Está na pauta do Supremo Tribunal Federal (STF) desta quarta-feira (16) em uma sessão que se inicia às 14h, o julgamento e homologação do chamado Plano Nacional para o Enfrentamento do Estado de Coisas Inconstitucional nas Prisões Brasileiras. Na prática, trata-se de uma ação voltada para tentar melhorar as condições de vida nas penitenciárias, mas também para evitar que criminosos cumpram pena presos, especialmente em casos de crimes patrimoniais sem violência. A medida faz parte da política de desencarceramento do governo, que pode gerar aumento na criminalidade, segundo analistas ouvidos pela reportagem.
O documento, que dá origem ao plano nacional denominado de Pena Justa, foi construído pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), pelo governo federal e por instituições e representantes da sociedade civil. Ele define objetivos genéricos para a política prisional, mas não explica quais medidas práticas serão tomadas nem quando elas entrarão em vigor.
O plano não deixa claro, por exemplo, como criminosos condenados por crimes de furto ou roubo deixariam de cumprir pena na prisão. O Código Penal prevê tanto prisão em regime fechado para esses tipos de crime quanto penas alternativas e multas.
Uma hipótese é que o relaxamento da prisão seja feito por determinações e entendimentos do próprio STF, que criaria diretrizes para que juízes prefiram aplicar penas alternativas à prisão ao julgar seus casos. Já o especialista em segurança pública, Alex Erno Breunig, avalia que a implementação de algumas das medidas previstas no plano exigiriam mudanças na legislação, no Código Penal e no Código de Processo Penal, que teriam que ser aprovadas necessariamente pelo Legislativo.
O plano aponta a necessidade de fazer melhorias nas condições e direitos humanos de presos e promover o desencarceramento. Ele surgiu de um processo judicial chamado Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 347, que tramita no Supremo desde maio de 2015, proposto pelo Partido Socialismo e Liberdade (Psol). Em outubro do ano passado, o STF determinou a elaboração da atual proposta.
Para especialistas em segurança pública, essa é mais uma medida de ingerência do STF em atribuições que deveriam ser do Legislativo. Além disso, eles alertam que essa política pode incentivar um desencarceramento em massa, riscos e caos à segurança pública. A medida está apoiada em um discurso que associa prisões a questões raciais. O documento elenca o racismo contra pessoas negras como um dos fatores de superlotação de cadeias no Brasil.
O relatório é fruto do primeiro caso de "litígio estrutural" do STF, um tipo de processo no qual o Judiciário influencia fortemente a execução de políticas públicas. Os integrantes do Supremo vêm cada vez mais tentando criar argumentos teóricos para justificar essa concentração de poder na Corte.
O relator do caso é o ministro Luís Roberto Barroso. O julgamento da ADPF 347 ocorreu há um ano, em 4 de outubro de 2023, e agora o plano determinado naquela ocasião segue para homologação. Para o ex-ministro da Justiça, o senador Sergio Moro (União-PR), o documento parte de algumas premissas erradas no sentido de que haveria encarceramento excessivo, quando o problema da criminalidade do país é baseado na impunidade. “Algumas políticas públicas ali propostas são positivas, mas outras conflitam com a posição do Congresso na segurança pública que é de endurecimento da legislação”, alerta o senador.
O documento menciona que a expansão do sistema prisional não foi acompanhada de melhorias e observa a abertura de novos estabelecimentos prisionais como consequência do “processo de hiperencarceramento, o que ampliou desafios existentes e demandou crescentes gastos públicos”, enquanto as condições de vida nas prisões permanecem, segundo o plano, desumanizadas.
“Para repensar o sistema prisional, superar seus desafios e desfazer os estigmas sociais em torno das pessoas privadas de liberdade e egressas, é necessário romper com o modelo da privação de liberdade como principal forma de responsabilização penal e implementar efetivas formas de responsabilização alternativas ao cárcere”, defende Barroso, o relator no documento.
Para o CNJ, a ADPF “indicou que há violações sistemáticas de direitos humanos nas prisões, que oferecem condições precárias de infraestrutura, higiene e alimentação, atendimento insuficiente em saúde, superlotação, insuficiência na gestão processual das pessoas apenadas e relatos de tortura e maus-tratos”.
Plano cita racismo institucional e diz que vai humanizar prisões
O plano nacional que deve ser homologado pelo STF elenca o racismo como um fator determinante para a existência do "estado de coisas inconstitucional" nas prisões brasileiras e para isso a proposta é ampliar as alternativas ao encarceramento, “humanizar os processos de privação de liberdade” e estimular uma mudança na forma como o Estado brasileiro aborda a resolução de conflitos sociais.
O documento destaca o “uso excessivo da privação de liberdade”, ou seja, de prisões, propõe medidas que vão além do encarceramento e requer alternativas como "Justiça Restaurativa", qualificação da Política de Alternativas Penais e racionalização do uso da monitoração eletrônica – as tornozeleiras eletrônicas, com “especial atenção às especificidades da população negra e de outros grupos vulneráveis”.
O termo "Justiça Restaurativa" citado no plano é uma alternativa à chamada Justiça punitiva com o objetivo de resolver conflitos por meio do diálogo e da negociação, com a participação dos envolvidos.
O especialista em segurança pública, Sérgio Leonardo Gomes, alerta para uma condição preocupante. “Logo teremos uma multidão de pessoas utilizando tornozeleiras eletrônicas, e se não houver uma política efetiva de controle e de avaliação de reincidência, isso pode resultar em um aumento da criminalidade. Quem comete um crime contra o patrimônio sem violência pode escalar em ações criminosas se não for punido por elas”.
O Plano enfatiza que o crescimento exponencial da população prisional desde os anos 1980 não resultou em melhores índices de segurança ou redução da violência, o que evidencia os limites do modelo punitivista.
Gomes, por sua vez, contesta a narrativa de que as prisões estão lotadas de pessoas por questões de raça ou por pequenos delitos. “Na segurança pública, não me parece que as prisões sejam predominantemente ocupadas por aqueles que cometeram crimes considerados mais leves ou que correspondem a uma determinada cor de pele, é preciso ter cuidado com a política e desencarceramento”, completa.
O documento a ser homologado no STF também reforça a necessidade de garantir acesso à Justiça e ampla defesa, além de redirecionar a política de drogas para ações de saúde e proteção social, “em detrimento de práticas criminalizantes, especialmente voltadas à população negra”.
Uma decisão do STF em junho descriminalizou o porte de até 40 gramas de maconha para usuários e aparece como um fator que já estimula essa mudança e política para o desencarceramento. O especialista alerta que mais uma vez se tratou do STF interferindo em atos que deveriam ser atribuições legislativas. “Não me parece que as prisões estejam superlotadas por conta do uso de pequenas porções de maconha, mas a descriminalização da droga já traz preocupações para a segurança pública em cidades por todo Brasil com um alerta extra às forças de segurança, sem contar que isso deveria ser um tema para quem legisla, quem criar leis”.
Plano quer flexibilização das medidas prisionais no Brasil
O plano que foca no desencarceramento prevê a flexibilização das medidas prisionais para crimes patrimoniais sem violência, como furtos. O advogado que também é coronel da reserva da Polícia Militar do Paraná, Alex Erno Breunig, observa que o Brasil tem seguido essa tendência de desencarceramento, o que pode, paradoxalmente, incentivar a prática criminosa.
“Aqueles que estiverem em liberdade sob penas alternativas, se tiverem inclinação ao delito, podem cometê-los. O Legislativo foi provocado e se manifestou, mas o STF parece avançar em assuntos que deveriam ser discutidos por quem tem voto [senadores, deputados e o executivo]”, adverte.
O plano que tramita no STF menciona, em diversos pontos, prisões massivas como uma consequência do racismo, mas Breunig enfatiza que esse fenômeno está mais relacionado à classe social do que à cor da pele e explica. “Crimes cometidos por pessoas de alta renda geralmente não envolvem violência, como crimes financeiros, resultando em menos prisões. Entre os de baixa renda, há uma predominância em crimes contra a vida, com uso de violência, evidenciando que o encarceramento está mais relacionado ao poder aquisitivo e não à cor da pele”.
Em sua obra sobre Sociologia do Crime e da Violência, Breunig destaca que o custo de manter uma população carcerária de 850 mil pessoas é elevado, o que leva a questionar a lógica de investimentos em presídios em detrimento de outras áreas, como a educação. “Investir massivamente em educação pode ajudar a reduzir a criminalidade, mas a ideia de não construir mais presídios para destinar recursos a escolas não é plausível, assim como o desencarceramento em massa não é a solução”, reforça.
O plano a ser homologado pelo STF ainda aborda a inadequação da arquitetura prisional, propondo melhorias nos espaços físicos dos estabelecimentos e serviços oferecidos. Isso inclui garantir acesso a água potável, condições de higiene, segurança e salubridade. “E quem vai pagar toda essa conta?”, indaga o especialista.
Além disso, o plano a ser homologado pelo STF aborda a baixa oferta e qualidade dos serviços nas prisões, propondo ações para garantir segurança alimentar e nutricional, atenção à saúde, acesso ao trabalho e educação, com foco na população negra através de ações afirmativas.
O documento também prevê acesso a práticas esportivas e culturais, integrando os detentos ao Sistema Único de Assistência Social (SUAS), e estabelece diretrizes para a assistência religiosa, abrangendo diversas matrizes. Ele propõe ainda aprimorar a gestão prisional, garantindo direitos e segurança às pessoas privadas de liberdade e enfatiza a necessidade de garantir acesso à Justiça, considerando desigualdades étnico-raciais e socioeconômicas.
Além disso, o plano trata da prevenção da tortura e dos tratamentos avaliados pelo ministro do STF como “desumanos nas prisões”, propondo medidas de combate a essas práticas e promovendo uma abordagem que “desnaturalize a morte nos espaços prisionais”. O documento também sugere a qualificação das inspeções judiciais e a criação de canais para denúncias de problemas prisionais, com participação de órgãos de controle social e organizações de direitos humanos.
Forma de aplicação do plano em tramitação no STF não está clara
O STF não informou como será a implantação do plano que almeja menos prisões, mas destaca no documento que entes relacionados à segurança são corresponsáveis por sua aplicação e controle. Outros detalhes só devem ser divulgados após a sessão de julgamentos em que os ministros discutirão a homologação do documento, informa o STF.
Para o procurador-jurídico da Associação Nacional da Advocacia Criminal (Anacrim), Marcio Berti, o Plano Nacional representa uma efetividade do Estado no campo penal, propondo um sistema prisional que contribua para a segurança pública e respeite os direitos humanos. “No Brasil, se prende muito e mal, e isso precisa de respostas. Não podemos ter no mesmo ambiente um membro de facção e alguém que cometeu um furto simples. Essa pessoa será cooptada pelo sistema”, avalia.
Ao tomar posse como ministro da Justiça e Segurança Pública no início do ano, Ricardo Lewandowski avaliou que a violência e a criminalidade no país têm raízes coloniais e sociais, e que o combate à criminalidade deve ir além da repressão policial, exigindo "políticas públicas que superem o apartheid social que afeta parte da população brasileira".
O ministro defende uma política de desencarceramento que “respeite direitos e garantias fundamentais, especialmente no que diz respeito ao devido processo legal”.
“Mas o desencarceramento não pode ser feito a qualquer custo; isso impactará a sociedade e poderá resultar em um aumento da criminalidade, danos preocupantes à segurança pública”, avalia o advogado Alex Erno Breunig.
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