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O governo federal vem travando com o Congresso Nacional uma luta pelo poder de destinação de verbas do orçamento público, onde o controle sobre as emendas parlamentares é uma arma fundamental. O que está em jogo é a independência do Congresso em relação ao Executivo. Quando mais as emendas dos parlamentares crescem, diminui a capacidade do presidente Luiz Inácio Lula da Silva de barganhar apoio para os projetos do governo no Legislativo.
No início de agosto deste ano, decisões do Supremo Tribunal Federal, supostamente alinhadas como interesses do Executivo tentam quebrar a tendência dos últimos anos de fortalecimento e independência do Congresso. As emendas parlamentares foram suspensas por decisão judicial no dia 16 por falta de transparência no processo burocrático. Isso deu início a uma negociação sobre a forma de liberação das emendas e o montante envolvido.
As emendas parlamentares são uma forma que os congressistas têm de participar do orçamento da União. Elas são um instrumento para que o parlamentar, por meio do direcionamento de recursos para projetos, investimentos e obras em seus estados e municípios, favoreça sua base eleitoral. Além disso, uma das premissas das emendas é que os parlamentares conhecem melhor a realidade dos municípios e estados que os elegeram e que, portanto, são uma forma efetiva de solucionar questões que podem passar despercebidas ao governo federal.
Mas o montante e a forma de liberação das emendas são fatores decisivos no equilíbrio de poder entre o Executivo e o Legislativo, pois influem diretamente na capacidade do governo Lula de aprovar suas propostas e projetos no Congresso Nacional. No ano passado, por exemplo, o governo liberou R$ 5,3 bilhões em emendas para garantir a aprovação da Reforma Tributária na Câmara. Ou seja, se o Executivo tem a palavra final sobre a liberação das emendas, pode barganhar a aprovação de suas políticas no Congresso.
Por outro lado, à medida que o Parlamento traz para si o controle desses recursos, acaba por reduzir a margem de manobra do Executivo e aumenta a autonomia para que deputados e senadores aprovem ou não os projetos governistas.
Até 2015, a liberação das emendas era controlada totalmente pelo governo e, portanto, era amplamente utilizada pelo Executivo como moeda de troca junto a deputados e senadores para aprovação de projetos e medidas no Congresso.
O cientista político Leonardo Barreto explica que a liberação de emendas para os parlamentares era utilizada para premiar aliados e punir adversários. "Então o governo executava emendas de amigos, de quem o apoiava no Congresso Nacional e não executava o orçamento dos oposicionistas".
Luiz Filipe Freitas, cientista político e assessor da Malta Advogados, ainda afirma que a liberação de recursos também estava vinculada à troca de cargos públicos nos ministérios e outros órgãos da administração federal.
Contudo, a partir do segundo mandato de Dilma Rousseff, o Parlamento começou a ampliar seus poderes sobre a liberação e a execução das emendas progressivamente.
Agora, o governo não tem maioria no Congresso e, naturalmente, encontra dificuldades para a aprovação de algumas de suas pautas. Prova disso são as inúmeras derrotas que Lula tem acumulado desde que subiu a rampa do Planalto, em janeiro de 2023. A derrubada de vetos presidenciais, como o que colocava fim às saidinhas temporárias de presos, além da manutenção do veto do ex-presidente Jair Bolsonaro à criminalização das fake news são apenas duas delas.
O professor aposentado de Ciência Política da Universidade de Brasília (UnB) Paulo Kramer explica que, antes de 2015, vigorava o presidencialismo de coalizão, quando o Planalto “controlava a conta-gotas o pagamento das emendas e o Congresso dançava conforme a música do Executivo”. O professor complementa afirmando que o cenário mudou e que, atualmente, “é o Executivo que, se quiser governar, precisa agradar um parlamento financeiramente autônomo”.
Analistas políticos afirmam que o Brasil passa aos poucos e informalmente de um sistema de presidencialismo de coalizão para o semipresidencialismo, sistema que tem características do Parlamentarismo, onde o Congresso tem mais poderes que o Presidente da República.
Congresso iniciou seu controle sobre emendas parlamentares em 2015
O primeiro passo do Congresso para conseguir maior controle sobre sua parcela do orçamento foi dado em 2015, quando aprovou a Emenda Constitucional 86, que tornou as emendas individuais impositivas, ou seja, de execução obrigatória pelo governo, criando o orçamento impositivo.
Kramer explica que, em outubro de 2015, o governo petista de Dilma Rousseff não teria sido capaz de dissuadir a própria bancada do PT na Câmara a votar pela cassação do mandato do então presidente da Casa, Eduardo Cunha, filiado ao PMDB pelo Rio de Janeiro, no Conselho de Ética. O pedido de cassação de Cunha havia sido protocolado pelo Psol e pela Rede, com apoio de 50 parlamentares de ambas as legendas e também do PT, PSB, Pros, PPS e PMDB, por quebra de decoro parlamentar.
O pedido tinha como base um parecer da Procuradoria-Geral da República (PGR), que atestara como verdadeiras as informações de que Cunha e familiares teriam contas na Suíça e que teriam recebido dinheiro fruto do pagamento de propina em contratos da Petrobras investigados na Operação Lava Jato.
Nesta ocasião, o deputado não foi cassado, mas ainda assim teria retaliado o governo ao aprovar a execução obrigatória das emendas parlamentares individuais. Mas esse seria somente o início, pois, conforme explica Kramer, “de lá para cá, o Congresso não parou de avançar sobre a margem de despesas discricionárias”.
Congresso avança ainda mais sobre o orçamento em 2019
Em 2019 e 2020, nos primeiros anos do governo de Jair Bolsonaro, algumas das principais medidas que hoje conferem certa autonomia ao Congresso em relação a seu orçamento tiveram lugar. Três delas foram fundamentais: a inclusão das emendas de bancada no orçamento impositivo; a criação das transferências especiais, conhecidas como emendas pix; e a ampliação dos recursos para as emendas de relator.
Em junho de 2019, o Congresso tornou as emendas de bancadas estaduais também impositivas, fortalecendo o orçamento impositivo. A Emenda Constitucional 100, que instituiu a medida, ainda estabeleceu que metade do montante destinado pelas emendas de bancada estaduais deveria ser destinado para a realização de obras.
Além disso, também definiu que as emendas de bancada corresponderiam a 1% da receita corrente líquida da União. Naquele momento, o valor destinado para as emendas individuais, que também já eram impositivas, era de 1,2% da receita corrente líquida. Ou seja, com uma única medida, o Congresso aumentou em quase 100% os recursos sob sua gestão, que o governo tem a obrigação de pagar anualmente.
Em dezembro daquele ano, o Congresso Nacional ainda aprovou a Emenda Constitucional 105, de autoria da deputada federal Gleisi Hoffman (PT), que instituiu as transferências especiais. Apesar de terem ficado conhecidas como as emendas pix, as transferências especiais não são um tipo de emenda, mas de um novo procedimento para fazer a transferência dos recursos das emendas individuais para os estados e municípios.
Até aquele momento, para transferir os recursos das emendas individuais, o parlamentar precisava vinculá-las a algum programa ou convênio do governo, via algum ministério. Se quisesse enviar R$ 1 milhão para contribuir com a construção de um hospital em seu município, por exemplo, essa transferência teria que ser feita via convênio do Ministério da Saúde ou algum outro órgão que previsse esse tipo de despesa.
Com as transferências especiais, essa burocracia foi suprimida e os parlamentares passaram a fazer as transferências diretamente para as prefeituras, fundos municipais ou até mesmo instituições.
Conforme aprovado na Emenda Constitucional 105, até 50% do total de recursos destinados para as emendas individuais podem ser repassados via transferências especiais, sem a necessidade de serem vinculadas a uma finalidade específica (programa ou convênio do governo). Outro ponto aprovado, é que pelo menos 70% do valor total das transferências precisariam ser obrigatoriamente destinados para a realização de obras.
Essa maior flexibilidade das emendas pix acabou por trazer falta de transparência no uso desses recursos, que podem ser utilizados por prefeitos e secretários municipais de acordo com sua necessidade, já que não são vinculadas a programas federais.
Congresso busca tornar execução de emendas de relator e de comissão impositiva
Em outubro de 2019, o Congresso aprovou a Lei de Diretrizes Orçamentárias, seguindo as regras das Emendas 86 e 100, que tornaram impositivas as emendas individuais e de bancadas estaduais. Por extensão, os parlamentares aplicaram essas regras de impositividade às emendas de relator e de comissão, que, naquele ano, somaram cerca de R$ 30,7 bilhões.
Até aquele momento, as emendas de relator, que posteriormente ficaram conhecidas como orçamento secreto, eram usadas para correções pontuais no orçamento, com valores bem menores do que os aprovados para o orçamento de 2020. Elas consistem em recursos utilizados pelo relator-geral da Comissão Mista de Orçamento para destinar recursos federais a despesas que sejam do interesse de deputados e senadores. Por serem designados pelo relator da Comissão, os repasses não precisavam ser vinculados ao parlamentar que os indicou ou solicitou.
O então presidente da República, Jair Bolsonaro, vetou por duas vezes o caráter impositivo das emendas de relator e de comissão. Em janeiro de 2020, o Congresso acabou por acatar o veto. Ou seja, mesmo mantendo a previsão de recursos estipulada no orçamento para essas emendas (R$ 30,1 bilhões para as de relator e R$ 602 milhões para as de comissão), a liberação desses recursos seguia sendo de responsabilidade do Executivo.
O cientista político Leonardo Barreto avalia que, à época, o então presidente da Câmara, Rodrigo Maia (PSDB-RJ), trabalhou para construir mecanismos por meio dos quais ele mesmo pudesse gerenciar a base parlamentar, ao contrário da prática anterior, quando o governo conduzia essas negociações.
Barreto explica que o deputado “turbinou o orçamento que era dedicado ao Congresso e ele [o presidente da Câmara] distribuía verbas [por meio das emendas] da maneira como o Executivo fazia antigamente”. O cientista político ainda avalia que o atual presidente da Casa, Arthur Lira (PP-AL), também se vale desses mesmos mecanismos. “Isso tem um resultado claro na independência do Congresso [em relação ao Executivo]", disse.
STF questiona e acaba por proibir emendas de relator
Em junho de 2021, o Psol entrou com uma ação no STF pedindo a suspensão dos pagamentos das emendas de relator (orçamento secreto). Outros partidos que eram da oposição ao governo de Jair Bolsonaro também já haviam endereçado pedidos semelhantes ao STF, como o Cidadania e o PSB.
A relatora do caso, a então ministra Rosa Weber, que se aposentou em setembro de 2023, suspendeu o pagamento desse tipo de emendas em novembro de 2021. Em resposta à decisão da ministra, no início de dezembro daquele ano, o Congresso Nacional aprovou uma resolução que estabeleceu um limite de valor para as emendas de relator.
Conforme a nova regra aprovada pelo Congresso, o valor destinado às emendas de relator não poderia ultrapassar a soma dos recursos destinados para as emendas individuais e de bancada. Naquele momento, esse limite correspondia a cerca de R$ 16,2 bilhões.
Além do limite, os parlamentares teriam buscado resolver as questões de transparência das emendas, ao estabelecer que as indicações e solicitações que as fundamentavam fossem publicadas no site da Comissão Mista de Orçamento. Diante das determinações do Congresso, as emendas foram liberadas pelo plenário do STF em dezembro daquele ano.
Contudo, revertendo a própria decisão, em dezembro de 2022, o plenário do STF julgou o orçamento secreto inconstitucional, alegando que sua prática orçamentária era incompatível com a ordem constitucional brasileira e as emendas do relator-geral deveriam se destinar, exclusivamente, à correção de erros e omissões - como eram utilizadas antes de 2022.
A decisão do STF ainda concedeu aos ministros de Estado, cujos ministérios tivessem recebido os valores referentes a essas emendas, o direito de executar esses recursos em conformidade com seus programas e projetos. Dessa forma, as indicações feitas pelo relator-geral do orçamento não precisariam ser cumpridas. Em 2022, o orçamento destinado para as emendas de relator foi de R$ 16,5 bilhões e, em 2021, havia sido de R$ 19,7 bilhões, conforme mostrado pela Gazeta do Povo.
Readequação de recursos e aumento do percentual para emendas individuais
Ainda em 2022, o Congresso se mobilizou para seguir no comando dos recursos que antes eram executados via emendas de relator. No dia 21 de dezembro daquele ano, deputados e senadores aprovaram a Emenda Constitucional 126, segundo a qual o relator-geral poderia repassar até R$ 9,85 bilhões para políticas públicas.
Além disso, o teto das emendas individuais passou de 1,2% da receita corrente líquida para 2%, saltando de R$ 11,7 bilhões para R$ 21,5 bilhões estimados no orçamento de 2023. Outro ponto foi o aumento dos restos a pagar (valores empenhados em um ano, mas que não foram executados) de 0,6% para 1% da receita corrente líquida - permitindo acomodar mais recursos das emendas de relator que ainda não tinham sido pagas.
Ao longo de 2023, foram pagos R$ 22,13 bilhões em emendas individuais, R$ 6,57 bilhões em emendas estaduais (os dois tipos que têm execução obrigatória pelo parlamento) e R$ 285 milhões em emendas de comissão. Ainda foram pagos R$ 5,43 bilhões em emendas de relator. Apesar da decisão do STF que proibia a execução de recursos por meio desse tipo de emenda, os valores que já haviam sido comprometidos ou empenhados nos anos anteriores continuaram a ser executados.
Ainda em 2023, dos R$ 22,13 bilhões pagos em emendas individuais, R$ 8,78 bilhões foram pagos na modalidade de transferências especiais, as emendas pix. Ou seja, o Congresso não só tornou ineficaz a tentativa do STF de bloquear as emendas parlamentares como aumentou seus valores totais.
Todos os dados são do painel de emendas do portal Siga Brasil, do Senado Federal.
Em 2024, Congresso realocou recursos de outras rubricas nas emendas de comissão
O total de emendas parlamentares para 2024 é de R$ 44,67 bilhões, sendo R$ 25,07 bilhões em emendas individuais, R$ 11,05 bilhões em emendas de comissões e R$ 8,56 bilhões em emendas de bancadas estaduais. Esse total, R$ 49.2 bilhões, representa um quarto das despesas não obrigatórias previstas no orçamento.
Até o dia 6 de julho, R$ 29,83 bilhões já haviam pagos - esse valor inclui restos a pagar de anos anteriores. Do total já executado R$ 15,9 bilhões correspondem a emendas individuais e R$ 3,7 bilhões a emendas de bancada estadual. O valor repassado via emendas de relator (proibidas em 2022 pelo STF) foi de R$ 1,99 bilhão, conforme a lógica dos pagamentos empenhados, mas não efetivados, explicada acima.
Já o valor pago em emendas de comissão este ano chama a atenção, pois saltou de R$ 285 milhões em 2023, para R$ 8,19 bilhões em 2024, demonstrando a realocação desses recursos. Assim como as emendas individuais, as transferências especiais, e as emendas de bancada, as emendas de comissão também foram suspensas por decisões recentes do ministro Flávio Dino.
O ministro exigiu do Congresso e do Executivo mais clareza sobre as emendas de comissão, nas quais não é possível saber quais deputados e senadores foram responsáveis pela indicação. O analista político Fidelis Fantin avalia que, apesar das questões de transparência que ainda subsistirem, as emendas de comissão são, possivelmente, uma das melhores opções de que o Congresso dispõe para alocar seus recursos, por serem fruto de uma “decisão mais colegiada e apartidária”.
Por outro lado, conferem poder aos presidentes da Câmara e do Senado, que podem indicar os líderes das comissões. De acordo com relatório solicitado pelo próprio STF sobre a transparência das emendas, elas favorecem a disparidade na distribuição dos recursos dentro do Congresso.
O relatório afiram que, apesar de oficialmente vinculadas a um único parlamentar, o presidente da comissão em questão, os recursos dessas emendas são repartidos entre deputados e senadores em negociações de bastidores, de modo que os mais poderosos e influentes conseguem montantes maiores, que são direcionados para seus redutos eleitorais.
Essa distorção também ocorreria com as emendas de relator, que são assinadas pelo deputado ou senador que fecha o texto da Lei Orçamentária Anual (LOA). As recentes decisões de Dino consideraram as avaliações do relatório e suspenderam o pagamento das emendas parlamentares impositivas, individuais e de bancada, e das emendas pix e de comissão. A liberação dos recursos está condicionada à criação de regras mais claras de transparência para as emendas.
Autonomia do Congresso com emendas traz mais moderação para o cenário político
No orçamento de 2024, o Congresso ainda buscou ir um pouco além no controle dos recursos das emendas, implementando um cronograma de pagamentos. Mesmo com a execução sendo obrigatória pelo Planalto, a liberação desses recursos ainda estava condicionada à decisão do governo de quando fazer essas transferências.
Além disso, não há sanções caso o governo atrase o repasse dessas verbas. Se não forem liquidadas no ano em que foram destinadas, elas passam para o orçamento do ano seguinte como Restos a Pagar, o que pode adiar por tempo indeterminado a liberação dos recursos. Neste ano, por exemplo, há emendas de 2019 que estão sendo pagas. Na prática, o calendário de pagamentos retiraria todo o poder de barganha restante sobre as emendas que ainda está nas mãos de Lula.
O presidente Lula vetou o calendário e o Congresso não derrubou o veto, pois o Planalto se comprometeu a fazer os repasses conforme aquilo que havia sido previsto no calendário pelos parlamentares antes das eleições. Até julho desse ano, quando passou a vigorar o período eleitoral, suspendendo o repasse das emendas até após as eleições municipais, o acordo havia sido cumprido.
Nesse sentido, Leonardo Barreto avalia que o aumento da autonomia do Congresso Nacional em relação às emendas parlamentares é positivo. Isso ocorre porque o Parlamento passa a ter condições de fazer um contraponto às ações do Planalto. "O congresso tem condições de moderar o Lula como teve condições de moderar o Bolsonaro", afirma.
Ele ainda destaca que, se Lula tivesse o controle das emendas como fazia em seus dois primeiros mandatos, o governo seria "muito mais ideológico" do que já é. Nesse sentido, principalmente a parte da população que votou em Bolsonaro, ou contra Lula, estaria especialmente revoltada.
"Eu acho que o processo de moderação que o Congresso faz ajuda aqueles eleitores que votaram na opção derrotada a tolerarem o atual governo. Isso é muito importante para manter a estabilidade da democracia", afirma. Sobre a questão da qualidade do gasto, ele avalia que é difícil dizer se a concentração dos recursos no executivo traria um "efeito maior e melhor para as pessoas".