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O presidente Jair Bolsonaro (PL) voltou a subir o tom contra o Supremo Tribunal Federal (STF) na terça-feira (7) ao sugerir a possibilidade de descumprir decisões da Corte. Para alguns aliados da base aliada, isso faz parte de sua estratégia eleitoral. Mas, para outros aliados no Congresso e para interlocutores do Palácio do Planalto, foi um desabafo de Bolsonaro que pode realmente levar ao descumprimento de decisões do STF.
Na terça, em solenidade no Planalto, Bolsonaro disse ter sido do "tempo" em que "decisão do Supremo não se discute, se cumpre". "Eu fui desse tempo, não sou mais. Certas medidas saltam aos olhos dos leigos, é inacreditável. Querem prejudicar a mim e prejudicam o Brasil", disse, referindo-se à decisão da Segunda Turma do STF que restabeleceu a cassação do mandato do deputado estadual paranaense Fernando Francischini (União Brasil) por espalhar fake news sobre as urnas eletrônicas.
Na quarta-feira (8), Bolsonaro reforçou seu posicionamento. "Decisão do Supremo se cumpre, não se questiona? Eu sou o capitão. O que eu faço? Não vou cumprir. Isso não é afronta", declarou em evento com empresários no Rio de Janeiro. "Vivem perseguindo, prendendo deputado federal. Cassando mandato de deputado. O atual presidente do TSE [Edson Fachin] foi o que tirou o Lula da cadeia", disse.
Parte dos aliados políticos de Bolsonaro entendem que as declarações do presidente fazem parte da retórica política para manter aquecida sua base mais "raiz" e resgatar votos durante a pré-campanha pela estratégia de polarizar e desacreditar desafetos e adversários políticos.
Mas há governistas que entendem que Bolsonaro realmente possa descumprir decisões do STF. "Se aquela [decisão que impediu a] nomeação do [Alexandre] Ramagem ocorresse hoje, por exemplo, ele [presidente] a manteria", afirma um interlocutor do Planalto. Em 2018, o ex-diretor-geral da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) Alexandre Ramagem teve suspensa a sua nomeação para o comando da Polícia Federal (PF) por decisão monocrática (individual) do ministro Alexandre de Moraes, do STF. À época, Bolsonaro considerou recorrer, mas acatou a liminar e indicou o delegado Rolando Alexandre de Souza. Contudo, o presidente disse à época que a decisão quase gerou uma "crise institucional".
Que tipo de decisão do STF levaria Bolsonaro a uma desobediência judicial
A possibilidade de uma decisão do STF suspender uma nomeação do presidente é um exemplo prático de como Bolsonaro consideraria descumprir uma ordem judicial. Outro exemplo já citado nos bastidores, em outros momentos, seria se o ministro Alexandre de Moraes expedir um mandado de busca e apreensão contra Bolsonaro no âmbito do inquérito das "fake news".
Outro caso, que o próprio Bolsonaro deu sinais de que poderia descumprir decisão judicial , é sobre o marco temporal da demarcação de terras indígenas. O presidente disse que há no Brasil uma área "do tamanho da região Sudeste" demarcada para indígenas e que a ampliação desses territórios (por eventual ordem judicial) causaria prejuízos ao setor agropecuário.
O processo sobre o marco temporal estava agendado para ser julgado no STF no dia 23 de junho. Mas o presidente do Supremo, Luiz Fux, o retirou da pauta, sem nova data para julgá-lo. Apesar disso, o assunto segue como uma preocupação do governo. "Se um novo marco temporal for aprovado, teremos também uma nova área do tamanho da Região Sul, e uma possível região do tamanho do estado de São Paulo. Acabou a economia brasileira do agronegócio! Acabou nossa garantia alimentar, acabou o Brasil!", disse Bolsonaro. Foi nesse momento que ele sugeriu a possibilidade de desobediência judicial a uma decisão colegiada do STF favorável à demarcação de terras indígenas. Bolsonaro não apenas é contrário ao tema, como também defende a aprovação de um projeto de lei que muda regras para o uso de terras dos povos indígenas. A norma abriria caminho para a extração de minérios, gás e a geração de energia nesses territórios.
Que impactos trariam um descumprimento judicial de Bolsonaro
A hipótese de Bolsonaro descumprir uma ordem judicial do STF poderia provocar uma escalada na crise entre poderes, admitem governistas. Parte dos interlocutores do governo dizem que, no caso de um iminente descumprimento de alguma ordem judicial, lideranças políticas tentariam colocar "panos quentes" e instituições como a Advocacia-Geral da União (AGU) seriam acionadas para tentar uma solução recursal.
Mas o deputado federal Bibo Nunes (PL-RS), vice-líder do partido na Câmara, analisa que um descumprimento pode ocorrer. Ele entende que o Judiciário é quem deu início à instabilidade institucional. Na opinião do parlamentar, a depender da escalada da crise entre os poderes, uma solução poderia vir pela interpretação ao artigo 142 da Constituição Federal de que as Forças Armadas atuem como um "Poder Moderador". "Estamos vivendo uma instabilidade entre os poderes. E isso, se agravando muito como está, tem o artigo 142, que é constitucional", diz.
Mas grande parte dos juristas afirmam que, ao contrário do que o deputado afirma, o artigo 142 não atribui às Forças Armadas o papel de Poder Moderador em caso de crise de poderes. O artigo diz que as Forças Armadas "destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem". Ou seja, elas são garantidoras dos outros três poderes contra eventuais ameaças a cada um deles.
O deputado Bibo Nunes diz entender ainda que a fala de Bolsonaro sobre descumprir uma decisão judicial foi dita com o coração e não é uma estratégia eleitoral, nem ameaça. "Não acredito que seja, não é pré-pensado. Também não acho que seja uma ameaça. Ele não é de ameaçar; é de fazer. Eu acredito que foi uma indignação total da parte dele, foi a vez que eu o vi mais indignado, porque essa [decisão] do Francischini foi demais", diz.
Para Nunes, o STF tem tomado reiteradas decisões políticas e, por esse motivo, o ministro Alexandre de Moraes deveria se declarar impedido de presidir o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) durante as eleições. "É um contumaz opositor ao governo", diz. "É um desaforo e uma ofensa aos eleitores bolsonaristas colocar a pessoa que menos têm credibilidade para presidir e comandar as eleições em um ano conturbado como esse. É falta de bom senso total", complementa.
Há ainda quem entenda que a possibilidade de descumprimento de uma decisão do STF não ampliaria tanto a crise entre poderes. O argumento usado por alguns assessores do governo é de que há precedentes no próprio Congresso, tanto no Senado quanto na Câmara. Um exemplo citado entre eles é o de quando a Mesa Diretora do Senado descumpriu uma decisão liminar do então ministro do STF Marco Aurélio Mello de afastar o senador Renan Calheiros (MDB-AL) da presidência da Casa, em 2016.
Marco Aurélio, hoje aposentado, atendeu à época a um pedido do partido Rede, que argumentava que, como Calheiros havia virado réu no STF, ele não poderia continuar no cargo em razão de estar na linha sucessória da Presidência da República (réus de processos criminais, pela Constituição, não podem exercer a Presidência). Mas Calheiros descumpriu a decisão de Marco Aurélio até o julgamento do plenário do Supremo. O plenário manteve-o na presidência da Casa, mas o proibiu de eventualmente assumir a Presidência.
Outro descumprimento judicial citado no Planalto foi deflagrado também no Senado, em 2017. À época, a Mesa Diretora se negou a afastar o então senador e atual deputado federal Aécio Neves (PSDB-MG), também determinada pelo então ministro do STF Marco Aurélio Mello. O então presidente do Senado, Eunício Oliveira (MDB-CE), argumentou que não havia previsão regimental ou na Constituição para o afastamento.
Há outros descumprimentos recentes. Em 2020, o então presidente do Senado, Davi Alcolumbre (União Brasil-AP), proibiu a realização de busca e apreensão no gabinete do senador José Serra (PSDB-SP). Neste ano, o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), descumpriu ordem judicial de Alexandre de Moraes para a instalação de tornozeleira eletrônica no deputado federal Daniel Silveira (PTB-RJ) no plenário da Casa.
Qual é a análise feita por quem acha que a fala de Bolsonaro é eleitoral
Mas parte dos aliados de Bolsonaro entende que a declaração de possível descumprimento de ordem judicial faz parte de uma estratégia eleitoral de Bolsonaro. Seria uma forma de reagrupar o apoio de eleitores que, por diferentes motivos, tenham se desiludido em relação ao presidente e prefiram o voto em branco ou nulo.
O governo entende que essa parcela de eleitores é pequena e composta por pessoas que acreditam que o presidente se afastou da pauta "lava-jatista" e que deveria ter tido uma postura mais radical contra as decisões do STF que avançaram – e até geraram prisões – sobre conservadores, como o deputado Daniel Silveira, o ex-presidente do PTB Roberto Jefferson, o jornalista Oswaldo Eustáquio e a ativista Sara Giromini.
"O presidente tem o instinto de sobrevivência eleitoral. Então, essa fala de descumprir decisão é uma declaração eleitoreira que visa aquecer a base mais fiel e reaproximá-lo dessa base de apoio que se afastou", diz um integrante da cúpula de um partido da base. O aliado, membro da executiva nacional de seu partido, avalia, porém, que o discurso de Bolsonaro segue dentro da 'bolha bolsonarista". "Ele não consegue falar para fora e, como tem muita oscilação, acho que esse discurso não é capaz de resgatar eventuais dissidentes", pondera.
A análise feita por essa ala da base aliada entende que o "discurso antissistema" precisa vir acompanhado de uma melhora da economia para reagrupar os eleitores dissidentes. "[Bolsonaro] tem que entregar [melhora na] economia, melhora da qualidade de vida, reformas, proposições e um debate político mais qualificado", pondera uma liderança partidária.