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O Congresso Nacional tem reservado parte de sua agenda à elaboração da lei orçamentária do próximo ano. O procedimento é habitual e figura entre as obrigações de deputados e senadores no segundo semestre de cada ano. A elaboração do Orçamento de 2022, porém, carrega algumas peculiaridades em relação a anos anteriores. Uma é a de que está sendo feita diante de um governo que vem registrando declínio em sua popularidade e, portanto, precisa de mais apoio do Legislativo. Outra questão é o fato de ser o primeiro Orçamento feito após a descoberta das verbas "secretas" ou "paralelas" – episódio ainda nebuloso na relação entre governo e o Congresso.
A elaboração do Orçamento de 2022 ainda esbarra em conflitos do federalismo brasileiro – isto é, da convivência entre os estados. Parlamentares de estados mais populosos reclamam que, se mantidas as propostas atuais para a distribuição de verbas, as regiões com menos habitantes serão proporcionalmente mais beneficiadas.
A Comissão Mista de Planos, Orçamentos Públicos e Fiscalização (CMO), formada por senadores e deputados para elaborar a lei orçamentária, tem como presidente a senadora Rose de Freitas (MDB-ES). O relator é o deputado Hugo Leal (PSD-RJ). Ambos têm perfil conciliador e, desde o início dos trabalhos do colegiado, adotam discurso de diálogo para montar a distribuição das verbas federais. Mas há no Congresso o entendimento de que o trabalho para 2022 tende a ser mais árduo do que o de anos anteriores.
A "briga" de Alcolumbre com Nogueira pelo comando das emendas
Um episódio aparentemente não relacionado à discussão do Orçamento mostra como o tema invade outros debates do Congresso, especialmente no momento em que o governo do presidente Jair Bolsonaro mais precisa de apoio.
No último dia 22, os senadores Davi Alcolumbre (DEM-AP) e Alessandro Vieira (Cidadania-SE) tiveram uma ríspida discussão. Durante sessão na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado, presidida por Alcolumbre, Vieira cobrou o agendamento da sabatina de André Mendonça, indicado por Bolsonaro para o Supremo Tribunal Federal (STF). O parlamentar de Sergipe disse que esperava ouvir do amapaense as "razões republicanas" para a não realização do encontro. Posteriormente, Alcolumbre afirmou que, como o imbróglio foi parar no Judiciário, não poderia tomar uma decisão antes do aval do Judiciário. A pendência, porém, vai além de questões restritas ao nome de Mendonça. Alcolumbre pode estar retaliando o Palácio do Planalto por ter perdido o controle na negociação das emendas parlamentares.
Essa função, segundo reportagem da CNN Brasil, passou da Secretaria de Governo para a Casa Civil. Ou, citando os nomes dos protagonistas: foi da ministra Flávia Arruda para o ministro Ciro Nogueira, no cargo desde agosto. Alcolumbre tinha grande influência sobre a gestão dos recursos liderada por Flávia Arruda. Com a posse de Nogueira na Casa Civil, ela perdeu a gestão das emendas.
Nogueira é senador licenciado e um dos expoentes do chamado Centrão do Congresso Nacional. É presidente nacional do PP, partido que hoje detém a quarta maior bancada da Câmara e uma das mais influentes do Senado. Ele é também conhecido por ser um político que presta apoio a presidentes das mais diferentes ideologias – e, portanto, pode ser visto como um fiador ou um adversário de peso para um governo. Com o comando da gestão das emendas parlamentares, Nogueira "turbinou" sua relevância política.
Negociação de emendas do orçamento: tradição, mas com roupa nova
As emendas do orçamento existem para permitir a parlamentares designarem parte dos recursos públicos federais às regiões que eles representam no Congresso. A ideia por trás do mecanismo é de que o deputado ou senador, conhecendo melhor a realidade da região que o elegeu, teria mais capacidade para identificar as prioridades dos moradores locais e, assim, destinar com qualidade os recursos disponíveis.
Na prática, porém, as emendas se tornaram moeda de troca na relação entre governo e Congresso. Quando precisa de apoio em votações de maior importância, o governo intensifica a liberação de emendas. Desde a redemocratização do país, na década de 1980, todas as gestões presidenciais seguiram essa lógica política.
A Gazeta do Povo mostrou, por exemplo, que o governo ofereceu a liberação de emendas para "destravar" a tramitação da reforma administrativa no Congresso.
O governo Bolsonaro passou a contar ainda com um elemento adicional nas suas negociações que não existia nas gestões anteriores. São as chamadas emendas de relator – justamente as que estão sob disputa no Senado. As emendas de relator, batizadas na terminologia orçamentária de RP-9, foram idealizadas em 2019. Por meio delas, fatias expressivas do orçamento da União ficam sob controle do relator da lei orçamentária no Congresso, que é um deputado federal ou um senador. O pagamento dessas emendas não se dá por decisão exclusiva do relator, mas a partir daí abre-se um meio para negociações entre ele, o governo e os parlamentares interessados nas verbas.
Esse processo tem pouca transparência. Os critérios para o efetivo pagamento das emendas não são claros e se explicam por processos políticos. O jornal O Estado de S. Paulo publicou uma série de reportagens sobre o sistema, que batizou de "orçamento secreto" ou "orçamento paralelo", em que identificou privilégios a aliados do governo no repasse dos recursos.
As reportagens do Estadão também constataram que parte das verbas foram destinadas à compra de equipamentos agrícolas, em especial tratores, com indícios de sobrepreço. O procedimento despertou a atenção da Controladoria-Geral da União (CGU), que no último dia 14 determinou a suspensão de contrato para a aquisição de tratores, em negócios vinculados ao "orçamento secreto". A CGU suspeita de R$ 142 milhões em valores acima do habitual nos procedimentos.
Além disso, o Tribunal de Contas da União (TCU) também ordenou a suspensão da compra de tratores e outros tipos de maquinário pesado realizada pela Companhia de Desenvolvimento do Vale do São Francisco (Codevasf), empresa pública vinculada ao Ministério do Desenvolvimento Regional, pela suspeita de sobrepreço de até 259%. O dinheiro era oriundo do "orçamento paralelo".
A CGU e a Polícia Federal (PF) também investigam a suspeita de que parlamentares teriam negociado a destinação dessas emendas para prefeituras em troca da "devolução" de uma porcentagem desses valores para eles próprios.
O relator Hugo Leal solicitou, no último dia 28, acesso a processos do Tribunal de Contas da União (TCU) que investigam o pagamento das emendas RP-9. Em seu requerimento ao TCU, Leal escreveu: "É fundamental para mim, especialmente, ter conhecimento sobre essas informações para que possamos fazer os ajustes necessários em caráter prévio e evitar futuros dissabores na avaliação do Orçamento de 2022".
A deputada Adriana Ventura (Novo-SP) avalia que o debate em torno das emendas de relator “ainda não foi feito” dentro do Congresso. A parlamentar é crítica ao modelo, que considera sem transparência e propício ao fortalecimento de “currais eleitorais” de determinados deputados e senadores. “Não tem nenhuma transparência, nenhum critério, nenhuma uniformidade de procedimento. A sociedade não sabe o que está acontecendo. É algo que fere os princípios da administração e acaba utilizado com fins eleitoreiros", diz.
Mesmas verbas para todos os estados
Em meio a discussões sobre apoio político e eventuais casos de corrupção, a Comissão Mista do Orçamento (CMO) tomou uma decisão que agradou grande parte do Parlamento mas contrariou os congressistas de estados mais populosos. A CMO determinou que cada estado será contemplado com o mesmo valor em emendas no orçamento de 2022: R$ 212,8 milhões. O valor será o mesmo, independentemente do tamanho da população dos estados. Ou seja: São Paulo, com seus quase 46 milhões de habitantes, terá à disposição a mesma verba que Roraima, cujo número de moradores é inferior a 600 mil.
“Isso é uma situação de muita distorção", critica a deputada Adriana Ventura. A parlamentar pediu a realização de uma audiência pública sobre o tema, que pode ainda ter outro encaminhamento, a despeito da decisão da CMO. Durante os debates na comissão, os parlamentares favoráveis à medida alegavam que os estados mais populosos seriam compensados pelo fato de que existem as emendas individuais, direcionadas a cada congressista, e o tamanho da bancada de deputados é definido de acordo com a população de cada estado. Ainda assim, existem distorções: Amazonas, com mais de 4 milhões de habitantes, tem o mesmo número de deputados federais e senadores do que Roraima, com população significativamente menor.
As emendas podiam ser apresentadas pelos congressistas até o último dia 20. O prazo definitivo para que o Congresso aprove a lei orçamentária é o 17 de dezembro.