Começou a ser discutida na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara uma proposta de emenda à Constituição (PEC) que reduz de 75 para 70 anos a idade-limite de permanência dos ministros nos tribunais superiores de Brasília. A PEC, que volta à pauta da CCJ nesta terça-feira (16), foi objeto de obstrução pela oposição, principalmente porque daria ao presidente Jair Bolsonaro o direito de indicar, até o fim do atual mandato, mais dois ministros para o Supremo Tribunal Federal (STF), além dos dois nomes que já indicou (Kassio Nunes Marques e André Mendonça).
Se aprovada, a proposta da deputada Bia Kicis (PSL-DF), presidente do CCJ, acarretaria a saída imediata da Corte dos ministros Ricardo Lewandowski e Rosa Weber, ambos com 73 anos. Mas, para além do STF, a PEC teria um efeito cascata muito maior sobre todo o Judiciário, turbinando a caneta de Bolsonaro também para novas indicações ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), ao Tribunal Superior do Trabalho (TST) e ao Superior Tribunal Militar (STM). Nesses últimos tribunais, em vez de indicar apenas seis novos ministros, Bolsonaro poderia nomear mais 20.
No STJ, o segundo mais importante tribunal do país, composto por 33 ministros, Bolsonaro teria mais dez indicações, além das três que já tem direito até o fim de 2022. Atualmente estão vagas as cadeiras deixadas pelos ministros aposentados Napoleão Nunes Maia e Nefi Cordeiro e, em agosto do ano que vem, deixará a Corte Félix Fischer.
Se a PEC de Bia Kicis for aprovada, também teriam de deixar o STJ, ainda no atual mandato de Bolsonaro, os ministros Antonio Saldanha Palheiro, Assusete Magalhães, Nancy Andrighi, Francisco Falcão, Jorge Mussi, Og Fernandes, Laurita Vaz, Regina Helena Costa, Villas Bôas Cueva e Rogerio Schietti Cruz. Com isso, Bolsonaro concluiria seu mandato renovando mais de um terço da Corte.
No TST (composto por 27 ministros), além das duas vagas que Bolsonaro já poderá preencher neste mandato (a serem abertas com as aposentadorias de Renato de Lacerda Paiva e Emmanoel Pereira em 2022), surgiriam outras cinco, com a saída, até o fim do ano que vem, de Maria Cristina Irigoyen Peduzzi, Aloysio Corrêa da Veiga, Dora Maria da Costa, Delaíde Alves Miranda Arantes e Evandro Pereira Valadão Lopes.
Por fim, no STM (total de 15 ministros), além da cadeira a ser deixada pelo general Luis Carlos Gomes Mattos, ficariam vagas mais cinco: as dos generais Lúcio Mário de Barros Góes, Odilson Sampaio Benzi e Marco Antônio de Farias, a do almirante Celso Luiz Nazareth e a de José Coêlho Ferreira.
Kicis diz que é preciso buscar a "oxigenação" do Judiciário
Na última terça-feira (16), na reunião da CCJ, Bia Kicis afirmou que sua proposta não mira o STF, mas busca a "oxigenação" dos tribunais. O que não disse é que isso aumenta ainda mais o poder de Bolsonaro.
Indicações para tribunais superiores são objeto de acirrada disputa. O lobby político junto ao presidente envolve atuais ministros de cortes superiores, senadores (de quem depende a aprovação final dessas indicações), governadores (principalmente para o STJ, que tem o poder de julgá-los), deputados federais e advogados influentes na elite do Judiciário – parte das vagas, aliás, é preenchida por advogados e membros do Ministério Público, dentro do "quinto constitucional", regra da Constituição que reserva a essas carreiras 20% dos assentos.
Há ainda um efeito cascata no Judiciário, porque parte das vagas abertas em qualquer dos tribunais superiores é destinada a membros de carreira da magistratura, o que também mobiliza desembargadores em busca de promoção. Por sua vez, vagas deixadas por esses em seus tribunais de origem interessam a juízes, advogados e promotores.
Na sessão da última terça, Bia Kicis disse que a proposta é uma promessa de campanha. "Hoje um juiz fica mais de 20 anos no primeiro grau sem conseguir ser promovido. Hoje é praticamente impossível uma promoção. As carreiras precisam de oxigenação. Não estamos mirando no STF, estamos sim nas carreiras em geral", afirmou a deputada. Advogada e procuradora aposentada do Distrito Federal, Kicis é sempre cortejada por interessados em novas vagas, pela vivência e contatos na área, e por causa da proximidade dela com Bolsonaro.
Na prática, a proposta dela derruba uma outra emenda constitucional, a chamada PEC da bengala, aprovada em 2015, que elevou de 70 para 75 anos a idade da aposentadoria compulsória dos ministros de tribunais superiores. Na época, a justificativa oficial era de que magistrados acima dos 70 ainda gozavam de saúde física, mental e intelectual para continuarem julgando por mais cinco anos, e que a medida ainda economizaria R$ 20 bilhões em salários. Mas, por trás desse discurso, o principal objetivo dos políticos era impedir que a então presidente Dilma Rousseff (PT) indicasse mais cinco ministros para o STF.
Por motivos óbvios, o PT foi contra. Mas hoje também se opõe à volta à regra anterior. "Consagrou já. Nós ali perdemos, mas agora não dá para ficar mudando como se muda de roupa. Instituições de Estado são instituições de Estado", disse à Gazeta do Povo o deputado Paulo Teixeira (PT-SP), que participa das discussões.
A eventual aprovação da PEC teria impacto no próximo mandato presidencial. Quem vencer as eleições em 2022 poderia indicar três ministros para o STF, pois teriam de deixar a cadeira Luiz Fux (em 2023), Cármen Lúcia (em 2024) e Gilmar Mendes (em 2025). Se a proposta não for aprovada e tudo continuar como está, seriam apenas duas vagas, as de Lewandowski e Rosa Weber. "Não podemos trabalhar indicações com visão de tão curto prazo e aprovar uma PEC com um olhar ao sabor do momento", insistiu Teixeira, ao ser questionado se essas indicações interessariam ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, pré-candidato na disputa presidencial do ano que vem.
PEC tem apoio relativo de juízes
Para saber se a proposta realmente tem adesão dos magistrados, a Gazeta do Povo consultou duas das principais entidades representativas da classe. Renata Gil, presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), lembrou que, em 2015, quando foi aprovada a PEC da bengala, 73,3% dos juízes eram a favor da manutenção da aposentadoria compulsória aos 70 anos, como propõe hoje Bia Kicis, e 69,3% rejeitavam a elevação da idade de saída para 75 anos, como acabou aprovado.
"Durante os debates acerca da 'PEC da bengala', a AMB se posicionou contrariamente à proposta. Caso seja aprovada nova proposição legislativa para restabelecer a idade limite de 70 anos, a entidade defende o respeito à prerrogativa constitucional da vitaliciedade, de modo que a medida não valha para aqueles que hoje estão no exercício do cargo", ressalvou Renata Gil.
Durante a discussão da nova PEC na última terça (16), Kicis indicou estar aberta à possibilidade de incluir uma cláusula desse tipo, "dando um prazo maior [para que atuais ministros permaneçam], ou até fazer 75 anos, ou mais um ano e meio, seja o que for".
Formalmente, porém, nenhuma alteração desse tipo foi proposta. Para defender a aprovação, a deputada também disse que colocou em pauta, como presidente da CCJ, outra proposta paralela, para elevar de 65 para 70 anos a idade máxima para uma pessoa ser nomeada para um tribunal superior.
Se as duas propostas forem aprovadas, a mudança permitiria ao presidente encurtar bastante o tempo de um indicado a ministro num tribunal superior, a depender de sua idade. Se escolher alguém com 67 anos, por exemplo, ele ficaria na Corte por apenas três.
O presidente da Associação Nacional dos Magistrados Estaduais (Anamages), Magid Nauef Láuar, disse apoiar a proposta de Bia Kicis independentemente dos interesses políticos em relação aos tribunais superiores. "A magistratura do primeiro grau está estagnada, porque se abre uma vaga no Tribunal de Justiça, abre na instância inferior. Após a PEC da bengala, os juízes ficaram desanimados, porque todos querem progredir na carreira, como em qualquer profissão. Além da renovação nos tribunais, ainda mais importante é a esperança na carreira", disse.
Ele entende ser natural a influência política nas indicações para tribunais superiores e considera que os indicados mais políticos são aqueles oriundos da advocacia. Pondera, por outro lado, que após assumir o cargo, ministros tendem, com o tempo, a decidir de forma independente do presidente que o indicou.
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