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Congressistas da Frente Parlamentar Evangélica do Congresso Nacional (FPE) criticaram o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF), pela declaração acerca da existência de uma "narcomilícia evangélica" no estado do Rio de Janeiro. Para os parlamentares ouvidos pela reportagem, o magistrado precisa fornecer mais informações sobre o caso e, diante disso, o Supremo então deveria investigar os envolvidos. Se Mendes não for capaz de fundamentar suas acusações, deveria pedir desculpas aos evangélicos, segundo parlamentares.
A fala polêmica de Gilmar Mendes foi em uma entrevista à GloboNews, na terça-feira (12). Ele disse: "O ministro Luís Roberto Barroso presidiu uma reunião extremamente técnica sobre essa questão, e um dos oradores falou de algo que é raro ouvir: uma 'narcomilícia' evangélica, aparentemente no Rio de Janeiro, onde se tem um acordo entre narcotraficantes e milicianos pertencentes ou integrados a uma rede evangélica".
Questionada pela reportagem sobre as declarações do ministro, a senadora Damares Alves (Republicanos-DF) cobrou que Gilmar Mendes entregue provas sobre o assunto e que seja instaurada uma investigação por parte do STF sobre a existência dessa suposta "narcomilícia evangélica".
"Eu espero que esse julgador, na Suprema Corte, tenha entregue as provas. Eu espero que a Suprema Corte investigue. Porque dentro do segmento evangélico não existe narcotráfico. O povo evangélico é o povo da paz, o povo da cruz, que ama essa nação. Se por acaso houver alguém que tenha se envolvido com o tráfico, que essa pessoa seja investigada e que vá para a cadeia", disse a senadora à Gazeta do Povo.
Em sessão na CCJ do Senado, o senador Magno Malta (PL-ES) também cobrou do ministro do STF os nomes dos pastores que teriam ligações com milícias e afirmou que o magistrado deveria pedir desculpas pela declaração.
"Com base em que, ministro? Dê os nomes de quem são os evangélicos traficantes. O senhor deve um pedido de desculpas a essa nação cristã, de evangélicos, de homens e mulheres [...] Dê nome, ministro. Quem são os narcotraficantes evangélicos? Quem são os pastores?", disse o senador.
STF sempre atende pedidos da esquerda: "Acinte aos evangélicos", diz deputado
Além dos questionamentos sobre a identidade dos suspeitos, a declaração de Gilmar Mendes foi vista como preconceituosa dentro e fora do Parlamento. Dentro da própria Suprema Corte houve reação. O ministro André Mendonça, classificou a fala como "grave, discriminatória e preconceituosa".
"Posso afirmar, com muita segurança, que se há uma rede evangélica nesse país, ela é composta por mais de um terço da população, a qual se dedica sistematicamente a prevenir a entrada ou retirar pessoas do mundo do crime, em especial aqueles relacionados ao tráfico e uso de drogas, que tanto sofrimento causam às famílias brasileiras", disse Mendonça.
O preconceito também foi apontado de forma individual e coletiva no Congresso Nacional. Membro da bancada evangélica, o deputado federal Sóstenes Cavalcante (PL-RJ) afirmou à Gazeta do Povo que a falar em "narcomilícia evangélica" é um "acinte" ao público evangélico.
"Nunca vimos integrantes da mais alta Corte de Justiça do país com tanto preconceito religioso. Que triste, em pleno século XXI, ter autoridades que pensem assim. Alguns ministros do STF não têm o menor pudor quando pautam esses assuntos e, com certeza, sempre atendem pedidos de partidos de esquerda. É um acinte aos evangélicos", disse o deputado.
A Frente Parlamentar Evangélica também se pronunciou de forma conjunta sobre a declaração de Gilmar Mendes sobre uma "narcomilícia evangélica". Em nota publicada nesta quarta-feira (13), o colegiado diz que "tal afirmação, mesmo que dirigida a um estado da federação, além de difamar a instituição da Igreja Cristã Evangélica, sugere a incriminação e desvalorização do relevante serviço religioso prestado por cerca de 70 milhões de brasileiros em todo o território nacional".
Além dos parlamentares, o pastor Silas Malafaia, da Assembleia de Deus Vitória em Cristo (ADVEC), também cobrou que Gilmar Mendes que apontasse quem eram os envolvidos e classificou a fala do magistrado como "leviana".
"Dê nomes, ministro. É uma acusação leviana e preconceituosa. Olha só como saem as manchetes nos jornais. A maioria do povo brasileiro só lê manchete. Olha como estamos sendo denegridos. Nós somos mais de 30% da população da cidade, o maior grupo religioso da cidade do Rio de Janeiro", disse Malafaia.
Declaração sobre "narcomilícia evangélica" contribui para acirramento entre Legislativo e Judiciário
A declaração do decano no STF ocorre em um momento sensível na relação entre Legislativo e Judiciário. Com a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 45/2023 - que proíbe a posse e o porte de qualquer tipo ou quantidade de droga no Brasil - tramitando no Senado, o Legislativo busca um freio no Judiciário em relação às pautas de costume.
Atualmente, a Corte possui um julgamento que pode referendar a descriminalização do porte da maconha para consumo próprio no país. O placar é de 5 votos a 3 nesse sentido, até o momento. O ministro Dias Toffoli pediu vista na semana passada e adiou a continuidade do julgamento.
Apesar de ainda precisar ser aprovada pelo plenário do Senado, nos bastidores, deputados federais já contam que a proposta será aprovada e chegará à Câmara. Caso a proposta seja aprovada, os congressistas entendem que o Supremo será forçado a recuar, em um primeiro momento, e que isso poderá acontecer também em outros temas da pauta de costumes.
O presidente da Frente Parlamentar Evangélica no Senado, Carlos Viana (Podemos-MG), disse à reportagem que a postura do decano do STF, aliada aos recentes julgamentos do aborto e da descriminalização do porte de maconha, mostra que a Suprema Corte adotou um tom ativista.
"Nós estamos vivendo um momento em que a questão de freios e contrapesos ficou no passado. O Supremo, que sempre teve a função de dirimir dúvidas, esclarecer pontos obscuros na Constituição, agora está com as suas súmulas criando novas leis", disse o senador.
Na leitura do cientista político Adriano Cerqueira, professor do Ibmec de Belo Horizonte, a declaração de Gilmar Mendes mencionando uma "narcomilícia evangélica" é "isolada" dentro do STF, mas ganha proporção por conta do momento em que Judiciário e Legislativo se encontram.
"É uma fala que tende a ser mais isolada, na minha avaliação, mas que tem uma repercussão muito negativa lá no Congresso por conta dessa mobilização mais conservadora contra essa pauta progressista que o STF está aparentemente querendo implementar, principalmente por parte do [ministro Luiz Roberto] Barroso", disse Cerqueira.
O analista político Luan Sperandio, diretor de Operações do Ranking dos Políticos, avalia que o episódio contribui para o distanciamento entre os dois poderes. Ele cita um levantamento feito pelo próprio Ranking que mostrou que 54,9% dos deputados e 42,9% dos senadores possuem percepção negativa sobre a atuação de ministros do STF como um todo.
"Naturalmente, a assertiva do ministro não contribui para a melhora dessa avaliação em relação à parcela relevante dos parlamentares que representam esse segmento religioso", disse.
Comentando a força da bancada em fazer pressão em projetos de costume, Sperandio reconhece que o grupo possui musculatura política. No entanto, ressalta que a bancada perde força pela falta de uma "agenda prioritária".
"Essa bancada se mobiliza de forma bastante enfática e veemente diante de elementos centrais de suas premissas, como discussões envolvendo a descriminalização do aborto e das drogas", disse.
"Mas a influência e a articulação dessa bancada são um pouco superestimadas porque tamanha força e mobilização ficam dissipadas em virtude da falta de uma agenda prioritária e de mais ações coordenadas e com constância dos parlamentares que integram este grupo", afirmou o analista.
Ele acrescentou que o Supremo passou a legislar e essa função é do Parlamento. Entre os evangélicos, temas como esses, drogas e aborto, são muito importantes e acabam piorando ainda mais a imagem da Suprema Corte brasileira.
Criminalidade e religião no Rio de Janeiro
A declaração de Gilmar Mendes sobre "narcomilícia evangélica" traz o seguinte questionamento: realmente existe alguma conexão entre religião e milícias no estado do Rio de Janeiro? Indagado sobre o assunto, o antropólogo e ex-capitão do Batalhão de Operações Policiais Especiais (Bope) Paulo Storani, autor do livro "Vá e Vença" (Ed. Best Seller, 2018), explica que a correlação existe, apesar de ser localizada na Cidade Alta, Zona Norte do Rio. A região é composta por comunidades: Cidade Alta, Vigário Geral, Parada de Lucas, Cinco Bocas e Pica-pau.
Segundo ele, "os criminosos do Complexo de Israel, Zona Norte do Rio, proíbem que outras religiões, em especial de matriz africana, se instalem na localidade por se identificarem com denominações pentecostais". O chefe dessa localidade, conhecido como Peixão, se considera evangélico e desenhou as bandeiras de Israel por toda parte.
Outro aspecto destacado por Storani é que essa localidade não é mais comandada por milícias propriamente, como disse Gilmar Mendes, mas por criminosos que trabalharam para o tráfico e tomaram o comando da milícia posteriormente.
"Não existem mais agentes do Estado comandando milícias. Isso acabou. Foram os próprios moradores que, antes trabalhavam para o tráfico, passaram a trabalhar para a milícia, ascenderam nas estruturas hierárquicas dessas organizações e passaram a comandá-las. Pode haver uma ligação entre os pastores e essa criminalidade? Pode. Mas quando o [ministro do] STF cita as milícias, eles citam o modelo antigo - formado por policiais e ex-policiais - que deixou de ser".