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O relatório da Polícia Federal que indiciou o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) por adulteração do cartão de vacinação contra a Covid-19 aponta que ele pediu ao ex-ajudante de ordens, Mauro Cid, para inserir as informações falsas de imunização e que imprimiu os documentos no Palácio da Alvorada dias antes de viajar para os Estados Unidos, no final de 2022.
A conclusão está em um longo relatório de 231 páginas enviado pela Polícia Federal ao ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), e tornado público na manhã desta terça (19). A autoridade pede o indiciamento, também, de outras 16 pessoas por participação no esquema, entre elas ex-assessores de Bolsonaro, militares e a esposa de Cid, Gabriela Cid, por também ter se beneficiado do esquema.
Segundo a apuração a que a Gazeta do Povo teve acesso, as informações que levaram aos indiciamentos foram levantadas na delação premiada de Mauro Cid e cruzadas com registros de acesso aos computadores e impressoras dos palácios da Alvorada (residência oficial) e do Planalto (sede da Presidência da República), de acesso ao aplicativo ConecteSUS, às próprias dependências dos edifícios e dados de celulares apreendidos em operações.
“A investigação identificou diversas inserções falsas entre novembro de 2021 e dezembro de 2022, além de várias condutas de uso de documentos ideologicamente falsos”, escreve o delegado Fábio Alvarez Shor no relatório.
Além de Bolsonaro e da filha Laura, também teriam sido beneficiados pelo esquema o próprio Mauro Cid, a esposa Gabriela e as três filhas; os ex-assessores Max Guilherme Machado de Moura e Sergio Rocha Cordeiro; e o deputado Gutemberg Reis de Oliveira.
“Os elementos de prova coletados ao longo da presente investigação são convergentes em demonstrar que Jair Messias Bolsonaro agiu com consciência e vontade determinando que seu chefe da Ajudância de Ordens intermediasse a inserção dos dados falsos de vacinação contra a Covid-19 nos sistemas do Ministério da Saúde em seu benefício e de sua filha”, aponta o delegado.
A autoridade ressalta, ainda, que “conforme demonstrado, todas as pessoas beneficiárias das inserções falsas realizada pelo grupo criminoso tinham não apenas plena ciência, como solicitaram/determinaram as inserções falsas nos sistemas do Ministério da Saúde”.
Cid afirmou no depoimento que o objetivo da inserção dos dados era “ter o cartão falso para uma necessidade qualquer; que uma dessas necessidades seriam as viagens”, a que a PF afirma ter sido a que levou Bolsonaro e uma comitiva aos Estados Unidos no final do mandato, em 2022.
Como funcionou o esquema
De acordo com a apuração da Polícia Federal com base no depoimento de Mauro Cid, o esquema começou a ser estruturado ainda em 2021 nas dependências da Secretaria de Estado da Saúde de Goiás, no caso da esposa dele, e nas da Secretaria Municipal de Duque de Caxias (RJ) para os demais envolvidos.
“O então Presidente da República, ao tomar conhecimento de que Mauro Cesar Cid possuía cartões de vacinação contra a Covid-19 em seu nome e em nome de seus familiares, ordenou que o colaborador fizesse as inserções para obtenção dos cartões ideologicamente falsos para ele e sua filha Laura”, escreve a PF.
A autoridade afirma que havia um “modus operandi” (modo de operação) utilizado por Cid para executar o esquema: ele encaminhava os pedidos ao major Ailton Gonçalves Barros que, posteriormente, enviava para João Carlos de Sousa Brecha (secretário municipal de Duque de Caxias) que, mediante suas credenciais de acesso, executava as inserções no Sistema SI-PNI do Ministério da Saúde.
Os registros de duas doses de vacinas para Bolsonaro e outras duas para a filha Laura foram feitos no dia 21 de dezembro de 2022 por Brecha com alguns minutos de diferença entre as três primeiras e quase quatro horas depois para a quarta dose. Nos dias seguintes até 27 de dezembro, foram inseridos dados também dos ex-assessores e Max Guilherme e Sergio Rocha Cordeiro.
Um dia após a inserção dos dados do ex-presidente e da filha, a conta dele no ConecteSUS foi acessada de dentro do Palácio da Alvorada pela manhã a partir de um computador com o login de Mauro Cid.
“Conforme exposto, em seu termo de depoimento o colaborador Mauro Cesar Cid afirmou que após a inserção dos dados falsos de vacinação contra a Covid-19 em beneficio de Jair Bolsonaro e Laura Firmo Bolsonaro, o então Ajudante de Ordens imprimiu os certificados de vacinação ideologicamente falsos e entregou em mãos ao então Presidente da República”, escreve a PF no relatório.
As impressões foram confirmadas pela Diretoria de Tecnologia da Presidência da República com base nos registros de impressão e nos discos rígidos das impressoras instaladas no Palácio da Alvorada e no Palácio do Planalto utilizadas pela equipe de Ajudância de Ordens.
A autoridade afirma que outro acesso ao ConecteSUS foi realizado pelos usuários Jair Messias Bolsonaro e Laura Firmo Bolsonaro no dia 27 de dezembro de 2022 para a emissão dos certificados de vacinação contra a Covid-19 "ideologicamente falso".
Em um termo de declaração à Polícia Federal, diz o relatório, Bolsonaro foi indagado pelo acesso ao ConecteSUS no dia 27 de dezembro de 2022, em que alegou desconhecer a emissão do certificado e afirmou que “possivelmente, estava cumprindo expediente no Palácio da Alvorada, no horário em que foi gerado o certificado de vacinação”.
Ainda segundo Cid, a gerência da conta do ex-presidente no Gov.br era feita por ele até o final de 2022, quando passou para Costa Câmara, que iria assessorar o ex-presidente a partir de 1º de janeiro de 2023. A autoridade afirma que o ex-assessor inclusive viajou a Orlando (EUA) “em três oportunidades para acompanhar Jair Bolsonaro”.
Com base nisso, a PF pediu às autoridades dos Estados Unidos informações sobre o uso dos certificados de vacinação falsos “quando da entrada e estadia em território norte-americano, podendo configurar novas condutas ilícitas”.
A PF ainda relacionou os certificados falsos de vacinação com a viagem para os Estados Unidos a duas supostas tentativas de golpe de Estado, em dezembro de 2022 e em 8 de janeiro de 2023.
“Conforme exposto na representação policial relacionada aos fatos investigados na Pet. 12.100/DF, que apura condutas para uma tentativa de Golpe de Estado e Abolição Violenta do Estado Democrático de Direito, o presente eixo relacionado ao uso da estrutura do Estado para obtenção de vantagens ilícitas, no caso a ‘inserção de dados falsos de vacinação contra a Covid-19 nos sistemas do Ministério da Saúde para falsificação de cartões de vacina’, pode ter sido utilizado pelo grupo para permitir que seus integrantes, após a tentativa inicial de Golpe de Estado, pudessem ter à disposição os documentos necessários para cumprir eventuais requisitos legais para entrada e permanência no exterior (cartão de vacina), aguardando a conclusão dos atos relacionais a nova tentativa de Golpe de Estado que eclodiu no dia 8 de janeiro de 2023”, escreveu a PF.