A proposta de emenda à Constituição que permitiria ao Congresso sustar decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) que “extrapolem os limites constitucionais” é semelhante a um dos itens da reforma judicial encampada pelo governo de Benjamin Netanyahu em Israel, e que desencadeou uma crise política e institucional sem precedentes no país do Oriente Médio antes da guerra contra o grupo terrorista Hamas.
Por causa dessa e de outras medidas propostas para esvaziar o poder da Suprema Corte local, a população israelense saiu às ruas neste ano para protestar contra o pacote, acusando Netanyahu e sua coalizão no Parlamento de promover um retrocesso democrático no país.
No Brasil, a PEC foi apresentada no final de setembro, no embalo de outras iniciativas do Congresso para reduzir o poder do STF. É o caso de outra proposta de emenda constitucional, aprovada no início deste mês na Comissão de Constituição e Justiça do Senado, que praticamente acaba com as decisões monocráticas de ministros e fixa prazo máximo para pedidos de vista; e também de outras propostas, prestes a avançar, que buscam fixar tempo de mandato para os futuros integrantes da Corte.
Em Israel, o governo Netanyahu, iniciado em dezembro do ano passado, é formado por um grupo de partidos de direita que, assim como no Brasil, manifesta intensa insatisfação com decisões consideradas progressistas da Suprema Corte, com decisões favoráveis à comunidade LGBT e contrárias à influência religiosa em políticas públicas. A diferença é que lá o governo tem ampla maioria e, por isso, já conseguiu aprovar algumas mudanças. E, ao contrário do Brasil, em Israel a população saiu às ruas para se manifestar a favor do tribunal.
Por causa dos protestos, iniciados em janeiro, Netanyahu anunciou, no final de junho, que não iria mais levar adiante a proposta que permitiria ao Parlamento reverter decisões da Suprema Corte.
“A ideia de uma cláusula anulatória, onde o parlamento, o Knesset, pode anular as decisões da Suprema Corte com uma maioria simples... eu joguei isso fora”, disse, numa entrevista ao "Wall Street Journal", acrescentando que estava “atento ao pulso do público e ao que penso que será aprovado”.
O primeiro-ministro conseguiu aprovar, em julho, outra proposta, que proibiu o tribunal de adotar a “cláusula da razoabilidade” em julgamentos – um tipo de interpretação, construída na própria Corte, que tem sido usada para barrar leis consideradas abusivas do governo.
Outro ponto da reforma judicial pretende dar ao governo mais poder para nomear juízes em Israel, inclusive na Suprema Corte. Por trás do esforço em frear a Suprema Corte e controlar o Judiciário, há também interesse de Netanyahu se livrar de condenações por corrupção.
No Brasil, a proposta que pode sustar decisões do STF é a que mais assusta os ministros. Muitos deles consideram que dificilmente será aprovada, mas avaliam que, se valesse, o Legislativo teria o poder, na prática, de anular qualquer decisão que desagradasse bancadas parlamentares que, hoje, têm grande força no Senado e na Câmara.
O que prevê a PEC do "Equilíbrio dos Poderes"
A proposta do “Equilíbrio dos Poderes”, como foi apelidada, recebeu a assinatura de 175 deputados, a maioria de centro e direita, e que têm expressado crescente insatisfação com o ativismo judicial do STF.
Contribuíram para isso a recente decisão de por fim ao marco temporal para demarcação de terras indígenas, e os julgamentos que poderão descriminalizar o porte de drogas para consumo pessoal e aborto de fetos com até três meses. São exemplos de decisões que poderiam ser revertidas se a PEC for aprovada.
Pelo texto da proposta, a suspensão de uma decisão do STF dependeria da proposição de um decreto legislativo assinado por um terço da Câmara e do Senado: ao menos 171 dos 513 deputados e 27 senadores.
Para efetivar a suspensão, esse decreto legislativo precisaria ser aprovado por três quintos dos parlamentares em cada casa, ou seja: 308 deputados e 49 senadores, em dois turnos de votação. São quóruns semelhantes aos necessários para aprovar uma PEC, com a diferença que para propor uma emenda constitucional em si, basta apoio de um terço na Câmara ou no Senado, não um terço nas duas casas, como fixa a PEC do Equilíbrio.
Além de alarmar alguns ministros do STF, a PEC também divide a comunidade jurídica. Para alguns estudiosos, ela fere o princípio da separação de poderes; para outros, reequilibra a balança entre Legislativo e Judiciário, a partir da premissa de que o Supremo tem avançado sobre competências legislativas do Congresso.
Os argumentos a favor e contra a PEC do Equilíbrio
Para o professor de direito constitucional Fabio Tavares Sobreira, a PEC do Equilíbrio é plausível e sinaliza até mesmo uma deferência do Parlamento para com o STF. Ele lembra que a própria Constituição, no artigo 49, que define as competências exclusivas do Congresso, diz no inciso XI que uma delas é “zelar pela preservação de sua competência legislativa em face da atribuição normativa dos outros Poderes”. Com base nisso, segundo Sobreira, Câmara e Senado já poderiam suspender decisões do Supremo que exorbitam e avançam sobre o Legislativo.
Para isso, segundo ele, bastaria aprovar um decreto legislativo comum, que pode ser proposto por qualquer parlamentar federal, individualmente, e que precisa de maioria simples (metade mais um dos deputados e senadores presentes no plenário) para ser aprovado, nas duas casas. Além de explicitar ainda mais esse poder, a PEC, no entanto, exige maioria qualificada (um terço para apresentação e três quintos para aprovação, em dois turnos) para suspender decisões do STF que legislam no lugar do Parlamento.
“O Supremo deveria agradecer, pois o Congresso está mandando uma mensagem de respeito, ao exigir uma maioria qualificada de PEC, enquanto poderia suspender uma decisão com um simples decreto legislativo comum, algo que nunca fez desde 1988, mesmo nas inúmeras vezes em que o Supremo legislou”, diz ele.
“O Legislativo está exercendo suas atribuições, como a própria Constituição autoriza no artigo 49, inciso XI, e em nenhum momento está vilipendiando o STF, que é o que a Corte faz com o Congresso com agendas políticas, como é o caso da descriminalização das drogas, do aborto, e com o fim do marco temporal. Que é um escárnio, pois ofende a segurança jurídica e passa por cima do Legislativo, que aprovou proposta para que o critério seja mantido nas demarcações”, completa o professor.
Na justificativa da proposta, há argumento semelhante. “[A PEC] não retira nenhuma prerrogativa do STF, mas tão somente acrescenta nas prerrogativas do Congresso Nacional os meios eficazes de assegurar sua competência, de preservar sua essencial prerrogativa de legislar como lhe é assegurado pela própria Constituição”, diz o texto.
Para o doutor em direito constitucional Acacio Miranda da Silva Filho, a PEC em si é inconstitucional, pois segundo ele afronta o princípio da separação de poderes, cláusula pétrea da Constituição e que não pode ser alterada.
“Há uma competência típica do Poder Judiciário que é julgar, e uma atípica que é legislar, quando há uma omissão legislativa. Mas não é competência atípica do Legislativo adentrar na esfera do Judiciário. Sua competência típica é legislar, e a atípica é a fiscalização do Executivo”, diz Miranda, que também é professor na área. Além disso, ele critica o “subjetivismo” do dispositivo que permitiria ao Congresso sustar decisão que “extrapole os limites constitucionais”.
“Imagina o Congresso, que é plural, determinar o que é ou não limite constitucional. É uma ingerência política no controle de constitucionalidade, que é um juízo técnico. Não é à toa que todos os magistrados, incluindo os ministros, têm uma série de prerrogativas e garantias para assegurar sua independência e autonomia, de modo que não fiquem suscetíveis à pressão política ou popular”, diz ele.
Acacio concorda que existe ativismo judicial, mas pondera que quando o Legislativo não regulamenta, por lei, o exercício de direitos fundamentais determinados pela Constituição, cabe ao Supremo intervir para efetivá-los.
Para Fabio Tavares Sobreira, os casos da descriminalização do aborto e do porte de drogas não preenchem esses requisitos, porque existem leis, aprovadas pelo Congresso, que tipificam penalmente essas condutas.
“A Constituição prevê a omissão inconstitucional. Mas funciona assim: o texto constitucional tem que apresentar um direito, liberdade ou prerrogativa, mas se seu exercício depender de uma norma regulamentadora do Legislativo que não existe ou de política pública do Executivo que também não existe, estamos diante de omissão inconstitucional. Se o STF vier a ser provocado, está no direito de exercer sua prerrogativa de efetivar esse direito. Mas no caso da descriminalização de drogas e do aborto, não há omissão, porque existe lei que trata dos crimes”, afirma.
Redução do ‘acesso’ ao STF
No dia 14, em um debate promovido por empresários brasileiros em Paris, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, disse que uma das ideias para frear o ativismo judicial seria limitar o acesso ao STF, para evitar que o tribunal tenha um “ponto de contato constante com a sociedade em função de decisões”, e passe a ter uma atuação mais focada em casos de “índole constitucional”.
Observadores consideram que a ideia pode significar redução dos partidos e entidades aptas a acionar a Corte, ou então retirar do STF o julgamento de recursos oriundos das demais instâncias, limitando seu papel à análise da constitucionalidade das leis.
Atualmente, qualquer legenda com representação no Congresso pode pedir ao tribunal para derrubar leis, decretos e atos administrativos. O mesmo pode ser feito por alguma entidade de classe, desde que atue em âmbito nacional. Uma mudança possível seria impor mais requisitos para esses órgãos, como número de parlamentares ou de associados.
No debate em Paris, também estava o ministro Gilmar Mendes, decano do STF. Ele reconheceu que é preciso discutir o poder de parlamentares que não têm poder de articulação provocarem o Supremo quando não têm suas propostas vitoriosas no Congresso.
“Um representante no Congresso pode fazer uma ação direta de inconstitucionalidade (ADI). Ele não pode articular uma boa imposição no Congresso, mas pode provocar o controle abstrato de normas. O acesso é muito fácil e se faz de forma direta. Encerrada a discussão no Congresso, o caso vem ao Supremo. E isso vale não só para leis, mas também para emendas constitucionais”, observou.
Pacheco criticou a PEC do Equilíbrio, mas cutucou o STF. “Não há que se admitir qualquer tipo de revisão pelo Legislativo de decisões judiciais, como não há a mínima possibilidade de se permitir ao Supremo Tribunal Federal ou qualquer instância do Judiciário que formate as regras e leis do país, porque isso cabe ao Legislativo brasileiro”, disse.
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