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Nicarágua: Como ditadura apoiada pelo PT tem lucrado com a crise migratória dos EUA
O ditador da Nicarágua, Daniel Ortega, e o presidente Lula durante encontro em Brasília em 2010| Foto: EFE/FERNANDO BIZERRA JR

Apesar da aproximação ideológica de esquerda entre o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e o ditador Daniel Ortega, a pouca relevância político-econômica da Nicarágua e a perseguição de Ortega contra a Igreja Católica, podem ser as causas do afastamento de Lula do ditador nicaraguense. As recentes expulsões de embaixadores do Brasil e Nicarágua expuseram um declínio no relacionamento entre os dois presidentes que já vinha se deteriorando desde o ano passado.

A tensão com o país centro-americano soma-se ainda à crise na Venezuela, que o mandatário brasileiro tenta desamarrar junto a outros atores regionais, mas sem criticar diretamente o ditador Nicolás Maduro. Analistas ouvidos pela Gazeta do Povo dizem que algumas razões explicam Lula a abandonar Daniel Ortega mas manter as relações com Nicolás Maduro.

Entre as possíveis razões para Lula manter relações com Maduro estão a proximidade geográfica da Venezuela e seu potencial para desestabilizar a América do Sul com refugiados e ameaças militares e o peso político do país como grande produtor de petróleo. Há ainda a identificação ideológica com o chavismo, que compõe o cenário de forças de esquerda regionais que Lula tenta reunir sob sua tutela.

Com menor relevância política e econômica, apesar da afinidade ideológica, a Nicarágua não tem potencial para influenciar a política regional. Além disso, manter o apoio a um ditador que persegue a Igreja Católica desde 2018 pode fazer Lula perder eleitores no Brasil. Na campanha eleitoral de 2022, o TSE censurou uma publicação da Gazeta do Povo nas redes sociais porque ela revelava o apoio de Lula a Ortega.

O Brasil expulsou a embaixadora da Nicarágua, Fúlvia Patricia Castro Matu, na quinta-feira (8), em resposta à expulsão do embaixador brasileiro no país. O diplomata Breno da Costa, responsável pela embaixada do Brasil na Nicarágua desde 2022, foi expulso do posto no país após decisão de Daniel Ortega. A razão, de acordo com informações de bastidores do Planalto e Itamaraty, teria sido a ausência do diplomata brasileiro no evento de aniversário da Revolução Sandinista – marco da história da esquerda na Nicarágua e que levou Daniel Ortega ao poder.

Em resposta à determinação do ditador nicaraguense, o governo brasileiro também decidiu pela retirada da embaixadora nicaraguense do Brasil. Em nota, o Itamaraty informou que a decisão foi resultado da "aplicação do princípio da reciprocidade". A retirada de embaixadores é vista no meio diplomático como um declínio das relações com aquele país.

As expulsões mútuas de embaixadores são o último capítulo do agravamento de uma crise entre os governos de Lula e de Ortega. Em 2023, o Brasil aceitou receber refugiados políticos nicaraguenses e o papa Francisco pediu a Lula para tentar intermediar negociações com Ortega para libertar o bispo Rolando Álvarez, que foi preso sob acusação de “traição à pátria”. Desde então, a relação entre os dois governantes esfriou a ponto de Lula reclamar e o antigo camarada não atendia mais seus telefonemas.

Relevância da Nicarágua em relações comerciais e políticas com o Brasil podem ter pesado para rompimento

Apesar da aproximação ideológica entre Lula e Ortega, analistas avaliam que a pouca relevância que a Nicarágua tem no contexto político e econômico do Brasil podem ter pesado para a decisão do governo brasileiro. "A Nicarágua não é um país que possui grande relevância para o Brasil como outros na região e até mesmo a própria Venezuela", pontua o cientista político Elton Gomes.

"A aproximação de Lula com o com a Nicarágua dá-se pelo contexto do tradicional alinhamento do PT com países de esquerda na América Latina, mas é um governo que não traz benefícios econômicos para o Brasil", avalia Gomes ao relembrar que a Nicarágua é um país localizado na América Central com pouca relevância político-econômica na região.

Nesse sentido, a relação custo-benefício pode ter pesado na decisão brasileira em adotar o conceito da reciprocidade para retirar a embaixadora nicaraguense do Brasil. "O que o Brasil ganha com um país que é abertamente autoritário, que persegue seus opositores e que não tem prognóstico de melhoria econômica e nem tem importância política?", questiona Gomes.

Considerado um dos países mais pobres nas Américas, a Nicarágua possui um Produto Interno Bruno (PIB) de US$ 17,8 bilhões de acordo com o Banco Central da Nicarágua (BCN). No ano passado, por exemplo, fluxo comercial (soma de importação + exportação) entre Brasil e Nicarágua sequer superou a marca de um bilhão de dólares.

Opressão a católicos de Ortega pode ter peso político para Lula

Aliados desde os primeiros mandatos de Lula, o teor religioso do regime de Ortega pode ter sido outro fator levado em consideração pelo governo brasileiro. "Há setores progressistas da igreja católica que apoiam o Partido dos Trabalhadores (PT) e têm capacidade de exercer pressão sobre representantes", avalia Elton Gomes. Nesse sentido, poderia haver prejuízos internos para Lula ao apostar na manutenção do relacionamento com um regime que persegue membros da igreja católica.

A religião ainda é um tema que pesa para o eleitor brasileiro que representa mais da metade dos cidadãos. Dados do Censo de 2010, feito pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mostram que 86% da população brasileira é cristã e 64% são católicos.

"Então é possível que os estrategistas de Lula tenham levado em consideração a população religiosa, majoritariamente católica, predominante conservadora e esmagadoramente cristã do Brasil", pontua. A decisão pode ter ainda mais peso nesse momento, que antecede as eleições municipais de outubro e o PT tenta eleger candidatos nas principais regiões do país. E a religião já trouxe perdas para Lula.

As declarações críticas que o petista adotou contra Israel nos últimos meses, país com relevante importância para os cristãos, refletiu em pesquisas de opinião sobre o mandatário brasileiro. Em março, após comparar a contraofensiva israelense na Faixa de Gaza ao holocausto cometido por Adolf Hitler na Segunda Guerra Mundial, Lula viu sua popularidade desmanchar.

Pesquisa quantitativa foi feita pela consultoria Genial/Quaest mostrou que na opinião de 60% dos brasileiros Lula teria exagerado nas declarações que fez sobre Israel. No segmento evangélico, que representa cerca de um terço da população, a avaliação negativa do mandatário petista deu um salto de 36% para 48%.

Lula abandona Ortega, mas mantém Maduro e Diaz-Canel sob sua "guarda"

Enquanto a Nicarágua não tem grande relevância política ou econômica para o Brasil, a manutenção do relacionamento com a Venezuela e Cuba têm um peso diferente para Lula. Os analistas ouvidos pela reportagem avaliam que o tom dado pelo governo petista a esses países precisam ser analisados sob diferentes perspectivas.

"O Brasil, no governo atual, adotou uma postura mais comedida em relação a Cuba e Venezuela, porque são países que, por mais que sejam autoritários, com denúncias contra os direitos humanos, crises humanitárias, são países que têm um peso maior que a Nicarágua", avalia Elton Gomes, do departamento de Ciências Políticas da Universidade Federal do Piauí (UFPI).

"Cuba é, por assim dizer, o epicentro ideológico dessa esquerda latino-americana. Foi de lá que saíram as ideias para a formação dessa esquerda internacional na América Latina. Além disso, é um país que, assim como a Venezuela, não vive um isolamento político mundial quase unânime", avalia o docente da UFPI.

O olhar sobre a Venezuela pode partir da perspectiva de que o país é um vizinho limítrofe e com uma população considerável que tem peso na região. "São quase 30 milhões de habitantes e há uma preocupação com a crise migratória. Além disso, é um país que, economicamente, pode ser relevante em um contexto de manutenção política no país devido às suas reservas de petróleo", pontua Gomes.

Para diplomatas do Itamaraty, o isolamento político da Venezuela traz prejuízos para a região e, consequentemente, para o Brasil. A perspectiva é de que toda e qualquer instabilidade venezuelana afeta as demais nações sul-americanas. O relacionamento com Cuba, por outro lado, tem um peso mais ideológico para Lula.

"A questão geopolítica e estratégica da fronteira em Roraima exige que o Brasil preze por manter as relações diplomáticas com Caracas para manter a previsibilidade sobre eventuais crises, como a migratória", avalia Danilo Josaphat, Consultor de Comércio Internacional da BMJ Consultores Associados. Depois que Maduro ameaçou invadir a Guiana para anexar território, o Brasil reforçou militarmente a fronteira construindo fortificações e deslonando blindados e mísseis para a região.

Apesar de serem sancionadas pelas principais democracias do Ocidente, Caracas e Havana não vivem um profundo isolamento graças ao apoio de China e Rússia, ditaduras que questionam a hegemonia dos Estados Unidos. Apesar dos embargos patrocinados por Washington, Cuba e Venezuela ainda integram blocos regionais.

No ano passado, Cuba, por exemplo, sediou a cúpula do G77+. O bloco, que nasceu com o intuito de unir as vozes do Sul Global, denominação em referência às nações em desenvolvimento, tem ganhado um teor político e ideológico desde que a maioria de seus integrantes são nações ditatoriais. Já a Venezuela, ainda integra a Celac (Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos) e Nicolás Maduro participa das cúpulas organizadas pelo bloco.

Lula e Daniel Ortega: aliados históricos

A retirada de embaixadores do Brasil e da Nicarágua mostram um declínio no relacionamento entre os dois países mas revelam, na verdade, um possível rompimento entre Lula e Daniel Ortega. Aliados históricos, o relacionamento de Lula com o autocrata tem início antes mesmo do petista assumir seu primeiro mandato como presidente.

Ortega era um dos membros da Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN), partido socialista que organizou manifestações e derrubou o regime da família Somoza, que comandava a Nicarágua há décadas. Após a queda do regime, Ortega assumiu o poder para seu primeiro mandato em 1979. Lula e Ortega se conheceram nessa época e o brasileiro viajou até a Nicarágua para acompanhar o aniversário da Revolução Sandinista no ano seguinte.

Dividindo o mesmo alinhamento ideológico, o petista já fez diversas declarações de aceno ao regime sandinista de Daniel Ortega. Em 2021, em entrevista ao jornal espanhol El País, Lula minimizou o regime de Ortega e comparou os consecutivos mandatos do ditador como "presidente" à então chanceler da Alemanha, Angela Merkel. "Por que que a Angela Merkel pode ficar 16 anos no poder e Daniel Ortega não?”, disse Lula.

Com manobras eleitorais e processos inconstitucionais, o ditador nicaraguense já está em seu quarto mandato seguido como "presidente" da Nicarágua. Lula também chegou a comprar sua prisão, em 2016, com as prisões arbitrárias contra opositores feitas por Ortega para impedir concorrentes em eleições no país.

A proximidade de Lula com Ortega, inclusive, foi utilizada contra o petista na disputa eleitoral de 2022. Em debate presidencial ao lado do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), Lula afirmou que sentiu "orgulho de participar da comemoração do aniversário da Revolução Sandinista". O relacionamento entre os dois, contudo, tem enfraquecido nos últimos meses.

Expulsão de embaixador brasileiro na Nicarágua pode ter sido recado de Ortega para Lula

Apesar da avaliação de baixo retorno político-econômico, não era a intenção de Lula elevar o tom contra a Nicarágua. O fato é que o relacionamento entre o brasileiro e Daniel Ortega vinha se deteriorando desde o ano passado, quando Lula tentou intermediar a perseguição do autocrata à Igreja Católica. No poder há mais de 15 anos, o regime de Ortega é marcado por uma forte perseguição a opositores.

O ditador também tem patrocinado uma "caçada" contra a Igreja Católica desde que membros do alto clero passaram a denunciar as agressões do seu regime. Apostando na proximidade que tinha com o ditador nicaraguense, Lula tentou intermediar a libertação do bispo Rolando Álvarez a pedido do papa Francisco. Mas o autocrata sequer ouviu Lula.

"Faz tempo que eu não converso com o Daniel Ortega [...] o Papa Francisco pediu para eu conversar com o Daniel Ortega sobre um bispo que estava preso lá. O dado concreto é que o Daniel Ortega não atendeu o telefonema e não quis falar comigo. Então, nunca mais eu falei com ele, nunca mais", disse Lula em entrevista a agências internacionais em julho.

Para analistas, a tentativa de Lula em intermediar a soltura do bispo a pedido do papa Francisco pode ter deteriorado a relação do petista com o regime. "Governantes autoritários são muito ciosos de sua autoridade e Ortega pode ter visto essa tentativa de Lula como intervenção", analisa Elton Gomes. Nesse sentido, a expulsão do embaixador brasileiro na Nicarágua pode ser interpretada como uma resposta de Ortega a Lula.

O governo brasileiro, então, respondeu à decisão de forma recíproca após avaliar que a "agressão fortuita ao padrão internacional de respeito às embaixadas e aos embaixadores". “O não comparecimento a um ato governamental ou institucional não caracteriza e não pode caracterizar uma reação do país. Nenhum embaixador de país é obrigado a participar de eventos”, afirmou Rui Costa, após reunião ministerial nesta quinta-feira (8).

Para Danilo Josaphat, consultor de comércio internacional da BMJ Consultores Associados, a decisão de Ortega contra o embaixador brasileiro sinaliza "indisposição para o diálogo internacional. Haja visto que o Brasil esteve atuando como mediador principalmente para a relação entre o regime sandinista e o Vaticano".

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