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Caso Covaxin

Por que Rosa Weber rejeitou arquivamento de investigação contra Bolsonaro no STF

Rosa Weber STF
Rosa Weber disse que cabe sim ao presidente da República tomar providências se souber de supostas irregularidades, como as citadas no caso Covaxin (Foto: Nelson Jr./STF)

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Na decisão em que recusou um pedido do procurador-geral da República, Augusto Aras, para arquivar um inquérito sobre o presidente Jair Bolsonaro, a ministra Rosa Weber utilizou uma exceção na jurisprudência predominante do Supremo Tribunal Federal (STF).

Em geral, quando o chefe do Ministério Público Federal pede à Corte o fim de uma investigação contra uma autoridade com foro privilegiado, o entendimento mais comum leva os ministros a acatar o pedido, sem entrar no mérito da suspeita.

“Se o procurador-geral da República requer o arquivamento de inquérito policial, de peças de informação ou de expediente consubstanciador de ‘notitia criminis’, motivado pela ausência de elementos que lhe permitam formar a ‘opinio delicti’, por não vislumbrar a existência de infração penal (ou de elementos que a caracterizem), essa promoção não pode deixar de ser acolhida pelo Supremo Tribunal Federal, pois, em tal hipótese, o pedido emanado do Chefe do Ministério Público da União é de atendimento irrecusável”, diz, por exemplo, uma decisão do ministro aposentado Celso de Mello, quase sempre citada pelos demais integrantes da Corte quando a PGR apresenta um pedido de arquivamento.

Numa pesquisa no sistema processual do STF, a Gazeta do Povo encontrou várias decisões recentes de ministros – inclusive de Rosa Weber – encerrando as investigações contra senadores e deputados, a pedido da PGR, com esse mesmo fundamento (leia abaixo).

No caso de Bolsonaro, Aras pediu o arquivamento do inquérito porque considerou que não é função nem obrigação do presidente da República acionar órgãos de investigação ao saber da ocorrência de uma suposta irregularidade – no caso, uma suposta pressão incomum dentro do Ministério da Saúde, no ano passado, para compra da vacina indiana Covaxin.

Bolsonaro passou a ser investigado pelo suposto cometimento do crime de prevaricação, que consiste em “retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício, ou praticá-lo contra disposição expressa de lei, para satisfazer interesse ou sentimento pessoal”, e que tem pena de três meses a um ano de detenção, além de multa.

Assim como Aras, a Polícia Federal também concluiu não ter ocorrido o crime porque, entre as atribuições do presidente da República descritas no artigo 84 da Constituição, não existe o dever de comunicar irregularidades – para o procurador-geral, nesse caso, há “discricionariedade na escolha da conduta a tomar”.

Qual foi a exceção usada por Rosa Weber

Em sua decisão, Rosa Weber reconheceu que, “em regra”, o pedido de arquivamento feito pela PGR é irrecusável por parte de um ministro do STF.

Mas afirmou que isso vale quando, no curso das investigações, a polícia ou o próprio Ministério Público não conseguem juntar provas ou indícios suficientes que possam demonstrar, minimamente, que ocorreu algum crime ou que a autoridade investigada esteja nele envolvida. Ou seja, em casos em que não haveria “base empírica” para uma acusação.

Rosa Weber esclareceu que o arquivamento não é obrigatório – e portanto, pode ser negado pelo STF – em duas situações: quando há prescrição (e nesse caso, cabe ao ministro verificar se, de fato, a passagem do tempo extinguiu a possibilidade de punição) ou quando o magistrado não concorda com a análise feita pelo MP quanto à “tipicidade” da conduta.

Trata-se de examinar se algum ato concreto, comprovado na investigação, enquadra-se ou não na descrição do crime expressa na lei.

E foi por isso que a ministra negou o arquivamento do inquérito de Bolsonaro, por entender, basicamente, que cabia a ele, sim, ao contrário do que entende a PGR, acionar órgãos de investigação ao saber da pressão na Saúde a favor da Covaxin.

Rosa Weber disse que, como chefe da administração pública federal, também recairia sobre Bolsonaro a “função disciplinar para punir integrantes da administração direta”.

“Não há espaço para a inércia ou a liberdade de ‘não agir’ quando em pauta o exercício do controle da legalidade de atos administrativos – ou, mais especificamente, do poder-dever de anular atos contrários ao ordenamento jurídico – e do poder disciplinar em face e desvios funcionais”, escreveu ela na decisão.

A ministra do STF foi além: disse que, pelo próprio texto da Constituição e da lei do impeachment, constitui crime de responsabilidade, punível com a perda do mandato, atentar contra a probidade na administração, ao “não tornar efetiva a responsabilidade dos seus subordinados, quando manifesta em delitos funcionais ou na prática de atos contrários à Constituição”.

Na decisão, ela disse que o modelo acusatório – estabelecido na Constituição de 1988, e segundo o qual é exclusivo do Ministério Público o papel de formular a acusação e denunciar à Justiça os suspeitos de crimes em ações penais públicas – não significa que o órgão é o “intérprete definitivo das leis penais”.

“Mesmo no domínio penal, compete ao Judiciário em geral e a esta Suprema Corte em particular a última palavra sobre o conteúdo normativo dos preceitos primários de incriminação, máxime quando em pauta, como no caso, discussão sobre o significado e o alcance de cláusulas constitucionais, a exemplo daquelas hospedadas no art. 84 da CF, invocado pelo Ministério Público como fator inibitório à caracterização típica do crime de prevaricação, na presente hipótese”, afirmou a ministra na decisão.

Para sustentar a possibilidade de recusar o arquivamento, Rosa Weber ainda citou um precedente de 1992, do então ministro Sepúlveda Pertence. Na época, ele disse que se o MP entender que um fato não constitui crime “há de o juiz decidir a respeito”.

Em 2007, Gilmar Mendes reafirmou esse entendimento ao dizer que “apenas nas hipóteses de atipicidade da conduta e extinção da punibilidade poderá o tribunal analisar o mérito das alegações trazidas pelo PGR”.

A razão para essa diferenciação é que, quando a PGR pede arquivamento de um inquérito por falta de provas, nada impede que a investigação seja reaberta caso se encontrem novos elementos que possam resgatar a hipótese criminal. Já quando ocorre o arquivamento por atipicidade ou prescrição, acaba a possibilidade de se investigar novamente o caso.

O que acontece agora

No inquérito contra Bolsonaro, tanto a PF quanto a PGR, responsáveis pela investigação, já disseram que não houve crime. Para o procurador da República André Estima, estudioso do modelo acusatório, não há possibilidade de um juiz ou ministro do STF forçar o Ministério Público ou a Polícia Federal a imputar crime a alguma pessoa.

“Um dos fundamentos do sistema acusatório é separar radicalmente a atividade do juiz da atividade de acusação. No passado, era uma coisa só: juiz investigava, mandava prender sem ouvir ninguém, abria processo, era um inquisidor. No mundo inteiro, isso evoluiu para retirar do juiz essa atribuição. Alguns juízes se ressentem um pouco da própria existência do Ministério Público, porque significa uma redução do poder do juiz. Então, a gente sente na prática, principalmente no primeiro grau, e agora mais fortemente no Supremo, que alguns não querem largar, tentam reinstaurar uma ordem extinta na maior parte do mundo”, diz.

Mesmo no STF, historicamente, diz ele, o arquivamento a pedido do Ministério Público nunca foi algo polêmico. A diferença para o caso atual, reconhece o procurador, é porque a divergência se dá por uma questão de direito, não de fato – Judiciário e MP reconhecem a ocorrência de um episódio concreto, mas divergem quanto à existência de crime no caso.

Mas se, mesmo nesse caso, o juiz não pode determinar o que deve fazer o MP, qual a saída? Uma possibilidade é o procurador-geral recorrer ao plenário do STF – é o que já cogita Augusto Aras no caso de Bolsonaro, valendo-se do entendimento mais comum na Corte. Uma segunda solução é usar outro fundamento para pedir à própria ministra o arquivamento.

E outra opção, ainda não cogitada e nunca testada, seria submeter a questão a outro membro ou órgão do Ministério Público, possibilidade que já existe em casos que tramitam nas instâncias inferiores.

Quando um promotor entende que um caso deve ser arquivado – seja por falta de provas de ocorrência do crime ou de envolvimento do suspeito, seja por atipicidade da conduta – é possível que uma câmara de revisão, órgão colegiado superior dentro do próprio MP, reexamine o caso e, se entender que é necessário o prosseguimento do inquérito, peça ao juiz que mantenha em curso a investigação com outro promotor.

No caso de pedidos de arquivamento por parte do procurador-geral, isso não ocorre, porque, como ele já ocupa a chefia do Ministério Público, não haveria um órgão colegiado superior para revisar suas posições.

Dentro do STF e do Congresso, existe a ideia de submeter os pedidos de arquivamento ao Conselho Superior do MPF, órgão de cúpula formado pelo procurador-geral e mais nove subprocuradores – em sua composição atual, a maioria dos membros se opõe a Aras.

“A melhor solução seria essa. Porque valoriza o Ministério Público, uma vez que a decisão é interna e não externa. E não coloca o procurador-geral sob uma câmara pequena, mas sob o conselho superior, que é um órgão que tem atribuições inclusive para além do PGR em algumas matérias”, diz Estima.

Dentro do STF, há manifestações de associações de procuradores pedindo uma interpretação que possibilite ao Conselho Superior do MPF rever pedidos de arquivamento por parte do procurador-geral. Também há proposta no Congresso em tramitação para adoção do mesmo procedimento. Mas nem a Corte, nem o Legislativo, há acordo e deliberação sobre a questão.

Arquivamentos são mais comuns por falta de provas

Uma rápida pesquisa na jurisprudência do STF mostra que é bastante comum o arquivamento de inquéritos a pedido da PGR quando a investigação não encontra provas da ocorrência de um fato que poderia caracterizar crime ou do envolvimento da pessoa investigada no caso.

Em fevereiro de 2019, a própria Rosa Weber aceitou um pedido da ex-procuradora-geral da República Raquel Dodge para arquivar um inquérito contra o atual ministro das Comunicações, Fábio Faria.

No caso, executivos da Odebrecht relataram, em delação, doações não declaradas (caixa 2) para a campanha dele a deputado federal em 2010, em troca de apoio a projetos da construtora no Rio Grande do Norte.

Em parecer Raquel Dodge disse que “apesar dos fortes indícios” do crime, não havia elementos suficientes para o oferecimento de denúncia, e que era inviável a continuidade das investigações. Ao arquivar o caso, Rosa Weber escreveu:

“A jurisprudência desta Suprema Corte é firme no sentido de que inviável a recusa a pedido de arquivamento de inquérito ou de peças de informação deduzido pelo próprio Chefe do Ministério Público quando ancorado em ausência de elementos à formação da necessária opinio delicti. Em tal caso impõe-se o acolhimento de promoção da Procuradora- Geral da República. É o norte que emerge de reiterados precedentes.”

Em 2018, Dias Toffoli arquivou um inquérito contra o deputado Paulinho da Força (Solidariedade-SP) no qual havia suspeita de corrupção e lavagem de dinheiro.

Executivos da Odebrecht afirmaram que transferiram, a pedido de Paulinho, ao menos R$ 200 mil para sua campanha em 2010, de forma não declarada (caixa 2) – em troca, ele atuaria contra greves em obras da empreiteira e a favoreceria com recursos FGTS.

Raquel Dodge pediu o arquivamento, afirmando que “não se logrou êxito na coleta de dados concretos e elementos aptos de comprovação”. Ao arquivar, Toffoli escreveu: “A jurisprudência desta Corte assentou que o pronunciamento de arquivamento, em regra, deve ser acolhido sem que se questione ou se entre no mérito da avaliação deduzida pelo titular da ação penal.”

Em 2016, também acolhendo pedido da PGR, Cármen Lúcia aceitou o arquivamento de um inquérito contra o senador Fernando Bezerra (MDB-PE), que era investigado por supostas irregularidades na aplicação de recursos federais para obras num hospital de Petrolina (PE), entre 2002 e 2003, quando ele era prefeito da cidade.

Em 2015, o então procurador-geral da República, Rodrigo Janot, pediu o arquivamento sob alegação de que não existiam “indícios de autoria e materialidade” de desvio de verbas, nem recebimento de dinheiro em suas contas. Na decisão, Cármen Lúcia disse que “a jurisprudência deste Supremo Tribunal consolidou-se no sentido de ser irrecusável o pedido de arquivamento do Procurador-Geral da República” quando falta “base empírica” para a denúncia.

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