Foram 8 anos e 10 meses desde o incêndio na boate Kiss até que as quatro pessoas acusadas pela tragédia em Santa Maria (RS), que matou 242 pessoas e feriu 636, fossem julgadas pela Justiça. De lá para cá, foram inúmeros recursos e reviravoltas no processo, de 19 mil páginas, que resultaram em demora na resolução do caso.
A maior parte desse tempo foi consumida na discussão sobre se os réus iriam responder perante um júri popular (pela acusação de homicídio por dolo eventual, isto é, por terem assumido o risco de causar as mortes) ou se seriam julgados por um juiz de primeira instância (por homicídio culposo, sem intenção de matar).
A decisão sobre a controvérsia ocorreu apenas em junho de 2019, quando o Superior Tribunal de Justiça (STJ), em Brasília, reverteu uma decisão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJ-RS), que, em dezembro de 2017, havia decidido que haveria um julgamento comum, não pelo júri. A pandemia acabou arrastando os preparativos para o início das sessões presenciais.
Até que finalmente, no primeiro dia de dezembro, em Porto Alegre, o julgamento começou. Os sete jurados, sorteados, puderam ouvir 32 depoimentos (10 testemunhas, 14 sobreviventes, quatro informantes e quatro réus), além dos debates, nos quais Ministério Público, assistentes de acusação (basicamente, as famílias) e advogados da defesa apresentaram seus argumentos pró e contra os réus.
Nesta sexta-feira (10), depois de dez dias de julgamento, o jurados, então, puderam votar de forma secreta pela culpa ou inocência dos acusados. Numa sala privada, responderam a um questionário e o depositaram em uma urna. Coube ao juiz Orlando Faccini Neto proferir a sentença com base na maioria dos votos. Os quatro acusados foram considerados culpados pelo crime de homicídio e condenados a penas de prisão que variam de 18 a 22 anos.
"A culpabilidade dos réus é elevada, mesmo em se tratando de dolo eventual", afirmou o magistrado. "É preciso referir que se está diante da morte de 242 pessoas, circunstância que, na órbita do dolo eventual, já encerra imensa gravidade", disse.
Manobras das defesas protelaram julgamento da tragédia na boate Kiss
Outro fator sempre citado por familiares das vítimas para justificar o atraso no julgamento foram “manobras” que as defesas tentaram para, segundo eles, provocar nulidades ou a prescrição do caso. Uma delas foi a tentativa de dividir o julgamento dos réus. Três deles pediram para serem julgados em outra comarca, uma vez que a comoção popular em Santa Maria poderia influenciar os jurados.
Mas um insistia em ser julgado na própria cidade. Para advogados das famílias, um resultado diferente poderia levar as defesas, posteriormente, a questionar as sentenças – se um ou mais fossem considerados inocentes, os outros também poderiam ser. O TJ-RS acabou decidindo que todos seriam julgados juntos, em Porto Alegre.
“Falavam que respeitavam os pais, mas por trás tentavam a prescrição”, disse à Gazeta do Povo Paulo Carvalho, que perdeu o filho Rafael no incêndio e hoje é diretor-jurídico da Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AVTSM). Para ele, se os réus estivessem presos, o processo correria mais rápido.
Também colaborou para a demora a complexidade do caso, tanto do ponto de vista jurídico quanto pelas próprias circunstâncias fáticas que resultaram na tragédia. A acusação de homicídio por dolo eventual (quando os responsáveis assumem o risco de causar dano) é considerada de difícil caracterização no direito penal.
Ela implica comprovar que os donos da boate e os músicos da banda que provocaram o fogo sabiam de todos os problemas do local e mesmo assim se omitiram.
Por outro lado, a grande repercussão do caso alargou a investigação no início, para incluir várias pessoas que teriam concorrido indiretamente para o incêndio, incluindo bombeiros que atestaram irregularmente a segurança da boate e servidores da prefeitura que liberaram o funcionamento sem todos os requisitos. Havia pressão para acusar o então prefeito da cidade, Cezar Schirmer, o que levaria o processo direto para o TJ-RS, devido ao foro privilegiado.
Até promotores foram acusados pelos familiares de não processar devidamente todos os possíveis envolvidos, inclusive um membro do próprio Ministério Público de Santa Maria, que teria exigido adequações no local para o isolamento acústico – a morte da maioria das vítimas foi causada pela fumaça gerada pela queima da espuma, colocada para abafar o barulho.
Essa suposta falta de efetividade da Justiça para processar todos os que podem ter colaborado para o incêndio levou a advogada Tâmara Biolo Soares a pedir à Corte Interamericana de Direitos Humanos a responsabilização do Estado brasileiro. A petição foi apresentada em 2017 e ainda está em fase de análise – o Brasil já foi notificado a apresentar justificativas.
As acusações voltam-se sobretudo para a prefeitura e para o MP, que não apenas teriam se omitido na fiscalização da boate, como também não teriam, posteriormente, responsabilizado servidores e promotores que teriam permitido o funcionamento irregular.
O que ocorre daqui para a frente
Os quatro réus condenados ainda podem recorrer a instâncias superiores contra a decisão do júri. Mas farão isso em liberdade, pelo menos por enquanto.
Ao anunciar a condenação em regime fechado, o juiz Faccini Neto chegou a decretar a prisão dos réus. Mas um habeas corpus preventivo concedido pelo TJ-RS a um dos acusados impediu a execução imediata da pena, sendo estendido aos outros três réus. A decisão é liminar e ainda pode ser revista quando o mérito do HC for julgado pelo corpo de desembargadores da Câmara Criminal.
Mas, mesmo sem o HC, a condenação anunciada nesta sexta não levaria à punição imediata dos réus. Em 2019, o chamado pacote anticrime estabeleceu a execução da pena após a condenação pelo júri, mas desde então o Superior Tribunal de Justiça (STJ) tem possibilitado que os culpados permaneçam em liberdade até o trânsito em julgado (esgotamento de todos os recursos). Isso ocorre especialmente se eles já estavam soltos antes e não oferecem risco de cometer novos crimes, fugir ou atrapalhar o andamento do processo.
Em maio do ano passado, o Supremo Tribunal Federal (STF) começou a julgar a regra da execução imediata – há dois votos a favor, de Luís Roberto Barroso e Dias Toffoli, e um contra, de Gilmar Mendes. Ricardo Lewandowski pediu vista e ainda não liberou a retomada do julgamento, sem data prevista para continuar.
Na prática, mesmo condenados pelo incêndio na boate Kiss, eles podem continuar soltos. Os quatro réus sentenciados são:
- Luciano Bonilha Leão, auxiliar de palco que comprou o fogo de artifício usado e o acendeu, foi condenado a 18 anos de reclusão.
- Marcelo de Jesus dos Santos, vocalista da banda, que pegou o artefato e o apontou para cima, foi condenado a 18 anos de reclusão.
- Mauro Londero Hoffmann, sócio da boate Kiss, foi condenado a 19 anos e 6 meses de reclusão.
- Elissandro Callegaro Spohr, sócio da boate Kiss, foi condenado a 22 anos e 6 meses de reclusão.
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