntamente com a bola, e seu colega caiu e rolou até parar na área de treinamento. Depois… nada.

Após algum tempo, Charlie foi até a beirada do green, deu uma olhada e viu o homem lutando, sem sucesso, para sair do buraco de areia. Charlie duvidou de sua capacidade de puxá-lo para fora. O que fazer? Não reagiu com preocupação ou alarde. Não pensou: O que estamos fazendo aqui? Estamos velhos demais para isso.

Ele caiu na gargalhada, e continuou rindo até seu amigo morrer de rir também. Os dois ainda estavam rindo quando o grupo atrás deles chegou para resgatar o octogenário encalhado.

Charlie fez do viver uma arte. Entendeu, assim como os grandes artistas, que toda vida é uma mescla de comédia e tragédia, alegria e tristeza, ousadia e medo. Escolhemos o teor de nossas vidas nessas notas conflitantes.

Mesmo quando sua força estava esmorecendo, quando o campo de golfe tinha se tornado um campo de obstáculos, quando a debilidade do avanço do tempo já não podia ser negada, Charlie escolheu transformar seu taco de golfe em uma bengala e portá-lo com desenvoltura.

Conteúdo editado por: Omar Godoy

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