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A nova multa, de R$ 5 milhões, imposta pelo ministro Alexandre de Moraes ao X, em razão da volta temporária do acesso à rede social no Brasil, incluiu também a possibilidade de a Starlink, operadora de internet por satélite, a arcar com o pagamento.
A reportagem da Gazeta do Povo consultou quatro advogados especialistas em direito empresarial e civil, inclusive com experiência junto a companhias de tecnologia. Todos consideraram que a decisão contraria regras do Código Civil e do Código de Processo Civil que regem a forma de recolher recursos de uma empresa para quitar dívidas de outra.
A transferência desse passivo decorre de uma decisão de agosto do ministro que tem causado apreensão no meio empresarial e entre advogados, pelo temor de que se torne um precedente que aumente a insegurança jurídica no Brasil para investir e empreender.
Na semana passada, o STF comunicou que transferiu R$ 11 milhões que estavam depositados em contas da Starlink para os cofres da União, a fim de quitar a maior parte da multa de R$ 18,3 milhões aplicada por Moraes à X Brasil Internet Ltda, que administrava a rede social no país, e de onde foram recolhidos, por determinação do ministros, os outros R$ 7 milhões.
A punição foi imposta ao X por descumprimento de decisões judiciais de Moraes que determinavam a suspensão de perfis na plataforma. No mês passado, Elon Musk, dono da rede social, anunciou que fecharia o escritório da empresa no Brasil por considerar ilegais as decisões de Moraes, que chegaram a ameaçar de prisão executivos que a representavam no país.
Em razão do encerramento da empresa, das multas não pagas e do descumprimento das ordens de suspensão de perfis, Moraes determinou a suspensão da rede social, decisão depois confirmada por outros quatro ministros da Primeira Turma do STF: Cristiano Zanin, Cármen Lúcia, Flávio Dino e Luiz Fux. Antes disso, para forçar o pagamento dos R$ 18,3 milhões, Moraes determinou o bloqueio de contas e ativos da X Brasil e também da Starlink, empresa na qual Elon Musk também é sócio, mas sem relação direta com as atividades da rede social.
Nesta quinta-feira (19), um dia após o acesso ao X ter retornado ao Brasil em razão de uma troca de servidores da plataforma, Moraes aplicou a nova multa, de R$ 5 milhões, à X Brasil – caso não haja saldo, a cobrança poderá recair sobre a Starlink, “em face de sua responsabilidade solidária já determinada nos autos”, conforme a decisão do ministro.
A decisão que possibilitou a Moraes cobrar as multas da Starlink foi proferida por ele em agosto, e nela o ministro considerou que ela integra o mesmo “grupo econômico de fato” da X Brasil. Para isso, ressaltou o fato de ambas terem como sócio e líder o empresário Elon Musk, que se tornou um forte crítico de Moraes em razão das ordens de censura. Pelo fato de ele mesmo, como controlador das empresas, ter publicado que não cumpriria as ordens do ministro, Moraes entendeu que deveria então cobrar a multa também da Starlink.
“A manutenção da desobediência as ordens judiciais, o encerramento das atividades da X Brasil, bem como o insuficiente valor financeiro bloqueado da Twitter International Unlimited Company e da X Brasil Internet Ltda, para satisfação das multas diárias aplicadas, tornaram necessário a fixação de solidariedade do ‘grupo econômico de fato’, liderado por Elon Musk, e que atua em território brasileiro, para fins de efetivo e integral cumprimento das ordens judiciais da Justiça Brasileira, pois não resta qualquer dúvida de que o desrespeito as ordens judiciais dessa Suprema Corte foram determinadas diretamente pelo seu acionista estrangeiro majoritário e controlador de todas essas empresas: Elon Musk”, escreveu o ministro ao justificar a inclusão da Starlink na multa.
Para o advogado Richard Campanari, a nova decisão de Moraes, estendendo à Starlink multas aplicadas sobre a X, eleva a insegurança jurídica no Brasil para investimentos. “A imposição de responsabilidades com base em associações frágeis mina a segurança jurídica e a previsibilidade, essenciais para o investimento e estabilidade econômica. Esta tendência pode exacerbar a já considerável fuga de capitais, refletindo não apenas uma crise econômica, mas uma crise de valores democráticos”, diz.
O que dizem as leis sobre a questão envolvendo o X e a Starlink
A primeira regra mencionada por especialistas é o artigo 49-A do Código Civil, segundo o qual “a pessoa jurídica não se confunde com os seus sócios, associados, instituidores ou administradores”. Significa que, a priori, não se deve cobrar dos donos, fundadores ou administradores dívidas das empresas às quais estão ligados. “A autonomia patrimonial das pessoas jurídicas é um instrumento lícito de alocação e segregação de riscos, estabelecido pela lei com a finalidade de estimular empreendimentos, para a geração de empregos, tributo, renda e inovação em benefício de todos”, diz o trecho seguinte do dispositivo.
O Código Civil admite que haja desconsideração da personalidade da pessoa jurídica para cobrança de dívidas de uma empresa junto aos sócios, mas em caso de “desvio de finalidade” ou “confusão patrimonial”.
“A confusão patrimonial se dá quando não há uma separação clara entre os bens e direitos dos recursos da empresa e dos bens e direitos dos sócios. Já o desvio de finalidade acontece quando os sócios ou administradores utilizam a empresa para fins diversos, fora do objeto societário definido em seu contrato. Em ambos os casos, desvio ou confusão, deve-se provar ainda que isso foi feito para causar prejuízos a outrem. Geralmente é algo premeditado, proposital para prejudicar”, diz o advogado Emerson Grigollette.
“No caso do X e da Starlink, são empresas completamente distintas, não há confusão patrimonial nem desvio de finalidade, até porque elas preexistiam antes mesmo de tudo isso acontecer, servindo cada qual para finalidades distintas. Não tem nem como comprovar que uma ou outra foi criada, por exemplo, para fraudar credores”, acrescenta ele.
O fato de Elon Musk ser acionista nas duas empresas, com posição de liderança nos rumos delas, também não basta para que a Justiça retire recurso de uma para quitar multa de outra.
“A mera existência de grupo econômico sem a presença dos requisitos de que trata o caput deste artigo não autoriza a desconsideração da personalidade da pessoa jurídica”, diz ainda o Código Civil, em referência à necessidade de comprovar desvio de finalidade ou confusão patrimonial para cobrar dívidas de empresa com o mesmo sócio, por exemplo.
Além disso, a mesma lei diz que a verificação dessas hipóteses pode ser feita pelo juiz “a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo”. O Código de Processo Civil repete essa regra, ao prever, no artigo 133, que “o incidente de desconsideração da personalidade jurídica será instaurado a pedido da parte ou do Ministério Público, quando lhe couber intervir no processo”.
Os advogados consultados destacam que esse incidente exige que haja um procedimento à parte da ação principal, com ampla defesa e contraditório, para que o sócio ou a empresa se defendam da suspeita de confusão patrimonial ou desvio de finalidade. A decisão de Moraes foi proferida dentro de uma investigação criminal sobre ameaças e exposição de dados de delegados da Polícia Federal que conduzem as investigações relatadas pelo ministro no STF.
O que disse a Starlink contra a decisão de Moraes
Numa ação à parte enviada ao STF e relatada pelo ministro Cristiano Zanin, a Starlink afirmou que a decisão de Moraes, que desconstituiu a personalidade jurídica da empresa, foi proferida “sem a instauração do devido incidente e sem que lhes fossem oportunizado o direito à ampla defesa, à margem do que dispõe a lei, especificamente o art. 50 do Código Civil (“CC”) e os arts. 133 a 137 do Código de Processo Civil (“CPC”), e de forma contrária à jurisprudência deste e. STF”.
A Starlink afirmou ainda que o bloqueio de seus bens se deu no âmbito da investigação sobre os delegados, processo sigiloso que também acabou envolvendo o X, mas no qual a operadora de satélites não era parte, não participou nem teve acesso. “O ato constritivo foi realizado sem que estas [Starlink Brazil Holding Ltda e Starlink Brazil Serviços de Internet Ltda] sequer tivessem conhecimento dos fatos e tivessem sido previamente intimadas”.
A empresa também poderia ter recorrido junto a Moraes, mas informou a Zanin que, se o fizesse, se colocaria “em situação de manifesta insegurança jurídica”. Em 3 de setembro, o STF informou que o prazo para a Starlink recorrer da decisão de Moraes havia vencido.
Zanin negou o pedido para derrubar o bloqueio das contas, determinado por Moraes, sob o argumento de que não havia “flagrante ilegalidade ou teratologia” na decisão. Citou trecho da ordem de Moraes que apontou “descumprimento reiterado às decisões judiciais, evasão dolosa de seus representantes legais [da X Brasil] às intimações legais e demissão de seus administradores para evitar sua responsabilização legal”.