A vitória de Donald Trump nas eleições americanas energizou a direita brasileira e uma das pautas que deve voltar a ser cobrada no Congresso é o projeto de lei de anistia aos presos do 8 de janeiro. Enquanto o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) viu a decisão do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), de levar a proposta para uma comissão especial como uma forma de enterrá-la, alguns integrantes da oposição acreditam que a medida vai viabilizar que as discussões não sejam contaminadas pela sucessão do comando da Casa.
Ao Entrelinhas, programa de vídeo da Gazeta do Povo, a presidente da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara, Caroline De Toni (PL-SC), cobrou que Lira cumpra com o acordo e instale a comissão ainda neste ano.
"Quando o projeto de lei da anistia estava prestes a ser aprovado, nós tivemos essa movimentação dos eventuais candidatos à presidência da Câmara para evitar que isso fosse tema da sessão e foi postergado para o início de dezembro. Então vamos esperar que eles cumpram a palavra e pautem na comissão especial e no plenário o projeto de lei da anistia ", disse De Toni nesta quarta-feira (6).
Na última sexta-feira (1º), em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo, Lira disse que vai apresentar uma solução para o projeto ainda no seu mandato à frente da presidência da Câmara. Ele, no entanto, ainda não definiu um prazo para a instalação do colegiado.
"Um tema sensível como esse, por tudo que aconteceu, por tudo que está acontecendo, estava inapropriadamente sendo usado. Conversei tanto com um partido quanto com outro. Nós vamos dar a solução para isso dentro do meu mandato [até fevereiro de 2025]", afirmou Lira.
O PT de Lula e o PL de Jair Bolsonaro vinham usando a tramitação da proposta como forma de barganha na disputa pela presidência da Câmara, que ocorre em fevereiro de 2025. Pra blindar a sucessão, Lira confirmou o seu apoio ao nome de Hugo Motta (Republicanos-PB) e usou a criação da comissão especial como forma de angariar o apoio da base governista e da oposição. Para o governo foi sinalizada a perspectiva de retardar o processo. A oposição foi intimidada a concordar com a postergação para evitar a possibilidade de derrubada em uma votação imediata do projeto.
"O tema [da anistia] deve ser devidamente debatido pela Casa. Mas não pode jamais, pela sua complexidade, se converter em indevido elemento de disputa política, especialmente no contexto das eleições futuras para a Mesa Diretora da Câmara", disse Lira.
O projeto estava na CCJ e chegou a entrar na pauta diversas vezes. Contudo, a manobra de Lira retirou o tema do colegiado e protelou sua discussão.
Oposição quer usar comissão para ampliar apoio ao PL da Anistia
Apesar da sinalização da presidente da CCJ, demais integrantes da oposição avaliam que a discussão possa ser retomada a partir do ano que vem, após a eleição para a presidência da Câmara. Cabe ao presidente da Casa a determinação para que o colegiado seja instalado e, consequentemente, se abra o prazo para as indicações partidárias.
"Todo o nosso esforço não foi em vão; nossa mobilização nos trouxe até aqui e não descansaremos enquanto não for aprovada. É urgente que façamos a verdadeira justiça e continuaremos firmes na nossa missão”, afirmou De Toni.
Bolsonaro afirmou que foi avisado por Lira sobre a criação da comissão especial e disse ser favorável ao funcionamento do grupo. A declaração aconteceu na terça-feira (29) durante visita ao Senado.
“Uma das alternativas [para conseguir a anistia] é a criação da comissão. E o que o pessoal pretende ao criar a comissão? Trazer para cá os 'órfãos de pais vivos'. Vocês vão ficar chocados mesmo. Mesmo quem porventura seja contra a anistia, quando eu trouxer pra cá, que está previsto, seis filhos de oito anos pra baixo, do mesmo homem que está condenado a 17 anos de cadeia, vocês vão se emocionar com isso aí”, disse o ex-presidente.
Na avaliação de Bolsonaro, a discussão sobre a anistia seria mais importante do que a possível reversão de sua inelegibilidade. “Prioridade nossa é o pessoal que está preso, eu sou segundo plano”, garantiu.
Na mesma linha, o deputado Filipe Barros (PL-PR) acredita que a criação do colegiado será uma oportunidade de ampliar o apoio ao projeto. "Penso que essa nova etapa servirá também para destrinchar argumentos sólidos que convençam parlamentares eventualmente contrários ao texto, proporcionando, assim, apoio consistente para anistiar quem hoje sofre com as penas desarrazoadas relativas ao oito de janeiro. Nosso cronograma, portanto, não será prejudicado", disse.
Logo após reunir o apoio do PT e do PL, o candidato à presidência da Câmara Hugo Motta defendeu uma garantia de que os atos de 8 de janeiro não ocorram novamente, mas afirmou que não se pode permitir "injustiças" nas condenações dos envolvidos.
"Essa comissão terá capacidade de, com muita responsabilidade, discutir esse tema que é tão importante, não diria apenas do ponto de vista político, mas até do ponto de vista da relação com o poder Judiciário", disse Motta.
Governistas podem travar instalação da comissão especial
Na prática, com a decisão de Lira, o processo de discussão do projeto começará praticamente do zero. Agora, o próximo passo será cada partido indicar representantes para integrar a comissão, para que, depois, ela seja instalada.
Segundo ato da presidência, a comissão será formada por 34 membros titulares e 34 suplentes. Na avaliação dos aliados do Palácio do Planalto, o movimento de Lira enterrou a proposta e não haverá espaço para discussão sobre o tema no próximo ano.
Para os governistas, essa comissão pode nem ser instalada, já que os líderes terão de indicar os nomes de seus integrantes e podem resistir a fazer isso, uma vez que essa matéria confronta diretamente o Supremo Tribunal Federal (STF). Para essa ala, o projeto terá o mesmo caminho do PL Antiaborto, que teve sua tramitação travada justamente depois que Lira anunciou a criação de uma comissão especial e que, até o momento, não foi criada.
"No fundo, essa anistia que se propõe não é para aqueles que participaram desses atos. O que se quer é preparar uma anistia para aqueles que realmente tentaram envolver as Forças Armadas numa tentativa de golpe no nosso país", afirmou o vice-líder do governo, Carlos Zarattini (PT-SP), acusando como possíveis beneficiários o ex-presidente Bolsonaro e os generais Walter Braga Netto, Augusto Heleno e Paulo Sérgio. "Esse projeto de anistia tem este objetivo: garantir anistia para esses que participaram do golpe", completou o governista.
Bolsonaro e os generais citados negam que tenha havido qualquer intenção de realizar um golpe de Estado. O mais recente argumento citado por Bolsonaro é que se houvesse vontade de realizar qualquer intervenção faria mais sentido ela ter ocorrido antes de Lula tomar posse e não depois.
"Isso nem deveria ter chegado ao presidente [Arthur Lira]. A Comissão de Constituição e Justiça deveria ter arquivado, porque é totalmente inconstitucional aquele projeto. Aquilo é uma agressão ao Estado Democrático de Direito, e nós não podemos dar nenhum sentimento de impunidade a esses golpistas", disse o deputado Bohn Gass (PT-RS).
PL da anistia, como está, não livraria Bolsonaro da inelegibilidade
Inicialmente, o texto não concedia anistia só aos presos do 8 de janeiro, mas a “todos que tenham participado de manifestações em rodovias, frente a unidades militares ou em qualquer lugar do território nacional” a partir de 30 de outubro de 2022, data em que Lula venceu o segundo turno das eleições presidenciais contra Bolsonaro.
O relator da proposta, deputado Rodrigo Valadares (União Brasil-SE), retirou o trecho do projeto. O perdão só valerá agora de 8 de janeiro de 2023 até a data em que a lei entrar em vigor.
O texto prevê ainda que serão igualmente anuladas as “medidas de restrição de direitos”, como o uso de tornozeleira eletrônica, a proibição de comunicação entre acusados e a suspensão de perfis e contas em redes sociais.
Mas mudanças no texto e uma eventual inclusão de Bolsonaro como beneficiário de uma anistia não estão descartadas durante sua tramitação na comissão especial ou diretamente no plenário. Há ainda outras propostas tramitando na Câmara e no Senado que preveem a anistia para crimes eleitorais e que poderiam beneficiar o ex-presidente, como já mostrou a Gazeta do Povo.
Declarações do presidente do PL, Valdemar Costa Neto, indicam que o partido não poupará esforços para reverter a situação.
"Vamos lutar para incluir o Bolsonaro nisso, porque a condenação dele foi simplesmente absurda. Só porque ele conversou com os embaixadores e disse que era contra as urnas. Isso é uma opinião dele que tem que ser respeitada. Então, por isso, deixaram ele inelegível. Isso não existe no mundo, no planeta. Nós vamos reverter isso aí", afirmou Costa Neto antes de Lira enviar o projeto de lei da anistia para uma comissão especial.
Bolsonaro também diz acreditar numa reversão de sua inelegibilidade, tendo afirmado diversas vezes que será o candidato da direita em 2026. Com a vitória de Trump na eleição de terça-feira (5), ele reforçou o desejo de que a mesma onda de direita que elegeu o republicano possa chegar ao Brasil também.
"Hoje, testemunhamos o ressurgimento de um verdadeiro guerreiro. Um homem que, mesmo após enfrentar um processo eleitoral brutal em 2020 e uma injustificável perseguição judicial, ergueu-se novamente, como poucos na história foram capazes de fazer... Que a vitória de Trump inspire o Brasil a seguir o mesmo caminho", escreveu Bolsonaro no X.
Bolsonaro está inelegível até quando?
O ex-chefe do Executivo foi condenado à inelegibilidade até 2030 por decisão do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) em dois casos: por abuso de poder e desvio de finalidade por realizar uma reunião com embaixadores em julho de 2022, na qual criticou a credibilidade das urnas eletrônicas; e por uso eleitoral do 7 de setembro de 2022 durante a comemoração do Bicentenário da Independência. O ex-presidente contesta essas decisões.
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