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O presidente Jair Bolsonaro tem dito, com cada vez mais frequência, que busca atuar "dentro das quatro linhas da Constituição". O respeito à Carta Magna atual foi uma das principais pautas das manifestações governistas do dia 7 de setembro. Mas parte dos apoiadores de Bolsonaro, porém, não espera que Bolsonaro aja "dentro das quatro linhas"; para eles, o ideal seria a criação de outras quatro linhas. Ou seja, uma nova Constituição. Reivindicações com este perfil são feitas por militantes anônimos, mas também estão presentes na argumentação de figuras mais destacadas do governismo. O ramo jurídico vê a ideia com ressalva.
O ex-ministro Ernesto Araújo, que mesmo após ter deixado o governo segue identificado com a linha pró-presidente, defendeu a implantação de uma nova Constituição durante sua participação no CPAC, evento conservador realizado no início de setembro. Araújo declarou que seu ideal é uma Constituição que contemple o direito ao acesso a armas, a liberdade de expressão de maneira incondicional e inquestionável, e também a proibição do aborto. Segundo o ex-chanceler, o ideal seria que o Brasil promovesse um plebiscito para verificar se há apoio a uma reformulação da Carta Magna.
A ideia de um plebiscito foi também sugerida pelo líder do governo na Câmara, Ricardo Barros (PP-PR), no início do ano. Em um artigo publicado na Folha de S. Paulo, o parlamentar declarou que o texto atual "tem 103 vezes a palavra ‘direitos’ e 9 vezes a palavra ‘deveres’. Trata-se, claro, de uma conta que não fecha". A ocasião não foi a primeira em que Barros defendeu um novo texto constitucional. Em outubro do ano passado, ele já havia exposto sua opinião sobre o tema, em um evento da Academia Brasileira de Direito Constitucional, quando declarou que o texto em vigor torna o Brasil "ingovernável". À Gazeta do Povo, Barros disse na quinta-feira (9) que mantém o posicionamento.
Parte dos manifestantes do dia 7, bem como os que se expressam sobre o tema nas redes sociais, defende que a nova Constituição traga entre seus dispositivos a "criminalização do comunismo". Um projeto de lei com este teor chegou a ser apresentado no Congresso Nacional pelo deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), filho do presidente da República. A proposta de Eduardo equipara o comunismo ao nazismo, criminalizando a apologia às duas correntes. A proposição não avançou, não tendo tramitações significativas desde sua apresentação, em 2016.
O deputado federal Luiz Philippe de Orleans e Bragança (PSL-SP) é de direita, aliado de Bolsonaro e favorável à criação de uma nova Constituição. Mas rejeita a sugestão de que um texto constitucional contenha a proibição da defesa do comunismo. "Criminalizar uma ideologia é algo muito ruim", disse. Para o parlamentar, o ideal é que a Constituição tenha em sua redação dispositivos que vedem a implantação de qualquer corrente autoritária — e o comunismo está entre elas, segundo sua ótica.
Bragança está trabalhando no projeto de criação da proposta de uma nova Constituição, que chama de "a libertadora". Segundo ele, o objetivo da nova Constituição é alcançar uma legislação que não seja burocrática, que tenha um sistema de freios e contrapesos claro, e que divida mais os poderes entre as autoridades. "A Constituição atual permite muita interferência do Estado. Cria verdadeiros 'donos do orçamento' e permite o aparelhamento do governo. Permite que sejam corrompidas todas as regras", declarou.
O deputado diz que sua proposta tem sido "muito bem recebida" pela militância e também por juristas e empresários, que também identificam problemas no texto atual.
A Constituição atualmente em vigor no Brasil foi promulgada em 5 de outubro de 1988. O texto foi um marco da transformação do Brasil após a ditadura militar que governou o país entre 1964 e 1985. Alguns dos constituintes que participaram da elaboração da Constituição ainda têm — ou voltaram a ter recentemente — mandato no Congresso, como Benedita da Silva (PT-RJ), Aécio Neves (PSDB-MG), Átila Lira (PP-PI), José Serra (PSDB-SP) e Renan Calheiros (MDB-AL), entre outros. Esses componentes fazem com que muitos ativistas considerem a Constituição "viciada", já que teria sido feita como resposta ao governo militar e por pessoas que representam a atual classe política.
Constituição atual não permite "extinção", mas mudar pode
A ideia de se mudar a Constituição aparece em diferentes discursos. Mas qual a sua viabilidade? A Constituição atual permite a sua própria "extinção"? Ou mesmo mecanismos que poderiam levá-la a uma transformação quase completa?
Segundo o advogado Camilo Onoda Caldas, que é doutor em Direito pela USP e sócio da Gomes, Almeida e Caldas Advocacia, o texto corrente da Constituição não contém dispositivos de "autodestruição". "Não existe nada neste sentido. A Constituição de 1988, como todas as outras, foi criada com o objetivo de ser perpétua", aponta.
O advogado explica que a Constituição atual detém dispositivos que preveem a revisão ou a readequação de parte de seus textos, mas tudo dentro de limites estabelecidos pela própria Carta Magna. "O atual Congresso Nacional só tem o que se chama de poder constituinte reformador. Ou seja, ele só pode alterar a Constituição nos limites que a própria Constituição cria. Não tem o poder constituinte originário, que seria o de criar uma Constituição. Isso quem tem é apenas uma Assembleia Constituinte", ressalta. E Caldas ressalta que não há também, na Constituição, a previsão para instalação de uma Assembleia Constituinte.
Caldas ressalva, porém, que todas as Constituições do Brasil foram trocadas em momentos em que as conveniências políticas assim o pediram. Ou seja: os textos eram "ilegais", pois criavam Constituintes e abriam caminho para uma nova Carta Magna de um modo que não estava previsto no texto constitucional em curso, mas foram permitidos porque se entendia, à época, que correspondiam a um desejo da sociedade (ou ao governo de plantão, no caso das Constituições impostas nas gestões ditatoriais).