Parlamentares da oposição e procuradores do Ministério Público Federal devem apresentar ações na Justiça contra o atraso na divulgação de dados do novo coronavírus no Brasil. O informe de sexta-feira (5), foi divulgado às 22h e omitiu o número total de mortos registrado no País desde o início da pandemia, em fevereiro. A ação foi admitida pelo próprio presidente, que disse na porta do Alvorada que "acabou a matéria no Jornal Nacional".
O Ministério Público Federal já analisa o atraso e a omissão dos dados pelo governo federal e deve atuar no caso. "Pura omissão de informações, dolosa. Como na época da ditadura, com a epidemia de meningite", avaliou uma procuradora ouvida reservadamente pelo Estado de São Paulo. "Apagar os números é apagar a memória de cada um que se foi".
Segundo a apuração, a Rede Sustentabilidade vai apresentar uma ação ao Supremo Tribunal Federal, a peça começo a ser redigida neste sábado (6). O deputado Alessandro Molon (PSB-RJ) afirmou que deverá seguir o mesmo caminho, e representará o Planalto no Tribunal de Contas da União para que seja assegurada a divulgação de números verdadeiros. O líder do PT na Câmara, Enio Verri (PR), também confirmou que o partido vai protocolar ação pedindo transparência nos dados. Ainda nessa linha, o PDT avalia medidas judiciais e o PCdoB irá subscrever ações da oposição.
Na manhã de sábado, Bolsonaro tentou justificar a ausência do dado alegando que eles "não retratam o momento do País". "A divulgação dos dados de 24 horas permite acompanhar a realidade do país neste momento e definir estratégias adequadas para o atendimento a população. A curva de casos mostram as situações como os cenários mais críticos, as reversões de quadros e a necessidade para preparação", disse.
"Se for isso mesmo, todo dia vai ser como se fosse uma tábula rasa", disse Fernanda Campagnucci, diretora executiva da Open Knowledge Brasil, organização que avalia as medidas de transparência da União e estados sobre o coronavírus.
Campagnucci destaca que pequenos avanços haviam sido feitos pelo ministério, como a divulgação de microdados de Covid-19, mas atualmente se vê um "embate sobre o que resta de institucionalidade no Ministério da Saúde". "Esse apagão é uma forma de o presidente e o comando do ministério impôr a sua visão sobre como a informação deve ser disponibilizada", disse.
De acordo com a diretora-executiva da Open Knowlegde Brasil, a ação do governo é "equivocada de todos os pontos de vista possíveis".
"Não é só uma questão de vontade do presidente. É um direito que a população tem (o acesso à informação)", afirmou. "Onde qualquer outra pessoa poderá checar aquela informação que o dado do passado é aquele que foi divulgado, se eles vão todos os dias apagar essa informação e recomeçar a conta? Fica difícil fazer qualquer curva ou qualquer projeção".
Além do boletim, o site com os números de Covid-19 no Brasil ficou fora do ar durante a noite de sexta até o final da tarde deste sábado (6). Procurado, o Ministério da Saúde não informou a razão até o fechamento deste texto. A página exibiu apenas que estava em manutenção. Agora, o site não exibe mais os dados acumulados, divisões por Estado e até a possibilidade de download das informações.
Em um cenário de sub-notificação, nos quais o próprio Ministério da Saúde identificava ao menos 4 mil mortes suspeitas por Covid-19, Carlos Wizard, indicado para a secretária de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos, disse ao jornal O Globo que a pasta irá recontar o número de mortos porque os dados seriam "fantasiosos ou manipulados".
Ao Estadão, Wizard afirmou que o governo não planeja "desenterrar mortos", e sim "rever critérios" dessas mortes. Segundo ele, estados e municípios estariam inflando o número de óbitos para obter benefícios federais. A informação teria sido repassada por uma "equipe de inteligência militar" do Ministério da Saúde.
A iniciativa foi criticada pelo Conselho Nacional de Secretários de Saúde, que enxergou uma tentativa "autoritária, insensível, desumana e anti-ética" de dar inviabilidade aos mortos pelo coronavírus". "Não prosperará. Nós e a sociedade brasileira não os esqueceremos e tampouco a tragédia que se abate sobre a nação", disse o presidente da entidade, Alberto Beltrame.
O presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, Felipe Santa Cruz afirmou que o governo "presta-se ao papel de empoeirar e retardar informações sérias sobre a pandemia apenas para satisfazer o apetite conspiratório do presidente". "Um perigoso e letal vexame", escreveu.
A tentativa de minimizar os dados de óbitos por coronavírus nas divulgações oficiais do governo tem sido recorrente desde que o País passou a registrar recordes negativos da doença. Em 29 de abril, quando o Brasil atingiu a marca de 5 mil mortos pela doença, o governo criou o "Placar da Vida". A iniciativa da Secom enaltecia os brasileiros "recuperados" e "salvos", classificando aqueles que foram diagnósticos como "em tratamento".
O último "Placar da Vida" foi publicado no dia 3 de junho e apontava 584 mil casos confirmados da doença no País. No dia, o Brasil confirmava 1.349 mortes por coronavírus em 24 horas, levando o total para mais de 32 mil óbitos. Esses números não foram noticiados no placar do governo.
Transparência
Em março deste ano, o governo federal editou medida provisória que permitia aos órgãos públicos ignorarem pedidos de Lei de Acesso à Informação enquanto perdurasse o período do estado de calamidade pública causado por Covid-19, que vigora até dezembro.
O governo alegava que a medida evitaria que órgãos ficassem sobrecarregados em lidar com a pandemia e os pedidos de informações públicas. Especialistas, contudo, apontaram que existiam ferramentas já previstas em lei para este cenário, classificando a proposta como "equivocada", "desproporcional" e "desnecessária".
A MP foi suspensa por liminar do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, validada com unanimidade pelo plenário da Corte. No julgamento, os ministros destacaram o direito à transparência e publicidade de informações públicas.
"Essa Lei de Acesso à Informação representou um passo importantíssimo da administração pública e só fica contra ele quem não quer que se tenha esse acesso amplo e necessário às informações", afirmou a ministra Cármen Lúcia, durante o julgamento. "A publicidade é dever da administração pública".
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