A operação Tempus Veritatis deflagrada pela Polícia Federal (PF) mirou, além do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e seus aliados, militares que passaram por cursos de formação de Forças Especiais. Esses agentes foram identificados de forma imprecisa como "kids pretos" em documentos oficiais da Justiça. O termo, que traz uma carga de mistério e remete a filmes de ação, foi difundido por órgãos de imprensa e pelas redes sociais e acabou colaborando com a tese das autoridades: a de que Bolsonaro teria se cercado de uma tropa de "Rambos" para dar um suposto golpe de Estado.
Mas quem são os operadores de forças especiais e o que eles realmente são treinados para fazer? A Gazeta do Povo ouviu especialistas no tema e levantou o que tem fundamento e o que é sensacionalismo na história dos "kids pretos".
O termo é usado genericamente dentro do Exército para designar militares profissionais que atuam em Operações Especiais, área que abrange duas especialidades: Comandos e Forças Especiais.
Nos documentos divulgados pelo Supremo Tribunal Federal (STF) e pela Procuradoria Geral da República (PGR) para justificar buscas e apreensões da operação Tempus Veritatis da Polícia Federal neste mês, o termo "Kid Preto" apareceu relacionado à especialidade de Forças Especiais.
Os "Forças Especiais" são militares que se infiltram em um ambiente hostil e passam a recrutar e treinar membros da população local para ações de guerra regular ou irregular (guerrilha). Foi o que ocorreu, por exemplo, quando unidades de forças especiais aliadas organizaram e treinaram partisans na Europa ocupada pelos nazistas durante a Segunda Guerra. Outro exemplo, do século XXI, são os chamados "consultores militares", membros de forças armadas de potências ocidentais que treinam exércitos e milícias a seu favor em guerras como a da Ucrânia e a do Afeganistão.
“Essas tropas são empregadas, por exemplo, para auxiliar forças amigas provendo treinamento, assessoramento e consultoria. Elas atuam para que as tropas amigas possam confrontar o inimigo”, explica Rodney, mestre em Estudos Marítimos da Escola de Guerra Naval (Marinha do Brasil) e coautor do livro Kid Preto: Guerra Irregular e a Evolução Histórica das Operações Especiais do Exército Brasileiro (Ed. Ubook, 2021). Essas ações são de longa duração (levam anos ou até décadas) e visam multiplicar a força do exército à que pertence o operador de Forças Especiais. Elas são consideradas ações militares indiretas, pois o operador de Forças Especiais não entra em combate direto com o inimigo, mas sim prepara outras pessoas para realizar a ação.
Esses militares costumam ser confundidos com Comandos, cujas atribuições são realizar missões de curta duração no terreno (horas ou dias) com armas avançadas, treinamento especializado e alta tecnologia. Essas ações envolvem o engajamento direto do operador militar com as forças inimigas.
Eles são enviados, por exemplo, para além das linhas inimigas para destruir pontes ou equipamentos de artilharia pesada e assim abrir caminho para o avanço de tropas regulares. A confusão entre os termos é comum porque, para fazer o curso de Forças Especiais, o militar já tem que possuir treinamento de Comando.
Além disso, o termo genérico "operações especiais" se popularizou no filme Tropa de Elite, que mostra o dia a dia do Bope, o Batalhão de Operações Especiais da Polícia Militar do Rio de Janeiro. O Bope é essencialmente uma tropa de Comandos e não de Forças Especiais. Ele foi criado no fim da década de 1960 por policiais do Rio de Janeiro que foram treinados pelo então Destacamento de Operações Especiais do Exército.
Não é a primeira vez que os militares de Forças Especiais recebem apelidos mais "populares". Dentro da caserna, costumam ser chamados só pela sigla "FE". Em 2018, durante a intervenção federal no Rio de Janeiro, foram apelidados de "Fantasmas" pela imprensa carioca, pois o termo era mais impactante. Uma das justificativas foi que não se sabia ao certo se estavam ou não participando das operações de Garantia da Lei e da Ordem. No fim, os Forças Especiais atuaram treinando policiais militares que tinham sido preparados apenas para fazer policiamento comunitário em Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) e não conheciam táticas de combate urbano.
Nas forças de paz do Haiti foi adotado outro apelido: o comandante do Batalhão de Infantaria de Paz era chamado de "Kid Blue", em referência à cor azul usada pela ONU.
O termo da moda agora é "Kid Preto", especialmente após seu emprego nas peças jurídicas do STF, da PGR e da Polícia Federal. Rodney Lisboa explica que, na verdade, o termo surgiu no passado para se referir ao comandante do Destacamento de Operações Especiais do Exército. Ou seja, era o apelido que se dava a uma pessoa que ocupava uma posição específica.
"Historicamente, o termo Kid Preto era usado pelo comandante do destacamento de operadores que combateram a força de guerrilha do Araguaia na década de 1970", explica Lisboa. O especialista conta que o apelido era usado em comunicações de rádio na região do Araguaia para designar o comandante das Forças de Operações Especiais sem revelar seu nome verdadeiro em frequência aberta de rádio que poderia ser monitorada pelos guerrilheiros comunistas.
Um militar dessa tropa, que não era muito alto, acabou sendo apelidado de kid (criança em inglês) preto pelo comandante que treinava a unidade, segundo Lisboa. A palavra "preto" do codinome fazia alusão à camuflagem usada pelo militar, que era confeccionada com cortiça queimada. Depois, o próprio comandante passou a usar o termo para designar a si mesmo para as equipes desdobradas no terreno. Desde então, o codinome passou a fazer parte da mística e das tradições das Forças Especiais do Exército e depois passou a designar o comandante do atual 1º Batalhão de Forças Especiais, sediado em Goiânia (GO).
Lisboa ainda explica que o termo ganhou um teor pejorativo ao longo dos anos e uma explicação para isso pode ser pelo fato das operações desse Batalhão serem realizadas em sigilo e a sociedade civil não ter conhecimento da sua atuação. Ainda de acordo com o especialista, a utilização das Forças Especiais requer alto grau de sigilo, visto que apresentam grau de risco elevado e geralmente são executadas em território hostil.
Hoje a principal unidade do Exército que abriga batalhões de Forças Especiais, batalhões de Ações de Comandos, e unidades de operações psicológicas é o Comando de Operações Especiais de Goiânia.
Como é o treinamento das Forças Especiais?
Os militares que integram esse grupo são capacitados com aulas de planejamento, condução e execução de operações de guerra irregular, contraterrorismo, fuga e evasão, inteligência de combate, contraguerrilha, guerra de resistência, operações psicológicas, reconhecimento estratégico, busca, localização e ataque a alvos estratégicos, assistência militar, Operações de Paz, Evacuação de Não Combatentes, Ajuda Humanitária, entre outras ações.
"São o conjunto de atividades realizadas por tropas militares ou paramilitares organizadas, adestradas e equipadas com a finalidade de obter resultados específicos (políticos, econômicos, militares ou psicossociais), valendo-se de meios militares convencionais ou não convencionais, em áreas hostis ou sob controle do inimigo, seja em tempos de crise, conflito armado ou guerra”, define Rodney Lisboa.
Rodney Lisboa destaca que a qualificação dos militares brasileiros que se formam nesse âmbito é altamente reconhecida em todo o mundo. Apesar de ter sido inspirado em cursos americanos, o curso aplicado no Brasil é aperfeiçoado com as demandas e necessidades nacionais.
Mas antes de estudar as técnicas de mobilização de apoiadores e táticas de guerra irregular, o militar tem que ter passado por treinamentos anteriores, como paraquedismo, tiro de precisão, técnicas avançadas de tiro e progressão no terreno, mergulho, além dos treinamentos estratégicos e de operação. A formação é exclusiva para militares de carreira do Exército, com patente mínima de 3° Sargento.
“O processo de formação dos alunos, por sua vez, transcorre mediante criterioso sistema de seleção e ensino por competências, mobilizando conhecimentos, habilidades, atitudes, valores e experiências para promover a capacitação dos candidatos, excluindo aqueles que demonstram incompatibilidade com o perfil requerido para o desempenho das respectivas atividades operacionais”, escreveu Rodney em um artigo sobre a formação desses militares.
Como os Kids Pretos são retratados nos documentos da Justiça
Os documentos da operação Tempus Veritatis acusam militares com formação em Forças Especiais em ao menos três pontos. Em um deles, o STF diz que, caso Bolsonaro assinasse um decreto determinando intervenção militar no país, o general Estevam Theophilo Gaspar de Oliveira acionaria o Comando de Operações Especiais de Goiânia para realizar ações.
"Nesse sentido, além de ser o responsável operacional pelo emprego da tropa caso a medida de intervenção se concretizasse, os elementos indiciários já reunidos apontam que caberiam às Forças Especiais do Exército (os chamados Kids Pretos) a missão de efetuar a prisão do Ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes", diz o texto assinado pelo próprio ministro.
Moraes usa o termo Forças Especiais do Exército, mas a ação descrita não é uma característica dessa tropa de ação indireta, cuja finalidade é treinar outros agentes para realizar as ações. Ou seja, a capacidade de realizar uma prisão de autoridade é uma ação direta, que poderia ser realizada por qualquer unidade militar ou policial que possua uma unidade tática.
Por outro lado, no Comando de Operações Especiais de Goiânia há também militares treinados em cursos de Comandos, que têm mais treinamento e habilidades que uma tropa regular. O general Teophilo foi procurado pela reportagem mas preferiu não se manifestar.
Em um segundo ponto, o STF diz que o ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, tenente-coronel Mauro Cid, e um coronel então do serviço ativo organizaram uma reunião com militares para tratar da elaboração do suposto golpe. O documento diz que o coronel "intermediou o convite para a reunião e selecionou apenas militares formados no curso de Forças Especiais (Kids Pretos) o que demonstra planejamento minucioso para utilizar, contra o próprio Estado brasileiro, as técnicas militares para consumação do Golpe de Estado", diz o documento. O argumento da Justiça é que os militares teriam pressionado comandantes militares a aderir ao suposto golpe.
O termo forças especiais aparece ainda nos documentos do STF e da PGR quando esses órgãos acusam os supostos agentes golpistas de planejar e executar medidas para manter acampamentos em frente a quartéis "incluídas a mobilização, a logística e o financiamento de militares das forças especiais em Brasília". A acusação tenta ligar ainda um major e Cid ao alegado planejamento dos atos de vandalismo ocorridos na Praça dos Três Poderes em 8 de janeiro de 2023.
Desde o ano passado, governistas na CPMI (Comissão Parlamentar Mista de Inquérito) do 8 de janeiro e determinados órgãos de imprensa já tentavam emplacar publicamente a narrativa de que os manifestantes não agiram de forma espontânea e teriam sido orientados com técnicas alegadamente ensinadas por Forças Especiais. Alguns argumentos eram o uso de máscaras balaclavas pelos manifestantes para cobrir os rostos, ações conjuntas de multidões para derrubar grades de proteção e o uso dessas grades como escadas para invadir o Congresso.
A reportagem consultou dois analistas militares sobre essas alegadas técnicas. Eles preferiram não se identificar alegando receios ligados à liberdade de expressão. Segundo eles, as imagens em vídeo dos atos de 8/1 mostram padrões descoordenados de depredação e vandalismo não característicos de ações planejadas por operadores de forças especiais.
De acordo com um deles, mesmo que houvesse ocorrido algum tipo de organização e direcionamento dos manifestantes, nem a CPMI nem a atual operação Tempus Veritatis conseguiram ligar com provas o uso de máscaras, organização de participantes e depredação de patrimônio à atuação de operadores de Forças Especiais.
As balaclavas são amplamente usadas, por exemplo, por membros de organizações criminosas como o Comando Vermelho e o Primeiro Comando da Capital. A derrubada de grades de controle de acesso e seu uso como escadas não está descrita em nenhum curso, manual ou doutrina militar das Forças Armadas, segundo uma das fontes ouvidas.
Técnicas de mobilização e vandalismo já foram usadas por movimentos "black bloc" que se opuseram ao governo e à realização da Copa do Mundo no Brasil em 2013 e 2014. Um jornalista, Santiago Andrade, chegou a ser assassinado com um tiro de fogos de artifício em um protesto black bloc. Além disso, integrantes desses movimentos de esquerda que foram presos em protestos receberam amplo apoio jurídico de ONGs e ativistas para voltar à liberdade, o que aponta para a capacidade de organização.
Em 2006, grupos dissidentes do Movimento Sem Terra usaram táticas de organização e vandalismo para invadir o Congresso Nacional e promover atos de vandalismo que deixaram mais de 20 pessoas feridas. Ou seja, além de outras organizações terem conhecimentos sobre esses tipos de táticas, elas também podem ser encontradas em livros, sites e manuais que podem ser consultados publicamente, diz um dos analistas.
Um ex-membro de operações especiais ouvido pela reportagem resumiu o argumento dizendo que as Forças Especiais atuam em preparação de atos militares de intensidade muito mais elevada que os atos de vandalismo.
Na CPMI do 8 de janeiro, parlamentares governistas já haviam tentado criar uma relação entre suposta tentativa de golpe e militares de Forças Especiais. Entre os argumentos estavam o elevado grau de treinamento dessas tropas e a suposição de que oficiais que já estavam na reserva teriam poder para mobilizar militares da ativa para uma eventual intervenção. Mas até agora não vieram a público evidências disso e as acusações se baseiam em suposições.
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