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O afastamento do decano do Supremo Tribunal Federal (STF), Celso de Mello, que se recupera de uma cirurgia, tem contribuído para que julgamentos importantes da Segunda Turma da Corte – com impacto direto sobre o ex-ministro Sergio Moro e os rumos da Operação Lava Jato – terminem empatados. Levantamento do jornal O Estado de São Paulo feito em sessões do colegiado neste ano aponta que, em ao menos sete julgamentos realizados sem a presença do decano, o placar foi de 2 a 2, aplicando assim o princípio jurídico de que, em caso de empate, o réu deve ser beneficiado.
Esse princípio é conhecido como “In dubio pro reo”, expressão em latim que significa “na dúvida, a favor do réu”. Ou seja, se não há certeza sobre a culpa do imputado — por insuficiência de provas, por exemplo —, o julgador deve decidir de forma a beneficiar aquele que está sentado no banco dos réus, inocentando-o das acusações.
A aplicação do "In dubio pro reo" , presente no Regimento Interno do STF, segue outro princípio clássico do Direito, a presunção da inocência. Este dispositivo, consagrado na Constituição Federal de 1988 e na Declaração Universal dos Direitos Humanos, adota como regra a inocência do acusado até que se prove o contrário.
A Segunda Turma é composta por cinco dos 11 ministros do STF. Entre os casos que aguardam uma definição do colegiado está o habeas corpus em que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva acusa Moro de ser parcial ao condená-lo na ação do tríplex do Guarujá — esse julgamento foi iniciado em dezembro de 2018 e até hoje não foi concluído.
Outro processo sem previsão de julgamento na Turma é a ação em que o Ministério Público do Rio contesta a decisão do Tribunal de Justiça local que garantiu foro privilegiado ao senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ) no caso Queiroz. O filho do presidente da República é investigado pela prática de "rachadinha" quando era deputado estadual no Rio de Janeiro.
In dubio pro reo: opinião divergente na Segunda Turma beneficia réus
Responsável por julgar casos da Lava Jato, a Segunda Turma expõe as divisões internas do Supremo quando se trata da operação que desbaratou um esquema bilionário de corrupção.
De um lado, o relator dos processos relacionados ao caso, Edson Fachin, e a ministra Cármen Lúcia são considerados magistrados mais "punitivistas", linha-dura, tendendo a votar pela condenação de réus e a favor dos interesses de investigadores. De outro, Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski são ministros garantistas, mais críticos à atuação do Ministério Público e mais inclinados a ficar do lado dos direitos dos investigados. Com essa divisão, muitas vezes cabe a Celso de Mello definir o placar do resultado.
"Embora mais garantista, Celso de Mello não é um voto previsível. Os votos de Gilmar e Lewandowski, em matéria de garantias processuais, tendem a ser pró-acusado, ao passo que Fachin e Cármen tendem a confirmar a higidez dos atos processuais. Sem Celso, as decisões tendem a empatar o que leva a um resultado favorável ao paciente do habeas corpus. Um placar semelhante é esperado no habeas corpus do ex-presidente Lula, dada a similaridade dos casos", afirmou o professor criminalista Davi Tangerino, da Fundação Getúlio Vargas (FGV).
No caso em que Lula aponta suspeição de Moro no tríplex, Cármen e Fachin votaram em dezembro de 2018 contra as pretensões do petista. Ainda faltam votar Gilmar, Lewandowski e Celso de Mello que se aposenta em 1º de novembro, quando completa 75 anos. Não há previsão de quando o presidente da Segunda Turma, Gilmar Mendes, que pediu vista e ainda não devolveu o caso para análise dos colegas, vai pautar o julgamento.
Procurado pela reportagem, Celso de Mello informou que ainda não tem previsão de retorno aos trabalhos. "Fui submetido a uma cirurgia de que estou, agora, convalescendo. Em 52 anos de serviço público, esta é a quarta licença médica que, por razões de necessidade, fui obrigado a requerer", disse o decano.
Três julgamentos terminaram empatados no colegiado na última terça-feira
Na última terça-feira, diante da ausência de Celso de Mello, três julgamentos da Segunda Turma acabaram empatados, prevalecendo nesses três casos decisões que favoreceram os réus. Inspirado no princípio do "in dubio pro reo", o Regimento Interno do Supremo prevê que, em caso de empate nos julgamentos de habeas corpus e em recursos em matéria criminal, "prevalecerá a decisão mais favorável ao paciente ou réu" (artigo 150, parágrafo 3º).
Foi o que ocorreu, por exemplo, no julgamento em que a Segunda Turma decidiu anular uma sentença de Moro no caso Banestado, que mirou um esquema de evasão de divisas entre 1996 e 2002. A atuação de Moro foi considerada parcial por Gilmar e Lewandowski que já sinalizaram que devem votar dessa forma no pedido de suspeição apresentado por Lula.
Expoentes da ala mais crítica à Lava Jato, Gilmar e Lewandowski também se aliaram no julgamento que abriu uma brecha para a anulação de acordos de colaboração premiada. A Segunda Turma acabou decidindo que réus delatados têm o direito de contestar o uso de acordos de colaboração premiada em ações penais que os atinjam.
A posição do colegiado contrasta com o entendimento do plenário, que em 2015 decidiu que apenas as partes (ou seja, os delatores e o Ministério Público) podem questionar as delações — ou seja, os delatados não teriam legitimidade para questionar a validade dos acordos.
Na avaliação de especialistas e advogados criminalistas, o entendimento da Segunda Turma do STF abre brecha para que mais investigados acionem a Justiça para anular o uso de delações em apurações em curso. Os processos examinados não estavam relacionados à Operação Lava Jato, mas integrantes da Corte avaliam que a análise do caso pode trazer reflexos em outra delação — a dos irmãos Joesley e Wesley Batista, do grupo J&F, que ainda aguarda uma definição do plenário do STF.
"Esse novo entendimento da 2ª Turma do STF é muito importante porque não se pode preterir, deixar para trás, o interesse de quem é atingido por alguma delação, de falar contra essa delação mesmo ele sendo um terceiro. Ele é um terceiro, mas é um terceiro atingido, portanto ele há de ter legitimação para contestar a celebração de uma determinada delação", disse o advogado Alberto Zacharias Toron.
O terceiro empate da Segunda Turma na última terça-feira ocorreu na análise do caso de um conselheiro do Tribunal de Contas do Estado de Mato Grosso (TCE-MT) investigado pela suposta prática de corrupção passiva no exercício da função pública. Com Gilmar e Lewandowski a favor do investigado, e Cármen e Fachin contra, a Turma acabou determinando o retorno do conselheiro às atividades.
No início do ano, antes de ser declarada a pandemia do novo coronavírus, a Segunda Turma do STF também contrariou o juiz federal Marcelo Bretas e manteve a soltura de dois ex-secretários do ex-governador Sérgio Cabral investigados no âmbito de um desdobramento da Lava Jato no Rio. O empresário Gustavo Estellita, acusado de fraudes na área de Saúde do Rio, foi outro investigado beneficiado por empate — e mantido solto. Na época, Celso de Mello estava de licença médica devido a uma cirurgia no quadril.
Em março, mais uma vez dividida, a Segunda Turma do Supremo determinou que o inquérito envolvendo o ex-secretário de Transportes do Rio de Janeiro Júlio Luiz Baptista Lopes fosse remetido para a Justiça Eleitoral ao invés da 7ª Vara Federal do Rio de Janeiro, comandada por Bretas, responsável pelos processos da Lava Jato fluminense.
O colegiado também tirou da Justiça Federal de São Paulo um inquérito envolvendo o ex-senador Paulo Bauer (PSDB-SC) e determinou o envio do caso para a Justiça Eleitoral de Santa Catarina. Nos dois casos, foram atendidos os pedidos dos réus.