Os impactos da decisão da 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) de declarar a suspeição do ex-juiz Sérgio Moro no processo do triplex do Guarujá (SP), que condenou o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, não se restringem apenas à esfera política e jurídica. Também podem atingr a esfera internacional. Os esforços de combate à corrupção no Brasil passaram a ser monitorados por um grupo da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), que identifica retrocessos nessa agenda.
A Transparência Internacional (TI) Brasil vem, desde 2019, produzindo relatórios independentes com alertas sobre os retrocessos em diversas áreas e submetendo aos organismos internacionais. O Grupo de Trabalho Antissuborno da OCDE foi um deles, cujo secretariado compartilhou o último relatório com todas as delegações nacionais integrantes do grupo de trabalho e utilizou esses relatórios como referência para a recente arguição do Brasil.
O diretor-executivo da Transparência Internacional (TI) no Brasil, Bruno Brandão, diz que não são as decisões sobre réus individuais que geram maiores preocupações para os organismos internacionais.
Segundo ele, decisões que trazem "consequências sistêmicas" para o combate à corrupção causam preocupações a organismos como a OCDE. "Como as que violam preceitos fundamentais do devido processo legal e abrem graves precedentes", diz Brandão.
Além da OCDE, Brandão afirma que o Brasil também é avaliado nessa agenda por outros dois importantes organismos internacionais: o Grupo de Ação Financeira Internacional (GAFI) e a Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção (UNCAC).
Suspeição de Moro violou preceitos fundamentais
A suspeição do ex-juiz é um caso específico que, para o fundador e professor da Escola de Altos Estudos em Ciências Criminais, Edilson Mougenot, se enquadra nos requisitos citados por Brandão. Para ele, que é procurador do Ministério Público do Estado de São Paulo (MP-SP), um dos motivos pelo qual o julgamento no STF viola preceitos fundamentais do devido processo legal é o fato ter ocorrido com base em um habeas corpus, não uma arguição de suspeição.
"Mataram a arguição de suspeição e impediram que o magistrado se manifestasse. Viola o devido processo legal por várias razões, como, também, um magistrado no mesmo caso dizer 'hoje, sim, amanhã, não' [uma referência à mudança de voto da ministra Carmen Lúcia]", afirma à Gazeta do Povo. Em entrevista recente ao jornal, ele também falou sobre os graves precedentes que o julgamento traz.
Mougenot, que concorda com a OCDE sobre o retrocesso na agenda de combate à corrupção, cita, ainda, que houve quebra no argumento da fundamentação do voto do ministro Gilmar Mendes no julgamento da suspeição. "Há claro divórcio na fundamentação da sentença, que é uma garantia constitucional. Ele escreve [na decisão, composta por mais de 100 laudas] que não vai dar bola para aquelas provas ilegais [mensagens hackeadas] e, ao mesmo tempo, na TV Justiça [que transmitiu a sessão], as usa", disse, em entrevista à Rádio Guaíba.
STJ, governo e Congresso também têm culpa
A suspeição de Moro não é a única decisão polêmica que agrava a falta de compromisso com a agenda do enfrentamento da corrupção aos organismos internacionais. A decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) em negar pedido do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) para barrar investigação sobre um relatório que mira movimentações financeiras do advogado Frederick Wassef é outro caso que preocupa a Transparência Internacional.
"No âmbito do Poder Judiciário, trazem consequências sistêmicas para o combate à corrupção decisões como as que vêm ameaçando a capacidade de atuação do Coaf, que é o coração do sistema brasileiro anti-lavagem de dinheiro", destaca Bruno Brandão, sem citações nominais ao STJ. A Corte, entretanto, rejeitou, recentemente, recurso do senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ) para anular relatórios do Coaf.
O diretor-executivo da TI no Brasil concorda que o país vive um quadro geral de retrocessos em sua "capacidade legal e institucional" de enfrentamento à corrupção e confirma que isso gera consequências nas relações exteriores. Mas sustenta que o governo federal também tem parcela de responsabilidade nisso.
Organismos multilaterais monitoram o "descumprimento de compromissos assumidos internacionalmente" do Brasil, alerta Brandão. Ele cita os "escândalos envolvendo a família do presidente" — o qual o senador Flávio é investigado pelo crime de "rachadinha" — e o que considera ser uma série de preocupações acerca da ingerência política sobre órgãos de controle da corrupção, como Coaf, a Polícia Federal, Receita Federal e a Procuradoria-Geral da República.
O diretor da TI também aponta o enfraquecimento da transparência em áreas de grande preocupação internacional como meio ambiente e a pandemia, além de ataques contra jornalistas investigativos e organizações da sociedade civil. Mas reconhece que os problemas vão além e alcançam, além do Judiciário, o Congresso.
No Congresso, Brandão comenta que, além de ter uma de suas Casas presidida por alguém condenado em duas instâncias por "rachadinha" — o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL) —, o Parlamento peca pela inércia dos Conselhos de Ética sobre "casos gravíssimos envolvendo parlamentares" e pelo "deserto de propostas legislativas anticorrupção". "E ainda há ameaças de enfraquecimento de leis vigentes", critica.
Culpa de retrocesso é de todos, concorda deputada
A deputada federal Adriana Ventura (Novo-SP), presidente da Frente Parlamentar Mista pela Ética Contra a Corrupção (FECC), concorda que todos têm sua parcela de culpa pela mensagem que o Brasil transmite ao mundo e à OCDE. “O combate à corrupção não é prioridade deste governo, que tem voz no Congresso por meio das suas lideranças. Mas, também, não é uma prioridade do Parlamento”, desabafa.
A parlamentar reconhece que há, sim, um retrocesso nessa agenda e não alivia críticas ao STF. “O que aconteceu no Supremo, o fim da Lava Jato [em decorrência da suspeição de Moro], da forma como foi construído, foi o fim da 'picada’. Mas não vamos jogar a toalha, nem podemos”, critica Ventura. Para ela, é necessário um esforço conjunto entre poderes que não existe.
“É uma soma de esforços. Para o combate à corrupção dar certo, tem que ter um trabalho integrado e coordenado. Não vejo essa coordenação”, lamenta Ventura. “O Congresso tinha que estar empenhado politicamente para que a legislação contra a corrupção melhorasse, o governo deveria estar disposto a combatê-la e o Judiciário deveria estar preocupado com a busca de Justiça. Mas não é o que ocorre”, acrescenta.
Autora do projeto de lei que dobra a pena para crimes de corrupção cometidos durante a pandemia, Ventura ressalta que a matéria está parada no Senado desde setembro do ano passado. “Tem parlamentares que brigam e lutam por essa agenda, mas são vozes isoladas. Eu mesma fui conversar duas vezes com o senador Rodrigo Pacheco [presidente do Senado]. Com o [Davi] Alcolumbre [ex-presidente da Casa], três vezes. Nenhum esforço é feito no combate à corrupção”, lamenta.
Independentemente das dificuldades, Ventura garante que a FECC vai permanecer empenhada em lutar pela agenda no Congresso, bem como manterá aberta a aberta as portas para o diálogo com o grupo anticorrupção da OCDE. “Vamos ficar atuantes, temos eventos pela frente para discutir as principais pautas do país”, sustenta.
Quais os riscos de o Brasil não entrar na OCDE
Há motivações para se preocupar com o Brasil entrando na mira de um grupo permanente da OCDE na agenda anticorrupção, algo inédito. Afinal, o Ministério das Relações Exteriores colocou como uma das prioridades do governo o acesso do Brasil ao "grupo dos países ricos" em 2021.
Na prática, a OCDE não pode emitir sanções ao Brasil, mas a leitura de um retrocesso no combate à corrupção pode dificultar a ascensão ao organismo internacional, avalia Verônica Prates, gerente da BMJ Consultores Associados. “Contamina [a entrada do país no grupo dos países mais ricos], mas não impede. Até porque o processo de adesão envolve uma série de outros passos”, destaca.
De toda forma, embora a OCDE não possa punir, Prates ressalta que ter um braço da do organismo internacional questionando o Brasil sobre a pauta anticorrupção não é bem recebida para os negócios. “Tem uma questão muito mais de reputação da ‘marca Brasil’ para investimentos, o mundo olha para esse tipo de coisa. Tem um efeito reputacional maior e de curto prazo do que uma adesão”, explica.
A consultora da BMJ entende que a responsabilidade do enfrentamento a essa agenda não pode ficar só nas costas do governo, mas defende maior atuação do Executivo. “O governo ainda não apresentou medidas concretas para essa pauta. Mas, sim, a decisão do poder Judiciário [de suspeição de Moro] prejudica mais a imagem do Brasil. E isso é algo que recai muito sobre os diplomatas”, diz.
O ministro das Relações Exteriores, Carlos Alberto França, deu sinais da expectativa de o Brasil aderir ao grupo, em seu discurso de posse, na terça-feira (6). "Não há modernização sem a exposição do país aos mais elevados padrões de políticas públicas. Por isso, é importante nosso cada vez mais estreito relacionamento com a OCDE", disse.
Governo se justifica; assessores apontam para os outros poderes
O governo, por sua vez, se exime das críticas e garante que adota diversas medidas para "reforçar e aprimorar o enfrentamento à corrupção". Em nota conjunta assinada pelo Itamaraty, a Casa Civil, o Ministério da Justiça e a Controladoria Geral da União (CGU), o Executivo cita o Plano Anticorrupção 2020-2025, que prioriza 142 ações em áreas como o combate à lavagem de dinheiro, transparência, controle interno, gestão e governança, integridade e medidas fiscais.
O governo federal comunica ter concluído 13 acordos de leniência com "empresas envolvidas em atos ilícitos contra a Administração Pública nacional e estrangeira", totalizando mais de R$ 13,67 bilhões recuperados aos cofres públicos.
Desde 2016, a CGU concluiu 126 processos administrativos de responsabilização de pessoas jurídicas, por violações da Lei Anticorrupção, sendo 59 apenas em 2020. No ano passado, o governo informa que as "autoridades brasileiras conduziram 74 operações especiais voltadas ao combate à corrupção". Em 2019, foram 58.
Interlocutores do Itamaraty e do Palácio do Planalto ouvidos pela Gazeta do Povo entendem que, quando a notícia da formação do grupo surgiu, muitos tentaram jogar unicamente ao Executivo a responsabilidade desse monitoramento permanente pela OCDE, mas apontam o "dedo" para o que os demais poderes têm feito.
“Quando você vê que o Legislativo tem feito em relação a tornar, digamos, mais frouxas as regras para combater a impunidade [em referência à PEC da Imunidade], isso chama a atenção da OCDE”, destaca um interlocutor do Itamaraty. “E quando o Judiciário toma decisões que, de certa maneira, flexibilizam as decisões tomadas pelo próprio poder ou até vão de encontro a decisões anteriores, no caso específico da Lava Jato, isso causa preocupação”, acrescenta.
A leitura feita no Planalto é semelhante. Para assessores ouvidos, “se há retrocesso no combate à corrupção”, como sugeriu à BBC News Brasil Drago Kos, presidente do Grupo de Trabalho Antissuborno da OCDE e membro do Conselho Consultivo Internacional Anticorrupção, essa culpa é de “responsabilidade de todos”.
“O que não é verdade. Olha o que o Supremo fez [sobre o julgamento de suspeição de Moro]. E o que o Congresso tem feito? Por que a pauta da prisão [após condenação] em segunda instância não anda?”, questiona um interlocutor do Itamaraty.
Governo minimiza pressão de presidente do grupo anticorrupção
A criação do grupo que vai monitorar o Brasil na pauta de enfrentamento à corrupção tem o aval do Itamaraty, embora o governo minimize as declarações de Drago Kos à imprensa. “Falou a título pessoal, não em nome da OCDE, nem em nome do grupo que preside”, sustenta um interlocutor do alto escalão do MRE.
Oficialmente, o governo explica que as “opiniões constantes” na reportagem da BBC News Brasil “não foram deliberadas e acordadas entre os membros do Grupo de Trabalho contra o Suborno Transnacional da OCDE”. “Não refletem,portanto, o posicionamento da OCDE”, informa uma nota interministerial do Itamaraty, da Casa Civil, do Ministério da Justiça e da Controladoria Geral da União.
A criação do grupo de monitoramento teve, inclusive, o endosso do Brasil. “É mecanismo parte do próprio processo de revisão interparitária da OCDE, especialmente no marco do Grupo de Trabalho contra o Suborno Transnacional, para acompanhar de modo mais efetivo a evolução do tema no país”, sustenta.
O governo afirma, contudo, que não o grupo não se trata de algo inédito, tendo sido “aplicado em outro caso”, em referência ao Japão. Em outubro de 2007, a OCDE estabeleceu “encontros anuais informais” com autoridades japonesas para checar o progresso no combate à corrupção. Kos disse à BBC News Brasil, no entanto, que a situação japonesa, descrita como uma busca de “informação adicional”, não pode ser comparado ao do Brasil.
“Já emitimos muitas declarações públicas a respeito de outros países e, também, organizamos algumas missões de alto nível. Mas nunca antes estabelecemos um subgrupo para acompanhar o que está acontecendo em um país de interesse", afirmou o presidente do Grupo de Trabalho contra o Suborno Transnacional da OCDE.
A Gazeta do Povo procurou a OCDE e aguarda posicionamento da entidade sobre a suspeição de Moro e a corresponsabilidade dos poderes no enfrentamento à corrupção.
Como um país entra na OCDE e como o Brasil está posicionado
O governo mantém a plena convicção de que a criação do grupo não impacta a adesão do Brasil à OCDE. Nos bastidores, o Itamaraty sempre sustenta que o país participa de 39 foros do organismo internacional em áreas como educação, saúde, governança, comércio, trabalho e emprego, meio ambiente, desburocratização, agricultura e combate à corrupção.
Em 14 desses foros, o Brasil atua com um “status” de associado, algo equivalente ao de um membro pleno. E nos outros 25, com um “status” de participante, uma espécie de categoria “intermediária”, mas que já permite um “engajamento concreto”, relata um interlocutor.
Para que o processo de negociação de ingresso formal e pleno do Brasil se inicie, será necessário que os membros da OCDE estejam de acordo sobre a ampliação do organismo internacional. Atualmente, são candidatos o Brasil, a Romênia, o Peru, a Bulgária, a Argentina e a Croácia. O início de qualquer novo processo depende da conciliação de visões internas da entidade quanto à sua ampliação.
Algumas divergências internas obstruem a celeridade na discussão de novos países membros. A União Europeia, por exemplo, espera paridade entre o ingresso de países europeus e não europeus, enquanto os Estados Unidos resistem a essa proposição, alegando o alto número de países europeus que já são membros da OCDE.
Entre os candidatos para entrar na OCDE, interlocutores do Itamaraty sustentam que o Brasil é um dos mais avançados. O Brasil, segundo informações internas, é parte de 99 dos 245 instrumentos normativos do “grupo dos países ricos”, o que torna o parceiro não-membro com a mais alta adesão a instrumentos da organização. “Também temos a maior economia e temos a mais longa e ampla participação em trabalhos da OCDE”, sustenta um interlocutor.
O Itamaraty acredita que alcance a adesão ao "grupo dos países ricos" ainda em 2021, mas o processo não é fácil. Em 2017, o governo brasileiro formalizou pedido para iniciar processo de ingresso formal e pleno, o que exige unanimidade de todos os membros.
O último país a aderir a OCDE, a Colômbia, iniciou os diálogos em 2013 e, somente ao fim de abril de 2020, o país virou, oficialmente, um país membro, o 37º. A Costa Rica, que teve sua candidatura aprovada em 2015, está em processo de adesão e disputa a posição com o Brasil de 38º membro.
Triângulo Mineiro investe na prospecção de talentos para impulsionar polo de inovação
Investimentos no Vale do Lítio estimulam economia da região mais pobre de Minas Gerais
Conheça o município paranaense que impulsiona a produção de mel no Brasil
Decisões de Toffoli sobre Odebrecht duram meses sem previsão de julgamento no STF