Ouça este conteúdo
Em meio a trocas de acusações entre ministros, o Supremo Tribunal Federal (STF) tende a ratificar o entendimento do presidente da Corte Luiz Fux e derrubar a decisão do ministro Marco Aurélio Mello que libertou André de Oliveira Macedo, o André do Rap, um dos líderes do PCC (Primeiro Comando da Capital).
Nesta quarta-feira (14), o plenário do STF deve analisar a liminar de Fux, que sustou o habeas corpus concedido por Marco Aurélio. Foi graças a esse recurso que o traficante do PCC voltou para as ruas. Após obter o habeas corpus, André do Rap foi liberado da penitenciária de Presidente Venceslau, no interior de São Paulo, no último sábado (10). Agora, o criminoso do PCC está foragido. Autoridades suspeitam que ele deixou o país. A Interpol incluiu o nome do traficante na lista de procurados internacionalmente.
Marco Aurélio Mello soltou André do Rap com base em uma interpretação do parágrafo único do artigo 316 do Código de Processo Penal (CPP) incluído no pacote anticrime, aprovado no ano passado pelo Congresso. Segundo este item, “decretada a prisão preventiva, deverá o órgão emissor da decisão revisar a necessidade de sua manutenção a cada 90 (noventa) dias, mediante decisão fundamentada, de ofício, sob pena de tornar a prisão ilegal”.
O problema, porém, é que integrantes do STF classificaram nos bastidores como “heterodoxa” esta interpretação dada pelo ministro ao artigo 316 do CPP. Internamente, eles ressaltaram que Marco Aurélio não levou em consideração outros aspectos ligados à interpretação da lei, como a falta de uma jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ) sobre a aplicação do artigo 316 ou o fato de que a liberdade, nestes casos, somente pode ser concedida a presos que não ofereçam risco à ordem pública.
“A criminalidade organizada que comanda o tráfico de drogas é um câncer que precisa ser extirpado. É responsável pela maioria dos homicídios no país. Jamais permitiremos que continuem a escravizar as comunidades e os brasileiros de bem. A Justiça tem o dever de combater esse mal”, disse o ministro Alexandre de Moraes, via rede social, na noite de segunda-feira (12) sobre a libertação de André do Rap. A mensagem não cita o ministro Marco Aurélio Mello, mas foi interpretada como uma provocação pelo magistrado.
O caso concreto, a liberdade de André do Rap, tende a ser revertida pelo colegiado. A dúvida agora entre os ministros é qual será a trava estabelecida pelo STF para a interpretação do artigo 316: se os casos serão remetidos diretamente para o magistrado responsável pela determinação originária da prisão preventiva ou se uma repercussão geral vai continuar dependendo de manifestação do STJ. O traficante estava preso desde o fim de 2019 sem sentença condenatória definitiva do juizado de primeira instância.
Demais ministros não acompanham entendimento de Marco Aurélio
Após as alterações implementadas pelo pacote anticrime, entre as quais a mudança no artigo 316, os ministros se debruçaram em pelo menos 480 decisões que discutiam diretamente ou indiretamente o tema. Os ministros não têm entendimento uniforme sobre a interpretação desse item. Porém, apenas Marco Aurélio concedeu habeas corpus favorecendo detentos com base nesse item. Os demais ou negaram os recursos impetrados no STF; ou remeteram os casos para que os juízes de primeira instância deliberassem sobre a temática.
Um exemplo é o ministro Gilmar Mendes, um dos principais representantes da chamada “ala garantista” do Supremo Tribunal Federal. Ele se debruçou sobre esse tema em aproximadamente 70 oportunidades. Em todas, Gilmar adotou como prática remeter o caso para o juiz de primeira instância. “O preso tem direito à revisão da necessidade da prisão preventiva a cada noventa dias e, na sua ausência, cabe ao Poder Judiciário determinar sua pronta satisfação. A mim me parece que a melhor solução para a falta de revisão da necessidade da prisão preventiva (ex officio) seja mesmo a determinação para a sua realização pelo Tribunal (de origem)”, disse o ministro, em decisão do último dia 21 de setembro, em um embargo de declaração impetrado por um cidadão de São Paulo que tentou reverter uma prisão temporária por tráfico de drogas após ele ter sido pego em flagrante com um quilo de crack. A ministra Cármen Lúcia também adotou entendimento semelhante sobre o assunto.
Já ministros como Dias Toffoli e Ricardo Lewandowski têm ressaltado em decisões conexas que o STF não pode deliberar sobre casos semelhantes sob pena de infringir competência do STJ. Eles entendem que essa é uma matéria infraconstitucional. Por isso, caberia ao STJ definir pela aplicação correta do artigo 316 do Código Penal.
“No tocante ao alegado excesso de prazo da prisão do paciente [o acusado], verifico que o tema não foi analisado pelo Superior Tribunal de Justiça. Portanto, sua apreciação, de forma originária, neste ensejo, configuraria inadmissível supressão de instância, na linha de precedentes”, disse Toffoli em decisão proferida em 24 de setembro deste ano ao negar habeas corpus impetrado pela defesa de um homem preso em flagrante no interior de Minas Gerais, acusado de assalto à mão armada a uma loja de material de construção.
Ministro se irrita com críticas à decisão que soltou André do Rap
Após a repercussão do caso, o ministro Marco Aurélio ficou visivelmente incomodado com as críticas relacionadas à sua decisão que beneficiou o traficante do PCC. “Decidi sem olhar capa [do processo]. Acionei o Código de Processo Penal, parágrafo único do 316. Foi incluído no pacote anticrime pelo Congresso Nacional. É categórico", disse em entrevista à Rádio Gaúcha nesta terça-feira (13).
O ministro também se irritou, nesta terça, com um questionamento feito pela CNN sobre as ligações da advogada e André do Rap com um ex-assessor de Marco Aurélio Mello. O habeas corpus foi impetrado pela advogada Ana Luísa Gonçalves Rocha, sócia de Eduardo Ubaldo Barbosa no Ubaldo Barbosa Advogados. Ubaldo era assessor de Marco Aurélio até 17 de fevereiro deste ano. O caso foi revelado pela revista Crusoé. O ministro afirma que isso não o torna impedido de analisar esse processo. “Isso é uma injúria. Acabou a entrevista, obrigado”, disse Mello antes de encerrar de forma abrupta a entrevista com a CNN.
Durante o final de semana, Marco Aurélio classificou como “autofagia” o fato de que sua decisão foi derrubada por um colega de Supremo, no caso o ministro Luiz Fux. “Sob minha ótica ele adentrou o campo da hipocrisia, jogando para turma, dando circo ao público, que quer vísceras. Pelo público, nós nem julgaríamos, condenaríamos e estabeleceríamos pena de morte”, disse o magistrado no final de semana. Marco Aurélio, porém, sustou em setembro decisão do colega Celso de Mello relacionada ao inquérito que apura a suposta interferência do presidente da República, Jair Bolsonaro, na PF.
Questionado sobre as críticas pela Gazeta do Povo, o ministro evitou tecer novos comentários sobre o episódio e disse apenas: “Ouça pessoas da academia [das universidades]. Eu não me pronuncio mais sobre isso”, declarou.