Ouça este conteúdo
A volta de Donald Trump à Presidência dos Estados Unidos, numa eleição que também deu aos republicanos maioria no Senado e provavelmente na Câmara, demonstrou, mais uma vez, a desconexão do Partido Democrata com a classe trabalhadora que afirma representar. Trump ainda conseguiu atrair parte de estratos que a candidata Kamala Harris e a ala mais à esquerda dos democratas tentaram seduzir: jovens, latinos, negros, imigrantes. A derrota serve de alerta ao Partido dos Trabalhadores, que tem tido dificuldades de emplacar suas pautas sindicalistas e progressistas.
Analistas consultados pela reportagem apontaram vários fatores para esse afastamento do Partido Democrata do americano médio comum. A maioria entende que a administração do presidente dos EUA, o democrata Joe Biden, deixou a desejar na economia, especialmente devido ao pico de inflação, alimentado pelo Plano de Resgate, lançado em 2021 pelo democrata. O cenário foi agravado por um evento não controlado por Biden, a invasão da Rússia à Ucrânia em 2022. Desde então, a alta de preços cedeu, o crescimento se manteve estável e o desemprego segue baixo.
Apesar de os Estados Unidos terem seguido criando empregos e registrado crescimento recorde, a inflação gerou perda do poder de compra e dificuldade de aumentar a renda, o que se refletiu na redução do consumo das famílias.
Além disso, o peso dado por Harris a pautas identitárias (agenda “woke”), sua dificuldade em se desvincular da administração Biden, com um discurso pouco convincente de mudança, e sua entrada tardia no posto de candidata no lugar de Biden foram fatores adicionais para sepultar suas chances reais de vitória sobre Trump.
Fica a lição de que, se não se reconectar com os anseios do cidadão comum, o Partido Democrata será arruinado. E o alerta para o PT e a esquerda brasileira de que, se seguir pelo mesmo caminho, também cairá em desgraça nas eleições gerais de 2026, após o tombo que levou nas urnas nas eleições municipais deste ano.
Antes da eleição, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) manifestou preferência pela eleição de Kamala Harris. Nesta quarta-feira (6), ele parabenizou Trump, mas vários petistas continuaram os ataques ao novo presidente eleito, alegando que ele representa uma ameaça à democracia.
“Ficou muito claro, na Vitória do Trump e dos Republicanos no Congresso, o descolamento da agenda progressista do Partido Democrata em relação aos eleitores e da realidade dos Estados Unidos. Está comprovado que a sociedade americana está mais conservadora”, avalia o professor de Relações Internacionais da faculdade ESPM Roberto Uebel.
“O que explica a vitória do Trump são erros estratégicos. Dos democratas, primeiro, de apostar na reeleição do Biden. E depois, tardiamente, retirar Biden e colocar Kamala Harris. Além disso, um discurso voltado muito para pautas sociais, sendo que o decisivo era a pauta econômica. O governo Biden entregou uma economia fragilizada, em ponto morto, que não foi suficiente para ganhar as eleições”, acrescenta o professor.
Professor e doutor em Ciência Política e coordenador do curso de Relações Internacionais do IBMEC, Adriano Gianturco aponta para pesquisa realizada há décadas pela Universidade de Michigan, em anos eleitorais, que mede o otimismo do consumidor. Em regra, quando está acima de 80 (num índice de 0 a 100), os presidentes tendem a se reeleger; quando está abaixo, perdem. Neste ano, o índice atingiu o pior patamar na série histórica iniciada em 1956: 70,5.
O aumento do custo de vida foi um problema para os democratas na eleição deste ano. Uma pesquisa de boca de urna da CNN americana mostrou que 2/3 dos eleitores consideram que a economia está ruim e quase metade deles diz que suas famílias estão numa situação pior que quatro anos atrás – em 2020, quando Trump era presidente, apenas um quinto falava isso em relação a 2016, antes de ele assumir a Casa Branca.
Discurso da luta de classes está enfraquecido
O ex-ministro de Relações Exteriores Ernesto Araújo acredita que “há uma tendência de esfacelamento da base democrata”.
“Realmente abandonaram a classe média trabalhadora. Era algo que já havia começado em 2016 e não conseguiram recuperar. Ao contrário, solidificaram esse pessoal no lado republicano. Não fizeram nada para reconquistá-lo. Só bateram no Trump, o que, por extensão, é bater nas pessoas que gostam do Trump. Não deram nenhum motivo para as pessoas gostarem deles”, diz o diplomata, que desde 2021 vive nos Estados Unidos – licenciado, ele hoje oferece cursos online no academiafolhapolitica.org.
Para Leandro Gabiati, doutor em ciência política da consultoria Dominium, a esquerda brasileira também precisa se atualizar, especialmente para superar a visão da luta de classes.
“É necessária uma nova interpretação da realidade, que não existe mais classe, o microempreendedor também é o trabalhador. Como a esquerda tem um DNA classista, tem dificuldades, enfrenta barreiras e entraves que a impedem de encarrar com facilidade essa mudança de visão de mundo, não é simples, precisa atualizar e mudar, a eleição de Trump traz essa análise”, diz.
O advogado e comentarista político Alexandre Pires, por sua vez, acrescenta que o discurso em torno da luta de classes vem perdendo força em vários lugares do mundo. Traços comuns desse fenômeno são, para ele, a recomposição dos padrões de consumo e o surgimento de redes sociais.
“No caso brasileiro há um crescimento econômico muito baixo. Temos quase uma década e meia perdida. Então existem frustrações em todas as classes, em todos os níveis de renda e em todos os níveis de patrimônio”, diz.
Para o especialista, isso pesa mesmo sobre aqueles que estão se aproveitando de ciclos de crescimento e de ascensão.
“O discurso de classe não consegue mais dividir o eleitorado e isso se provou verdade [no Brasil] pelas zonas eleitorais que tradicionalmente eram vencidas por partidos associados à esquerda e que foram derrotados por candidatos associados à direita.”
Agenda "woke" afastou esquerda do cidadão médio
Adriano Gianturco cita ainda que a desconexão da esquerda americana e em várias partes do mundo com os anseios reais das pessoas comuns começou há décadas. O fosso se aprofundou com a agenda “woke”, que privilegia temas como aborto, direitos LGBT, divisão racial e ambientalismo.
“Vejo o Partido Democrata já muito cansado disso. O número de empresas saindo do ESG [governança ambiental, social e corporativa] está aumentando", comentou o professor do IBMEC.
"No outro lado, os conservadores estão numa trajetória de ascendência. Entre jovens, ainda são pequenos, mas estão crescendo. Hoje, ser contracultura é ser direta nos Estados Unidos, porque, especialmente entre os jovens, a cultura dominante, a visão dominante, é de esquerda. Quem é de direita é transgressivo. E eles têm pautas novas, diferentes, como o desafio da ordem global, o antiglobalismo”, conclui.