Se o Brasil quer voltar a registrar crescimento econômico, precisa se preocupar com as fontes de geração de energia elétrica. Um dos efeitos mais imediatos da retomada da economia é o aumento da produção, que justifica a maior demanda por energia. Para dar conta disso, só com planejamento, já que nenhum tipo de usina se constrói da noite para o dia. Trabalhando para diversificar a matriz energética, não deixa de ser curioso que o governo de Jair Bolsonaro (PSL) tenha “desengavetado” alguns projetos de usinas hidrelétricas que estão no papel desde os tempos do governo PT. Essas propostas empacaram justamente por entraves ambientais e também pela proximidade com terras indígenas, dois temas sensíveis para a atual gestão.
Ainda em setembro, quatro projetos de usinas hidrelétricas foram recomendados para qualificação no Programa de Parcerias de Investimentos (PPI): UHE Castanheira, UHE Bem Querer, UHE Telêmaco Borba e UHE Tabajara. Para o governo, além da expansão da infraestrutura pública, a possibilidade de execução de obras desse porte significa oportunidade de investimento e geração de emprego no país. Com exceção da unidade de Telêmaco Borba, que fica no Paraná, todas as outras estão localizadas na região da Amazônia Legal – Roraima, Rondônia e Mato Grosso.
Ao longo do governo PT, entre 2003 e 2013, sobretudo, o governo federal leiloou grandes obras na região, como as usinas de Belo Monte, Jirau e Colíder. Mas algumas propostas foram abandonadas, como as usinas no rio Tapajós, por causa dos impactos ambientais. E, de fato, o processo de licenciamento ambiental de hidrelétricas, independentemente do porte, costumam ser bem demorados.
Thiago Barral, presidente da Empresa de Pesquisa Energética (EPE), pondera que o processo de maturação de um projeto hidrelétrico, do mapeamento do potencial até a entrada em operação, é longo e complexo, e que leva tempo. Num horizonte mais amplo, ele destaca duas tendências importantes. "Primeiro, a necessidade de modernização do atual parque hidrelétrico brasileiro, que é gigantesco. Segundo, caso o país busque explorar o potencial remanescente, majoritariamente concentrado na região norte do país será necessário discutir questões relacionadas à sensibilidade sócio-ambiental dessa região", aponta.
O peso das hidrelétricas
Cerca de 80% da energia elétrica gerada no Brasil é proveniente de fontes renováveis, e as hidrelétricas são a maior porção. Dados da EPE mostram que as hidrelétricas são responsáveis por 65,2% dessa geração. Mas, a tendência de longo prazo é de uma maior diversificação da matriz energética. Embora contemple também a expansão dessas usinas, outras fontes renováveis, como a eólica e fotovoltaica, tendem a crescer mais. No plano decenal 2027, a projeção é de que até lá, as hidrelétricas vão corresponder a 49,5% da geração de eletricidade no país. O maior avanço é justamente das eólicas.
Essa mudança de perfil ocorre por uma combinação de fatores, como aponta Barral. "A impressionante redução de custos das fontes eólica e solar, somada às excelente qualidade desses recursos no país, a modularidade dos projetos e os menores riscos de licenciamento têm impulsionando a competitividade dessas fontes nos leilões de energia e no mercado livre", explica.
Mas, sobretudo, há a questão de viabilização dos projetos. Barral observa que os grandes projetos de hidrelétricas, que foram a base da expansão da oferta de energia elétrica no passado, não conseguem mais sair do papel.
"Atualmente, dos 52 GW de potencial mapeado e ainda não explorado no país, 3/4 estão localizados em áreas legalmente protegidas, grande parte na região Norte do país e os maiores potenciais estão localizados na região amazônica, uma região com sensibilidades socioambientais que devem ser observadas e levadas em consideração na tomada de decisão para sua exploração", analisa. Isso não diminui a importância do papel das hidrelétricas, mas força a discussão para integração com as demais fontes renováveis.
Matriz diversificada
O professor Adilson de Oliveira, que deu aulas no Instituto de Economia da UFRJ, explica que as usinas que estão na mira do governo Bolsonaro não são tão grandes como as que já foram leiloadas num passado recente, mas que terão seus impactos ambientais e isso precisa ser avaliado.
Para ele, é fundamental que seja feita essa análise antes de se começar qualquer projeto na região. “A economia brasileira está estagnada. Se a economia não cresce, não há demanda crescente por energia. Precisamos desses projetos, se temos outras opções, como os parques eólicos?”, avalia. Ele pondera que, no Nordeste, as eólicas são mais eficientes do ponto de vista ambiental e possuem resultados econômicos aceitáveis.
Outro fator que pode mudar a divisão da matriz é a oferta de gás natural, que deve aumentar com a extração ode petróleo do pré-sal. Hoje, a oferta é muito grande e não há tanto mercado. “Se não tiver expansão de termelétrica a gás, esse gás será desperdiçado. Se não queimar para gerar eletricidade, só vai gerar CO²”, pondera.
Como os projetos das usinas são antigos, Oliveira defende que é preciso rever os estudos para avaliar quão necessárias essas obras são. “Hoje, as centrais eólicas estão entrando no mercado brasileiro com relativa facilidade, vantagens econômicas e competitivas pelo fato de termos grandes reservatórios feitos no passado que garantem a energia no período em que essas eólicas flutuam muito a produção. As hidrelétricas são importantes para dar estabilidade para o consumo de energia elétrica. Se continuarmos a expandir a energia eólica, a solar descentralizada, vamos precisar de outro tipo de reservatório para segurança do suprimento elétrico”, analisa.
O diretor do instituto Ilumina, Roberto Pereira D’Araújo, lembra que no início do governo Lula foi tentado fazer da Eletrobras uma revisão dos inventários hidrelétricos, para dimensionar todos os aspectos que envolveriam as propostas, além da geração de energia. Ele defende que as hidrelétricas não são apenas um fábrica de quilowatts/hora, mas também um projeto multidisciplinar, de turismo a transporte, e que isso pode ajudar a desmontar um pouco da resistência ambiental aos projetos.
Ele ainda lembra que, nos últimos anos, a grande expansão de matriz energética foi com as usinas térmicas, mas as hidrelétricas têm vantagens extras que não só o preço da energia. Araújo acredita que até na situação de incêndios florestais poderia haver alguma vantagem. “Um serviço que as hidrelétricas podem prestar é a vigilância sobre o parque florestal que está na cabeceira do reservatório”, sugere.
As PCHs
Bolsonaro já declarou em suas tradicionais lives pelas redes sociais que gostaria de diminuir o tempo de espera por uma licença para as pequenas centrais hidrelétricas (PCHs). De acordo com o presidente, hoje, esse prazo gira em torno de dez anos. Ele mencionou que gostaria de reduzir essa espera para até três meses. Vale ressaltar que a Câmara está analisando uma proposta para a nova lei geral de licenciamento ambiental, que foi desengavetada este ano. A tramitação freou, no entanto, por causa da repercussão das queimadas na Amazônia.
Thiago Barral, da EPE, destaca que essas unidades são importantes para o atendimento energético do país. "Esses projetos estão distribuídos pelo território nacional e, diferentemente dos grandes empreendimentos hidrelétricos, que são licitados no regime de concessão, as PCH se viabilizam sob regime de autorização, que é mais simples", aponta.
Licenciamento ambiental
A questão do licenciamento ambiental para hidrelétricas é bastante complexa. No caso de usinas de maior porte, quando mais cuidadoso e bem preparado o estudo de impacto, mais custoso será. A discussão aqui é quem deve pagar: o empreendedor ou o governo, que prepararia um estudo completo previamente e seria ressarcido após o leilão.
Para o professor Adilson de Oliveira, é natural que o potencial empresário tente minimizar os custos, por isso, no passado, os relatórios de impacto ambiental eram muito ruins. Só em fases posteriores é que se descobriam impactos que não eram avaliados anteriormente, como áreas indígenas, unidades de conservação, população ribeirinha e fluxo de peixes, por exemplo.
“O ideal, se o governo quer efetivamente licitar essas centrais, é que pegue uma estrutura governamental, faça um estudo ambiental com todo cuidado e cobre do eventual construtor. O risco é que o custo seja tão grande que o eventual empreendedor desista de fazer o projeto”, pondera o professor, especialmente em regiões vinculados a áreas indígenas e de proteção ambiental.
As propostas
Para Thiago Barral, os projetos incluídos no PPI vão ampliar oportunidades de investimento no país e aumentar a oferta de emprego e renda. Alguns desses projetos são desenvolvidos por agentes de mercado e outros pela EPE. É o caso das usinas Bem Querer e Castanheiras. Ele frisa que nenhuma proposta alagaria as áreas de proteção ou terras indígenas, mas reconhece que cada projeto tem seus desafios para desenvolvedores e órgãos de licenciamento. "No caso de Castanheira e Bem Querer, por exemplo, mesmo não alagando terras indígenas, são realizados estudos do componente indígena para que o projeto dialogue com as comunidades indígenas do entorno da área do projeto e contemple programas e ações destinadas a prevenir, mitigar ou compensar quaisquer impactos que sejam identificados", explica.
A usina Bem Querer está prevista para ser implantada no rio Branco, em Caracaraí, em Roraima. O projeto teria potência instalada de 650 MW, mas seu lago inundaria uma área de 519 km². Ela é importante porque serviria para abastecer o estado de Roraima, que hoje depende da energia vinda da Venezuela. Porém, desde 2011 há dificuldade de avançar com o projeto por causa do licenciamento ambiental. Além disso, a unidade mexe diretamente com terra indígena.
Já o menor projeto é a usina de Castanheira, de potência estimada em 140 MW, e seria construída na bacia do rio Arinos, em Juara, no Mato Grosso. O reservatório, de quase 95 km² não alagaria terras indígenas nem unidades de conservação, de acordo com a Empresa de Pesquisa Energética (EPE).
Também na região Norte, a usina de Tabajara teria potência de 400 MW e seu reservatório cobriria 96 km² na região de Machadinho D’Oeste, em Rondônia. O projeto esteve no PAC, mas a parte ambiental também é problemática, já que existem ao menos 13 unidades de conservação na região. Em abril deste ano, o Ministério Público de Rondônia e o Ministério Público Federal recomendaram que o Ibama acrescentasse mais um capítulo sobre componentes extrativistas e ribeirinhos que não estavam incluídos no estudo de impacto ambiental do empreendimento.
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