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O deputado federal Domingos Sávio (PL-MG) busca apoio para fazer tramitar no Congresso uma proposta de emenda à Constituição (PEC) que dá ao Legislativo o poder de rever decisões tomadas pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Pela "PEC anti-STF", o Congresso poderia revogar medidas do Supremo que não tenham sido aprovadas de forma unânime pelos ministros da Corte e que, segundo o texto, extrapolem "os limites constitucionais".
O projeto ainda não foi protocolado por Sávio, que coleta assinaturas que o permitiriam iniciar a tramitação – é necessário o aval de 171 deputados para que a proposta possa começar a ser analisada na Câmara. Caso essa etapa seja superada, a PEC deverá ser apreciada pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) da Casa e, depois, por uma comissão especial criada especificamente para discuti-la. Para passar a valer, precisa de aprovação de três quintos dos deputados federais e dos senadores, com votação em dois turnos em ambas as casas. Por se tratar de uma PEC, a emenda não passa pela sanção ou veto do presidente da República, bastante apenas ser promulgada pelo Congresso.
Sávio é aliado de Jair Bolsonaro (PL) e elaborou a PEC anti-STF em um momento em que o presidente faz críticas a ministros do STF. Na terça-feira (14), por exemplo, Bolsonaro disse que o ministro Edson Fachin deu uma "tremenda colaboração" para o narcotráfico por causa de uma decisão que restringiu operações policiais em favelas do Rio de Janeiro. Bolsonaro também voltou a criticar as urnas eletrônicas e o sistema eleitoral brasileiro. Fachin também é o presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Além de Fachin, Bolsonaro faz reiteradas críticas aos ministros Luís Roberto Barroso e Alexandre de Moraes.
A proposta de Sávio é apoiada por outros expoentes do Centrão no Congresso – o principal bloco que dá sustentação ao governo Bolsonaro. Reportagem do jornal O Estado de S. Paulo que revelou a existência da PEC, menciona que deputados como Wellington Roberto (PL-PB) e Marcos Pereira (Republicanos-SP) endossariam a proposta.
Publicamente, porém, são poucas as manifestações de apoio ao projeto. O líder do governo na Câmara, deputado Ricardo Barros (PP-PR), disse ao portal UOL que não conhecia o teor do texto da PEC anti-STF. A liderança do PL na Câmara informou à Gazeta do Povo a que a proposta é, no momento, um projeto individual de Sávio, sem o apoio formal da bancada do partido de Bolsonaro.
Já representantes da oposição questionaram a PEC e viram na iniciativa uma ação para retirar poderes do Supremo. "O Centrão de Bolsonaro quer ser censor das decisões do STF, como na Constituição autoritária do Estado Novo, de 1937, a 'Polaca'. Os chacais da democracia mandam às favas seus últimos escrúpulos de consciência", publicou em suas redes sociais o senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP). O deputado Ivan Valente (Psol-SP) afirmou que a iniciativa visa dar ao Centrão o poder de "legislar em causa própria". Já o deputado Orlando Silva (PCdoB-SP) afirmou que a proposta é inconstitucional, pois violaria a separação dos poderes, uma das cláusulas pétreas da Constituição.
Mas, além da resistência que a PEC anti-STF terá da parte da oposição, a proposta tem outro desafio a superar. Segundo a CNN, o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), afirmou que a proposta não é prioridade. Isso teria sido feito em reunião com líderes partidários. A reportagem da CNN também ouviu líderes partidários, que apoiaram a decisão de Lira de não priorizar a votação da PEC caso ela comece a tramitar. A avaliação é de que a medida seria inconstitucional e só serviria para agravar a crise entre Poderes.
Como a PEC anti-STF funcionaria para revisar decisões do Supremo
O texto da PEC anti-STF determina que a revisão de decisões do Supremo pode se dar quando não houver unanimidade por parte dos integrantes da Corte e houver entendimento de que a medida "extrapole os limites constitucionais". A PEC não especifica quais seriam esses limites e quem faria essa interpretação.
A proposta aponta também que a revisão ocorreria por meio de um decreto legislativo, que exigiria aprovação de três quintos dos deputados e senadores, com dois turnos de votação tanto na Câmara quanto no Senado – ou seja, o mesmo quórum de votação requerido para aprovação de uma PEC. Na justificativa para a proposta, o deputado Domingos Sávio alega que a conduta atual do STF coloca em risco o Estado Democrático de Direito, por violar a independência entre os poderes. Segundo o deputado, o Supremo atualmente "decide e julga contrariando a ampla maioria dos representantes do povo".
"Desta forma, é fundamental que haja recurso capaz de rever a decisão de afronta a vontade da ampla maioria do povo devidamente representado no Congresso Nacional. Por esta razão [a PEC é necessária], considerando o ambiente cada dia mais tenso diante de decisões polêmicas e controversas, proferidas muitas vezes por um indivíduo em detrimento da opinião de milhões de brasileiros", relata a justificativa da PEC.
Uma das críticas de Sávio tem com alvo as decisões monocráticas, que são tomadas de forma individual por ministros do STF e que, na avaliação de apoiadores de Bolsonaro, prejudicam o trabalho do governo federal.
Um exemplo de decisão monocrática habitualmente contestada por Bolsonaro e seus defensores é a instalação do inquérito das fake news. A medida foi determinada em 2019 pelo ministro Dias Toffoli, então presidente do STF, e é vista pelos apoiadores de Bolsonaro como um ataque à liberdade de expressão. Outro exemplo de decisão monocrática que é alvo de ataques dos governistas é a prisão do deputado Daniel Silveira (PTB-RJ), imposta inicialmente de forma individual pelo ministro Alexandre de Moraes.
Sávio cita também na justificativa da PEC que a possibilidade de revisão das decisões do STF "poderá, por um lado evitar injustiças e abusos de poder se revogadas e, por outro, fortalecer a convicção do acerto se mantido".
Proposta esbarra em cláusula pétrea da Constituição, diz especialista
O advogado constitucionalista Camilo Onoda Caldas, sócio do escritório Gomes, Almeida e Caldas Advocacia, disse não conhecer em outros países sistemas de controle do Judiciário que se assemelhem ao previsto na PEC de Domingos Sávio. Segundo ele, alguns países preveem a revisão de decisão do Judiciário, mas em ambientes em que as cortes detêm mais poder do que o estabelecido no Brasil. "Esse sistema de rever uma decisão que não é unânime eu desconheço. O que estão querendo fazer não é com base em modelos internacionais de sucesso", diz o especialista. Para ele, a PEC é um exemplo de "casuísmo".
Caldas diz que o ordenamento jurídico brasileiro já têm, hoje, mecanismos para punir ministros do STF que cometam crimes de responsabilidade, como a abertura de processo de impeachment pelo Senado. "E se criássemos outra instância para regular o Judiciário, essa outra instância teria a palavra final. Sempre alguém vai ter a palavra final. E o ideal é que isso esteja com os magistrados, e não com políticos", afirma.
Além disso, existe a possibilidade de que a PEC, caso seja aprovada, acabe sendo declarada inconstitucional pelo próprio STF. Para outro especialista ouvido pela Gazeta do Povo, a separação de poderes, que pode ser violada caso a emenda seja aprovada, é considerada cláusula pétrea da Constituição – ou seja, um dispositivo que não pode ser modificado nem mesmo por PEC.
"A Constituição já estabelece os mecanismos pelos quais cada Poder pode atuar dentro do sistema de freios e contrapesos. A separação entre os Poderes e a forma como ela ocorre, inclusive, é cláusula pétrea e não pode ser modificada nem mesmo por emenda constitucional. Portanto, um decreto legislativo para sustar decisões do STF, ao meu ver, é inconstitucional, de modo que a PEC já nasce com problema insanável, se é que ela encontrará amparo dentro do Congresso", diz o advogado Francisco Caputo, integrante da Comissão Nacional de Estudos Constitucionais da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).