Em meio a uma das maiores recessões da história, em setembro de 2015 o Brasil perdeu o “selo de bom pagador” da Standard & Poor's (S&P), uma das três principais agências de classificação de risco do mundo. Em dezembro do mesmo ano a Fitch fez o mesmo, e logo foi seguida pela Moody's, que tirou do país o chamado "grau de investimento" em fevereiro de 2016.
A busca pela recuperação da nota de crédito começou no governo de Michel Temer. A tarefa, porém, não é fácil, por mais que o país pareça estar no rumo certo para cumpri-la.
O resultado fiscal melhorou no primeiro ano do governo Bolsonaro, com queda no déficit primário; a dívida bruta do setor público recuou pela primeira vez em seis anos; o governo aprovou a reforma da Previdência e encaminhou ao Congresso uma série de propostas para aliviar os gastos públicos; e os preços de ativos no mercado financeiro se aproximam de patamares compatíveis com o grau de investimento. Mesmo assim, a equipe econômica não espera uma retomada rápida da nota de crédito. E as agências de rating também não estão alimentando expectativas nesse sentido.
O governo federal encerrou o ano passado com um rombo de R$ 95 bilhões, o equivalente a 1,3% do Produto Interno Bruto (PIB). Esse foi o chamado déficit primário – a diferença entre as receitas e despesas do governo, excluindo gastos com a dívida pública. Embora o país tenha completado seis anos com as contas no vermelho (e isso antes mesmo de contabilizar os juros da dívida), o desempenho de 2019 foi melhor que a meta inscrita no Orçamento (que estimava um buraco de R$ 139 bilhões) e que o fechamento de contas de 2018 (rombo de R$ 120 bilhões). Foi também o menor déficit desde 2014.
Mas, em nota publicada na segunda-feira (10), a Fitch Ratings deu a entender que a melhora fiscal de 2019 (ou "despiora") não será – nem de longe – suficiente para o país retomar o selo de bom pagador.
Na avaliação da agência, o desempenho fiscal brasileiro em 2019 se deu parcialmente devido a fatores pontuais e à baixa de juros. Porém, "a estabilização e redução permanentes da dívida dependerão da capacidade do governo de implementar sua agenda de reforma fiscal e da recuperação econômica".
O relatório da Fitch explica que o resultado fiscal de 2019 foi beneficiado por receitas extraordinárias, como o pagamento antecipado de empréstimos do BNDES. A tendência, avalia a agência, é de que daqui em diante "a dívida aumente de forma mais devagar, mas de forma constante, além de déficits primários contínuos e uma recuperação econômica frágil".
Cinco dias antes desse relatório, a mesma Fitch já havia sinalizado que a recuperação de nota de crédito do Brasil se dará apenas no médio e longo prazo. Atualmente Brasil está três degraus abaixo do grau de investimento da agência. Segundo a diretora para as Américas, Shelly Shetty, a média de recuperação dessa nota é de seis anos, mas países como Colômbia e Uruguai demoraram 10 e 11 anos, respectivamente, para reconquistarem o grau.
A demora na recuperação do grau de investimento, portanto, não seria exclusividade brasileira. Um estudo publicado em 2015 pelos economistas do Banco Central da Espanha Carmen Broto e Luis Molina revelou que as agências reagem de forma rápida e forte à piora das condições, mas hesitam em subir a nota diante de melhoras. “Uma vez rebaixados, pouquíssimos países recuperam seu status prévio”, diz o levantamento.
O que falta para a nota de crédito subir
"O fundamental é recuperar a institucionalidade da política fiscal, os indicadores fiscais e o próprio crescimento do PIB", diz o economista e mestre em finanças públicas Guilherme Tinoco.
Depois de encolher 3,55% em 2015 e 3,28% em 2016, o PIB brasileiro avançou muito pouco nos três anos seguintes: 1,32% tanto em 2017 quanto em 2018, e algo próximo de 1% no ano passado. A expectativa mediana de bancos e consultorias aponta para um crescimento de 1,12% em 2019, ao passo que o IBC-Br, índice de atividade econômica do Banco Central, sugere um resultado mais fraco, de 0,89%. Para 2020, o mercado espera uma alta próxima de 2,3%.
O controle das contas públicas tem papel fundamental na expectativa dos investidores sobre um país. Não à toa, a perda do grau de investimento do Brasil aconteceu paralelamente ao crescimento da dívida pública.
A chamada Dívida Bruta do Governo Geral – que abrange o governo federal, os governos estaduais e municipais, excluindo o Banco Central e as estatais – é uma das principais referências para avaliação por parte das agências de classificação de risco. Na prática, quanto maior a dívida, maior o risco de calote.
A dívida bruta subiu sem parar por meia década, de 2013 a 2018, período em que saltou de 51,5% para 76,5% do PIB. Em 2019, no entanto, a soma dos débitos recuou para o equivalente a 75,8% do PIB, refletindo em parte a queda dos juros, mas também muito influenciada pelas devoluções feitas pelo BNDES ao Tesouro – um evento não recorrente.
Foi essa questão pontual que fez a Fitch alertar para a necessidade de mais reformas fiscais e crescimento econômico para que haja uma estabilização mais duradoura da dívida.
Segundo o Relatório de Acompanhamento Fiscal (RAF) da Instituição Fiscal Independente (IFI), os principais condicionantes do aumento do endividamento a partir de 2014 foram os juros e o próprio déficit primário.
“Os juros já pressionavam a dívida antes de 2014, por serem historicamente elevados. O fato novo ocorrido a partir daquele ano foi a redução do superávit primário e a reversão de superávit para déficit”, diz o levantamento. Quando o governo gasta mais do que arrecada, a dívida bruta cresce, os riscos aumentam e, por isso, os investimentos tendem a sair do país.
A queda da taxa básica de juros (Selic) já vinha colaborando, nos últimos anos, para uma desaceleração no crescimento da dívida. O impacto que está por vir será ainda maior, de acordo com estimativa do Ministério da Economia, para quem a despesa com o pagamento de juros da dívida pública federal cairá R$ 417,6 bilhões até 2022.
Tinoco acredita que o governo precisa cumprir três missões para convencer as agências a revisarem o rating brasileiro: mostrar que o teto de gastos será efetivamente cumprido; direcionar melhor uma solução para a crise dos estados; e fazer o país voltar a crescer.
Porém, ele faz ressalvas à gestão de Jair Bolsonaro: “O governo deveria reduzir os níveis de incertezas na economia brasileira, mas vai na contramão ao governar de maneira caótica e com abordagem muito negativa em pautas nas quais o mundo presta cada vez mais atenção, como o meio ambiente".
Para o gestor de portfólios da Vérios Investimentos Pedro Lula Mota, o que mais falta é crescimento econômico. "A retomada do crescimento econômico ainda não é clara. Não existe segurança se de fato a economia brasileira voltará a acelerar, e com isso, o Estado a arrecadar mais e a trajetória da dívida, no médio prazo, se estabilizar."
Para isso ocorrer, ele defende a continuidade na agenda de reformas fiscal e administrativa. E a agenda de privatizações e concessões tem de decolar. "Está ocorrendo um crowding-in na economia brasileira: o capital privado está puxando o crescimento econômico e o gasto público está sendo contido. Nesse sentido, os índices de confiança com a economia precisam continuar melhorando, o desemprego precisa cair e o investimento privado, acontecer. Apenas assim para a aceleração da atividade econômica se consolidar."
Ele vê chances de que, até o fim do ano, as agências elevem a nota da dívida pública brasileira como forma de reconhecer os esforços e aprovações dos últimos meses.
"Contudo, o Brasil ainda está três patamares abaixo do grau de investimento em duas agências de risco e dois patamares abaixo em outra. É uma longa caminhada e precisamos de mais tempo para provar para as agências e investidores estrangeiros que de fato as reformas surtiram efeitos, que a economia voltou a crescer e a consolidação fiscal ocorreu", conclui.
Em nota, o Tesouro Nacional enfatizou a importância da manutenção do ajuste fiscal: "As medidas encaminhadas ao Congresso pelo governo, como, por exemplo, a proposta de emenda constitucional que reformula o pacto federativo e busca reduzir a rigidez dos gastos obrigatórios, mostram-se essenciais para a continuidade do ajuste fiscal, possibilitando a retomada do crescimento e uma melhora da avaliação pelas agências de rating internacionais".
O que significa grau de investimento e por que ele importa
O grau de investimento é uma espécie de selo que as agências de classificação de risco dão para uma empresa ou país.
Na prática, funciona como um boletim escolar: as notas servem como uma referência para saber quem está fazendo o dever de casa. No caso do mercado financeiro, significa que quem está com as contas em dia provavelmente pagará suas dívidas. Assim, o investidor fica mais tranquilo – e cobra juros mais baixos – ao emprestar dinheiro a determinadas empresas ou países.
Porém, quando há problemas financeiros e as notas caem, a empresa ou país entra no chamado grau especulativo. Nesse patamar, a probabilidade de deixar de pagar a dívida cresce à medida que a nota diminui.
O mercado financeiro costuma acompanhar a avaliação das três principais agências de classificação risco, citadas no início deste texto. Elas enviam periodicamente técnicos aos países avaliados para que eles analisem as condições da economia e deem uma nota – ou rating, na língua do mercado.
As empresas do país também são avaliadas e ganham uma nota. Além das características financeiras específicas de cada uma, a avaliação é impactada pela nota geral que o país-sede recebe. Ou seja, se o Brasil está com dificuldades para fechar as contas públicas no azul, isso pode resultar em rebaixamentos também para suas empresas.
Uma nação ser rebaixada, portanto, significa que todos os agentes do mercado – indivíduos, empresas, fundos – passam a ter mais dificuldades para captar investimentos. Sem o selo de bom pagador, muitos investidores estrangeiros podem desistir de aplicar no país ou cobrar juros maiores para emprestar dinheiro a empresas e aos entes federativos.
A trajetória do grau de investimento brasileiro
Em abril de 2008, o Brasil ganhou o grau de investimento pela primeira vez em sua história, conferido pela Standard & Poor’s. A decisão foi seguida pelas outras duas grandes agências: Fitch, no mês seguinte, e Moody’s, em setembro de 2009.
Mas um processo gradual de desorganização da política fiscal, juntamente com a chamada "contabilidade criativa" – que fundamentou o impeachment de Dilma Rousseff – culminou na perda desse selo de bom pagador. A partir de setembro de 2015, o Brasil passou a constar da relação de países “especulativos”, aqueles em que a chance de calote é maior.
Em dezembro do ano passado, a Standard & Poor’s revisou de estável para positiva a perspectiva do rating do Brasil, mantendo a nota em “BB-”. A agência Fitch manteve a classificação em “BB-”, com perspectiva estável. Já a Moody’s mantém a nota do país em “Ba2”, a mais baixa entre as agências.
Na área econômica há uma percepção de que as notas de crédito das agências estão um pouco desalinhadas da percepção do próprio mercado financeiro sobre o risco de investimento no Brasil.
Lula Mota, da Vérios Investimentos, diz que o mercado costuma antecipar os movimentos e ser mais rápido na precificação de ativos. Por isso, avalia, diversos ativos estão em patamares praticamente considerados de "grau de investimento".
Reflexo disso, explica, está no risco-país, medido pelo CDS (Credit Default Swap) e que informa a desconfiança dos investidores, está abaixo de 100 pontos. Em 2019, a taxa acumulou queda de 52%, sendo 22% apenas em dezembro, o melhor desempenho entre todos os emergentes. "Em setembro de 2018, por exemplo, ele estava perto de 300 pontos", observa o gestor de portfólios.
Parte dessa melhora está ligada à PEC do Teto de Gastos e a seu papel no controle das despesas e na redução dos juros pagos pelo país para captar recursos.
"Se analisarmos a taxas das NTN-Bs [tipo de título do Tesouro] com vencimento em 2045, elas saíram de 6% ao ano para 3,44%, evidenciando que a percepção de risco caiu substancialmente para ativos de longo prazo brasileiro", diz Lula Mota.
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