O governo de Jair Bolsonaro quer rever o pacto federativo. Apresentou, ainda em novembro, duas propostas de emenda à Constituição (PEC), a Emergencial e a do Pacto Federativo, que trazem pontos muito semelhantes no conteúdo. Os projetos convergem ao trazer mecanismos para ajustar as contas públicas em caso de emergência fiscal, com distinções para cada ente.
A PEC do Pacto Federativo é mais ampla: além de incluir mais fatores que vão ser importantes para o equilíbrio fiscal no longo prazo, também quer tornar estados e municípios menos dependentes da União. Isso é feito por meio de medidas de descentralização e desvinculação de recursos, o que permite um alívio financeiro principalmente no curto prazo por tornar a gestão das contas públicas um pouco mais flexível.
A questão é que ao mesmo tempo em que oferece recursos para facilitar a busca pelo ajuste fiscal, a proposta também corta canais que permitiam pedir socorro ao governo federal. Governadores e prefeitos não poderiam mais contar com o financiamento da União para governos regionais, medida que passaria a vigorar em 2026.
Na avaliação da Instituição Fiscal Independente (IFI), órgão ligado ao Senado Federal, essas propostas vão na direção correta por criarem instrumentos de contenção das despesas obrigatórias, que são as principais responsáveis pelo desequilíbrio das contas públicas nos três níveis de governo. “Não há como esperar o efetivo empenho dos entes subnacionais na busca do equilíbrio fiscal se o custo do ajuste fiscal puder ser socializado com o restante do país”, observa a IFI em comentário sobre as PECs que compõe o plano Mais Brasil. O documento é assinado por Felipe Salto, Josué Pellegrini e Daniel Couri, diretores da IFI.
Essa também é a avaliação do pesquisador associado do Insper, Marcos Mendes. Para ele, o diagnóstico é certeiro ao priorizar o controle dos gastos obrigatórios. “Já fizemos a reforma da Previdência, que por um bom tempo resolve a questão da despesa obrigatória da Previdência. Temos agora que enfrentar a despesa de pessoal, que é a segunda maior, e enfrentar também a despesa obrigatória com programas sociais, que precisam ser mais bem desenhados”, avalia em um cenário expandido.
Apesar da direção correta, há pontos de alerta e melhorias que podem ser implementados na proposta durante a tramitação legislativa. Para IFI, uma questão importante é “melhorar a redação das propostas e depurar possíveis inconsistências e redundâncias”. Já Mendes alerta que os defeitos que existem na proposta podem ser reformados, para que seja possível alcançar a redução do custo fiscal sem afetar o atendimento à população que precisa de serviços públicos de qualidade.
Veja quais são os pontos positivos e negativos – e até um neutro – da PEC do Pacto Federativo
Positivo
Controle das despesas obrigatórias
“A despesa obrigatória está crescentemente tomando todo o orçamento”, observa o pesquisador associado do Insper, Marcos Mendes. A PEC do Pacto Federativo promove o controle desse tipo de gasto, do mesmo modo que a Emergencial. Entre as medidas apresentadas para facilitar essa gestão estão os mecanismos de ajuste que os chefes dos Executivos poderão adotar caso a União descumpra a regra de ouro ou estados e municípios cheguem ao ponto de que a despesa corrente supere 95% da receita corrente.
Nesse caso, há gatilhos específicos que promovem um ajuste forçado do gasto público, como as proibições de contratação de novos servidores, de realização de concurso público e da concessão de reajustes para funcionários públicos, além de permitir redução de até 25% da jornada de trabalho com adequação dos vencimentos do servidor.
“É uma medida bastante importante, porque existe uma inércia no gasto de pessoal muito grande e você precisa travar isso”, observa Mendes. Para ele, as remunerações no setor público estão muito altas e existe uma “gordura” para cortar. “E é uma medida social justa, porque coloca os servidores públicos numa faixa de renda bastante elevada e o ajuste fiscal não vai recair nos mais pobres”, pondera.
Regras fiscais unificadas
As regras fiscais serão unificadas: teto de gastos, regra de ouro e Lei de Responsabilidade Fiscal. Alguns itens que são aplicados apenas à União, poderão valer para estados e municípios também. No caso da regra de ouro, a autorização para que o ente público a descumpra poderá ser votada com o Orçamento do ano seguinte, não mais apenas durante aquele exercício – ainda há outra PEC que pode mudar a aplicação da norma. Para Marcos Mendes, do Insper, do jeito como está, a regra de ouro não funciona porque só estoura anos após as causas que levaram ao colapso das contas públicas.
Na avaliação da IFI, a PEC do Pacto Federativo tem uma preocupação com a disponibilidade de informações confiáveis sobre a situação fiscal dos entes. Por isso, a padronização desses dados é vista como um avanço – quem não fornecer dados fiscais na periodicidade, formato e sistema determinados pela União pode ter transferências e de operação de crédito suspensas. Além disso, a proposta determina que tribunais de contas estaduais e municipais sigam as interpretações de leis complementares com conteúdo fiscal como analisado pelo TCU.
Salário educação para gestão dos municípios e estados
A PEC prevê a transferência dos recursos do salário-educação para estados e municípios. Essa é uma contribuição que corresponde a um percentual que incide sobre afolha de pagamento das empresas. Hoje, é a União que administra os recursos, que podem ser usados para compra de livros didáticos, equipamentos de informática e financiamento de transporte escolar. Na opinião de Marcos Mendes, pesquisador associado do Insper, isso está sendo mal gerido. “Há muita concentração no governo federal, que compra coisas que não chegam nos municípios”, argumenta. Por isso, faz mais sentido que o dinheiro vá diretamente para o caixa de estados e municípios.
Contingenciamento dos orçamentos dos poderes autônomos
Estados e municípios vão poder contingenciar verbas dos poderes Legislativo, Judiciário e Ministério Público locais, de acordo com a proposta da PEC do Pacto Federativo. Isso já acontece na esfera federal, e a União pode bloquear verbas desses poderes. No caso dos governos locais, eles só podem contingenciar as verbas dos Executivos. O pesquisador associado do Insper, Marcos Mendes, lembra que os poderes autônomos de estados e municípios conseguiram, no Supremo Tribunal Federal (STF), bloquear um item da lei de responsabilidade fiscal que permitia que tivessem seus recursos contingenciados. “Tem estados que estão quebrados e o Judiciário e Legislativo locais com verbas bilionárias gastando como se não houvesse amanhã”, avalia.
Neutro
Fim do socorro da União aos outros entes
Como estados e municípios terão mais autonomia nas finanças – e receberão outros tipos de repasses – operações de créditos, como empréstimos da União para os outros entes, serão proibidos. Essa restrição valerá tanto para operações diretas quando indiretas, por meio de autarquias, fundações, estatais e bancos oficiais. A partir de 2026, a União não será mais fiadora de operações de créditos de governos locais – só haverá garantias a empréstimos com órgãos internacionais, como o Banco Mundial e Banco Interamericano de Desenvolvimento. Casos de calotes de prefeituras e governos estaduais a bancos tradicionais não serão mais cobertos pelo Tesouro Nacional. É também a partir de 2026 que a União ficará proibida de socorrer estados e municípios em dificuldades fiscais e financeiras. A medida contida na PEC do Pacto Federativo é importante, mas só vai ser efetiva caso os demais parâmetros funcionem.
Negativo
Conselho fiscal da república
A ideia é boa, mas é preciso atenção para que não seja desvirtuada. A PEC propõe a criação do Conselho Fiscal da República, composto por representantes de todos os poderes e entes federados. Uma lei complementar vai determinar como será o funcionamento e escolha dos integrantes. Esse conselho deve avaliar a sustentabilidade de longo prazo dos orçamentos públicos, o cumprimento de exigências fiscais e poderá fazer recomendações.
Para Marcos Mendes, do Insper, colocar todo mundo no mesmo barco da gestão fiscal pode gerar um efeito contrário. “Pode ser um fórum de pressão política por mais dinheiro, uma instância inócua ou vai criar mais problemas do que soluções”, argumenta.
Divisão de royalties
A PEC do Pacto Federativo determina que a União vai transferir parte dos recursos que lhe cabem como participação no resultado e compensação financeira pela exploração de recursos naturais – são os royalties do petróleo. Como isso acontecerá – parcela a ser distribuída, base de cálculo e condições – será estabelecido em lei complementar. Há uma menção a “indicadores de resultado”, mas não se esclarece o que são. Esse tipo de recurso não poderá ser usado para pagar despesa de pessoa, incluindo aposentados e pensionistas.
Para Marcos Mendes, do Insper, a União não está em situação financeira confortável para distribuir esses recursos sem contrapartida. “Mandar esse dinheiro desestimula o ajuste fiscal. Esse tipo de receita não é adequada para financiar estados, que têm despesas regulares e essa receita é variável. Quando faz isso, você desestimula uma solução mais rápida para a reforma tributária, por exemplo. Os estados é que deveriam buscar uma forma correta de se financiarem”, pondera.