O presidente Jair Bolsonaro (PSL) é um grande opositor da ditadura de Nicolás Maduro na Venezuela, tem se manifestado abertamente contra uma possível volta do kirchnerismo ao poder na Argentina e ataca o Foro de São Paulo com frequência. Se costuma ser tão implacável com lideranças esquerdistas na América Latina, por que dá um tratamento tão diferente ao presidente da Bolívia Evo Morales?
Nas poucas oportunidades em que falou sobre o boliviano, Bolsonaro lhe dirigiu, basicamente, elogios e brincadeiras. "Morales, já estava com saudades depois que o vi na minha posse no Brasil", disse em julho, na 54ª Cúpula do Mercosul (à qual Morales compareceu), em referência à presença do presidente da Bolívia em sua cerimônia de posse em janeiro.
Também no mês passado, disse que o boliviano deu sinais de afastamento do Foro de São Paulo e de Maduro, e elogiou a atitude. Além disso, classificou a decisão do governo da Bolívia de autorizar a deportação do militante de esquerda italiano Cesare Battisti, em janeiro, como um ato "de muita firmeza" e disse que o presidente boliviano "está evoluindo".
Relação cordial
Morales, por sua vez, não costuma fazer críticas públicas às declarações do brasileiro, ao contrário de outros líderes de partidos de esquerda da América Latina. Chamou Bolsonaro de "irmão" no dia da posse do presidente e deu um forte sinal da sua disposição a manter boas relações com o novo governo brasileiro quando autorizou a deportação de Battisti.
Durante a Cúpula do Mercosul, em Santa Fé, no Chile, os dois presidentes se sentaram lado a lado no almoço e conversaram, segundo uma fonte do governo que falou sob condição de anonimato. Do conteúdo da conversa, só se sabe aquilo que o próprio Bolsonaro contou à imprensa. Os governos dos dois países tentaram marcar um encontro de chanceleres, que esbarrou em uma incompatibilidade de agendas.
De acordo com a mesma fonte, há um entendimento do governo brasileiro e até dos Estados Unidos de que a situação da Bolívia é muito diferente da venezuelana. "O Evo Morales, apesar do que possamos pensar dele, logrou uma estabilidade política importante. A economia da Bolívia vem crescendo há mais de dez anos, com inflação baixa e maior inclusão social. É um país que está mais ou menos dando certo", diz.
Essa fonte ainda argumenta que a situação é distinta da vidada pela Venezuela, em que há inflação galopante e repressão aberta a opositores do governo. "São situações muito diferentes, embora a Bolívia apoie incondicionalmente o Maduro. A própria embaixada dos Estados Unidos em La Paz avalia a situação e fala: 'A Bolívia não é a Venezuela. É preciso certo pragmatismo ao lidar com eles'", diz.
Pragmatismo comercial
O fator mais determinante para a boa relação entre Morales e Bolsonaro é, certamente, o pragmatismo comercial. Por um lado, o Brasil tem grande interesse em manter a Bolívia como parceira no comércio de gás natural, já que 27% de todo o gás consumido aqui vem do país vizinho. Além disso, depois da quebra do monopólio da Petrobras na produção e distribuição de gás no Brasil, vários estados brasileiros – muitos deles comandados por governadores aliados ao presidente – demonstraram interesse em importar gás da Bolívia para suas usinas termoelétricas.
Para a economia da Bolívia, a manutenção da parceria comercial com o Brasil é crucial. O Brasil é o país que mais importa produtos da Bolívia (19% do valor total de importações), e o gás natural representa 94% desse mercado. "Se tivermos más relações e perdermos o mercado brasileiro, nossa economia será afetada diretamente", afirma Nicolas Rodriguez, professor de relações internacionais da Universidad Nuestra Señora de La Paz, em La Paz.
Segundo Rodríguez, o presidente boliviano sabe separar bem suas crenças políticas dos interesses comerciais de seu país. "Ideologicamente, é óbvio que [Brasil e Bolívia] não são aliados. Mas, ao fazer negócios, é preciso se esquecer de posturas ideológicas. Morales manteve-se bem firme em suas posições ideológicas, mas não deixou isso interferir nos negócios. Foi muito hábil", afirma.
Rodríguez lembra que a falta de saída para o mar da Bolívia também exige um comportamento diplomático mais conciliador. "A questão não é só de mercado para o gás, mas também de manter o chamado 'corredor bioceânico'. Claramente nos interessa fazer parte dessa via de integração que une o Pacífico ao Atlântico. Nesse sentido, também, Morales precisa manter boas relações com os vizinhos."
Aproximação com Mercosul
De acordo com o professor Nicolas Rodríguez, a falta de diversificação da economia boliviana criou uma dependência comercial de Brasil e Argentina. "Por isso mesmo estamos nos aproximando mais do Mercosul", diz.
O desejo de adesão da Bolívia ao Mercosul, aliás, ajuda a explicar a cordialidade com que Evo Morales tem tratado Jair Bolsonaro. Até agora, Uruguai, Paraguai e Argentina ratificaram o ingresso da Bolívia, mas o país ainda depende da aprovação do Brasil para iniciar sua entrada no bloco. Bolsonaro e a cúpula do Executivo brasileiro não se mostram avessos à ideia, mas a proposta de adesão da Bolívia precisa passar pelo Congresso brasileiro, que ainda não colocou a votação em pauta.
Pedro Feliú Ribeiro, professor de relações internacionais da Universidade de São Paulo (USP), considera a relação entre Brasil e Bolívia um exemplo claro de como a interdependência econômica pode gerar cooperação, como afirma a teoria liberal das relações internacionais. "Talvez isso explique por que o forte viés ideológico do Bolsonaro não atinge as relações com a Bolívia", diz.
Segundo Ribeiro, uma eventual ruptura entre o Brasil e a Bolívia seria "muito mais brutal" para a economia boliviana. "É um país que depende do mercado brasileiro. Para a Bolívia, mesmo com um governo muito mais à direita, o razoável do ponto de vista do interesse nacional é não misturar ideologia. E isso é o que tanto o Bolsonaro como o Evo Morales têm feito."
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