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Os militares observam com críticas e preocupações o cenário político pós-eleitoral. Sejam da ativa ou da reserva, a maioria defende os protestos organizados por uma parcela de conservadores desde o fim das eleições, embora nem todos concordem com a concentração das manifestações na frente de quartéis. Também há um entendimento majoritário de que a contestação do Partido Liberal (PL) ao resultado da eleição presidencial é legítima e que determinações judiciais e outras ações do ministro Alexandre de Moraes são equivocadas e até inconstitucionais.
A decisão sumária de rejeitar a representação do PL que pedia a anulação de votos computados em 279 mil urnas no segundo turno é uma das determinações do presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) avaliada como controversa por militares da reserva ouvidos pela Gazeta do Povo. Segundo ele, o despacho de Moraes é criticado por ignorar uma suspeita de fraude do processo eleitoral e também pelo risco de inflamar ainda mais os protestos no país.
Em caso de escalada da tensão nas ruas, caberia aos militares garantirem a lei e a ordem, o que poderia resultar em uma intervenção militar, como demandam muitos dos manifestantes na frente dos quartéis. Isso só ocorreria, porém, em um cenário mais drástico, com desobediência civil, desordem e possíveis conflitos entre civis, analisa o general de Exército ("quatro estrelas") reformado Maynard Santa Rosa, antigo integrante do Alto Comando do Exército.
"Se houver uma grave perturbação da ordem onde as forças policiais não conseguirem controlar, aí é fatal que haja uma intervenção das Forças Armadas", analisa. Santa Rosa foi titular da Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE) da Presidência da República na gestão do presidente Jair Bolsonaro (PL), mas pediu demissão ainda em 2019 por divergências e críticas ao governo.
O general de brigada reformado Paulo Chagas é outro que não descarta a possibilidade de uma reação dos militares pelas mesmas condições que ele classifica como "cólera das multidões", embora discorde da interpretação dada por alguns militares e juristas ao artigo 142 da Constituição. "É melhor resolvermos o problema sem que haja interferência das Forças, pois uma atitude nesse sentido para colocar ordem na casa não seria legal. Mas seria legítima e necessária", diz.
Mesmo sem entender que há amparo constitucional para uma medida tão drástica, Chagas avalia que, em um cenário de necessidade do restabelecimento da ordem, a medida estaria amparada no "juramento do soldado". "Para o soldado, o juramento está acima de todas as garantias, até da Constituição", diz o general, um crítico das atitudes de Bolsonaro e da relação construída entre o governo e o Centrão.
O general de divisão da reserva Santos Cruz, ex-ministro-chefe da Secretaria de Governo e desafeto de Bolsonaro e do governo, não partilha das ideias de que as Forças Armadas possam atuar como um "poder moderador". Ele também prega respeito à Constituição, que, no entendimento dele, não confere nenhum direito explícito de que os militares possam interferir no funcionamento de outros poderes.
"Qual é o nosso poder moderador? Nossa Constituição, nossas leis, nossos parlamentares, nosso Judiciário e nosso Executivo com todos os defeitos que eles têm. Eles são obrigados a procurar uma conciliação. Eles são obrigados a procurar a harmonia prevista na Constituição sem interferência da área militar", disse em entrevista ao site BBC News Brasil.
O coronel da reserva Walter Félix Cardoso Júnior discorda da visão de Santos Cruz por entender que o Brasil já se encontra em uma situação de desordenamento institucional. Ele avalia que o país caminha sobre um "fio de navalha" e considera que o atual cenário, sobretudo após a rejeição de Moraes ao recurso do PL, é "muito perigoso". "Nós estamos à frente de um abismo, o risco da gente entrar em uma convulsão social está muito grande", analisa. Crítico de Bolsonaro, ele atuou com Santa Rosa na SAE e também se demitiu.
Qual é o cenário político mais provável na avaliação dos militares
A despeito de avaliações mais pessimistas entre os militares, o cenário mais provável considerado pelos oficiais-generais é o da diplomação do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e sua posse em 1º de janeiro de 2023. "É o mais provável por causa dos riscos, das omissões e da conciliação de interesses que envolvem o atual processo, embora eu, particularmente, entenda que é um erro", diz o general Santa Rosa.
Ele afirma ter suspeitas sobre o processo e o resultado eleitoral, e entende que a contestação feita pelo PL recusada por Alexandre de Moraes é legítima.
O general Paulo Chagas tem a mesma avaliação sobre o direito de questionamento do resultado eleitoral, mas avalia que, caso o cenário não se altere e não se tenha provas de fraude nas eleições, considera que Lula tem o direito de "subir a rampa" e tomar posse, conforme determina a Constituição.
"Se ele tiver o direito de subir [a rampa], e o direito de subir quem dá a ele é a lei, isso vai acontecer. O melhor caminho é o do direito, fazer as coisas certas. Se tenho desconfiança que alguma coisa não transcorreu, vamos provar", diz Chagas. "Se Lula assumir e o processo continuar, pesquisar e verificar que houve fraude, teremos que cancelar [o mandato do petista] e fazer nova eleição, como ocorreu na Alemanha", complementa.
O general Santos Cruz disse à BBC News Brasil que nem o governo eleito, nem a população precisam temer o compromisso das Forças Armadas com o regime democrático. Anteriormente à Gazeta do Povo, ele se mostrou contrário a pedidos de intervenção militar. Para ele, os brasileiros que se manifestam neste momento são importantes para a construção de uma oposição que favorece a fiscalização sobre os atos e decisões do governo eleito, mas desde que seja construtiva e organizada.
Ex-oficial da área de inteligência do Exército, o coronel Félix defende "muita paciência e tolerância", mas garante que os quartéis não estão "quietos" e que a atividade de inteligência da força terrestre está vigilante a tudo. "As autoridades militares estão muito serenas, jogam uma grande partida de xadrez com o STF [Supremo Tribunal Federal] na pessoa do Alexandre de Moraes. Há um jogo em que ele quer que o Exército e as Forças Armadas errem, e vice-versa. Tudo com o intuito de resolver essa situação no campo político e não de outra forma", diz.
As críticas dos militares a decisões de Moraes e do TSE
A rejeição de Moraes ao pedido de contestação do PL sobre as eleições não foi a única medida que irritou militares. O recente pedido de manifestação da Procuradoria-Geral da República (PGR) a um pedido de afastamento do ministro da Defesa, general Paulo Sérgio Nogueira, causou constrangimento entre militares da ativa e da reserva nas três forças.
Dois militares da ativa em funções nas Forças Armadas, não no governo federal, afirmam à Gazeta do Povo que a reação foi muito negativa e crítica na caserna. Embora o pedido de parecer da PGR seja uma praxe jurídica, a percepção é de que Moraes poderia ter rejeitado a solicitação e que ele não teria feito isso para constranger o ministro, que é ex-comandante do Exército.
O general Santa Rosa sustenta que a decisão foi mal avaliada e incomoda militares. "Quem teria que ser afastado é o ministro do Supremo. Incomoda todo mundo porque ninguém pode aceitar violação das garantias constitucionais e ser conivente, e é o que está acontecendo. Você não tem liberdade de opinião para certos assuntos. [Não pode] emitir opinião sobre urnas eleitorais, sobre decisões do tribunal, sobre essas coisas... isso é uma aberração", diz.
O coronel Félix avalia que a decisão de Moraes foi mais um motivo pelo qual entende que as Forças Armadas têm se comportado de uma forma "muito equilibrada e amadurecida" para evitar uma "situação de confronto". Outra sentença do magistrado criticada pelo militar é a de que conselhos tutelares coíbam a presença de crianças nos protestos pelo país.
Já o vice-presidente Hamilton Mourão (Republicanos) é crítico da decisão de Moraes para que polícias militares e departamentos estaduais de trânsito (Detrans) atuem para fiscalizar rodovias federais. Ele entende ser essa uma determinação inconstitucional e ilegítima por violar o pacto federativo.
Senador eleito pelo Rio Grande do Sul, o general também questiona a reunião entre Moraes e comandantes estaduais das PMs na última quarta-feira (23) para discutir sobre protestos e eleições. Em documento elaborado por sua assessoria jurídica ao qual a reportagem teve acesso, Mourão sustenta que a reunião é indevida, uma vez que compete à Polícia Federal (PF) crimes eleitorais.
"Se for para atuar em apoio ao TSE, não se justifica porque já se encerrou o pleito eleitoral. Se for para desobstruir rodovias federais, não pode porque se trata de atribuição constitucional da Polícia Rodoviária Federal (PRF)", informa o estudo. "Se for para atuar como força auxiliar do TSE, é inconstitucional porque sua competência é para atuar como polícia ostensiva, sem competência para lavratura de autos ou investigação, além do mais, a atuação subsidiária da Polícia Militar é pontual, inclusive quando atua como força auxiliar do Exército, não cabendo uma orientação ou determinação genérica aos comandantes gerais", complementa.
Como generais observam os protestos pelo país
Mourão defende os protestos no Brasil e classifica o movimento como uma "catarse coletiva". "Essas pessoas não estão na rua de forma desordeira, estão num processo de, vamos dizer assim, numa catarse coletiva, não é, eu posso colocar dessa forma, no sentido de aceitar algo que eles consideram que não foi correto. E o tempo é o senhor da razão", disse em entrevista ao fim de uma visita à sede da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), na quarta.
O vice-presidente avaliou, ainda, que as manifestações não são "golpistas". "Isso foi uma coisa que vocês da imprensa estão colocando. Isso é uma manifestação de gente no Brasil, é uma questão interna nossa, que não se conformou com o processo, que considera que o processo é viciado", completou.
O coronel Félix entende que as manifestações são legítimas. "É o direito do povo, esse direito está garantido na Constituição e o povo está exercendo o seu direito", diz.
O general Paulo Chagas concorda, mas pondera que os protestos deveriam ser feitos na Esplanada dos Ministérios, em frente ao Senado, não em frente aos quartéis.
"O local não é apropriado para pressionar quem tem que ser pressionado. O Congresso, particularmente o Senado, é quem tem ingerência e poder sobre o STF, aquele negócio de peso e contrapeso", diz Chagas, que é favorável à tramitação de pedidos de impeachment de ministros da Suprema Corte. "O Senado tem poder para pressionar os ministros. Se fazem isso, os militares estarão fora dos limites da sua competência", complementa.
O general Santos Cruz entende que muitos dos questionamentos e acusações de fraude são feitas sem base técnica. "Isso não é racional, então não adianta você querer explicar, você querer discutir, né?", disse ao site Metrópoles. "E o fanatismo sempre termina em violência, você não tem saída, às vezes não termina em violência física, mas acaba brigando com amigos, em ambiente familiar", complementou.