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Meio Ambiente

Nuvens e desmatamento legal: por que Bolsonaro não acredita nos dados sobre a Amazônia

Governo diz que dados errados sobre desmatamento da Amazônia prejudicam o Brasil (Foto: Jefferson Rudy/Arquivo AFP)

Desde que tomou posse, o governo Bolsonaro tem atacado com regularidade os dados sobre o desmatamento da Amazônia e entidades que fazem o monitoramento, inclusive órgãos ligados ao governo, como o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), que é vinculado ao Ministério da Ciência e Tecnologia. As críticas têm se intensificado nas últimas semanas, sobretudo após o Inpe divulgar as últimas medições do sistema Deter – Detecção de Desmatamento em Tempo Real, que apontam um crescimento de 88% na desflorestação em junho e de 212% em julho, na comparação com os mesmos meses de 2018.

Em coletiva de imprensa nesta quinta-feira (1), o presidente Jair Bolsonaro voltou a contestar o número que, segundo ele, “não condiz com a verdade”. Disse ainda que os informes são divulgados de má-fé e que no Inpe há gente interessada em denegrir a imagem do país. Na mesma ocasião, o ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), Augusto Heleno, também desconfiou da veridicidade dos dados do Inpe e disse que, mesmo que fossem corretos, não deveriam ser alardeados, mas sim, tratados internamente.

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Questionados em ao menos duas ocasiões pelos jornalistas sobre quais seriam os dados reais, os integrantes do governo não responderam. O ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, afirmou que aos dados de junho foram adicionados dados de meses anteriores, que há áreas duplicadas nas medições e que não foi considerada a área recuperada pela floresta.

Mas, afinal, por que o governo não acredita nos dados oficiais? Veja o que a equipe de Bolsonaro alega e o que especialistas no assunto afirmam:

A questão das nuvens

O que diz o governo

O ministro Ricardo Salles questiona a precisão das imagens coletadas pelos satélites, já que, por causa das nuvens, elas seriam apenas estimativas. “Do jeito que a turma defende, parece que o Inpe chega no dia 1º de janeiro e faz o monitoramento de toda a Amazônia, depois no ano seguinte faz a conta de mais e menos e vê quanto desmatou. Não é assim que funciona. Você não passa o scanner por cima da área toda o tempo todo; o satélite passa a cada 14 dias [na verdade, a frequência é a cada 16 dias], se tiver uma nuvem, já não viu ali. Então faz um número por estimativa. Os dados não são precisos, nesse aspecto”, disse Salles à Folha de S. Paulo, em 15 de janeiro deste ano.

Nesta quinta (1), Salles anunciou que a pasta vai lançar licitação para contratar uma nova empresa de fiscalização porque, em sua avaliação, o país "precisa ter um sistema melhor de fiscalização".

O que se sabe  

O Inpe explica que o problema é contornado desta forma: “Para as áreas onde a cobertura de nuvens não permitiu o mapeamento, é feito um cálculo que estima a área desmatada sob nuvem, usando a hipótese de que a proporção da ocorrência de desmatamento em áreas sob nuvens é igual a das áreas não cobertas por nuvens”. Aproveitando a época de secas, o instituto compara também imagens coletadas em períodos diferentes para checar se houve ou não desmatamento. Segundo o Inpe, o nível de precisão dessas medições é superior a 95%.

Além do monitoramento do Inpe, o Ibama desenvolveu uma metodologia, em parceria com a Agência Japonesa de Exploração Aeroespacial (Jaxa), que, por meio de sensores de radar, identifica desmatamento através das nuvens. “Os desmatadores não têm como evitar a detecção do corte, mesmo em períodos de tempo fechado, em que as nuvens poderiam bloquear a visão do satélite”, explicou em junho do ano passado, o coordenador-geral substituto do Centro Nacional de Monitoramento e Informações Ambientais do Ibama, Edson Sano.

Legal X ilegal

O que diz o governo

Segundo Salles, as imagens coletadas pelos satélites não diferenciam entre desmatamento legal e ilegal. "Você tem a informação do desmatamento, da diminuição da cobertura vegetal, mas você não sabe se ela é ilegal ou não. Se ela for legal, porque você vai coibir o que é legal? Por outro lado, se for ilegal, nós temos que agir firmemente, mas somente naqueles locais onde há desmatamento ilegal", afirmou em entrevista ao G1, em 10 de dezembro do ano passado. E ainda: "Nós não sabemos se o desmatamento está acontecendo em área de conservação e propriedade indígena, dentro de propriedade privada. Se o percentual é maior ou menor do que dentro da reserva legal", disse. "Como você pode emitir uma opinião sobre alguma coisa sem ter dados?"

Para o ministro é preciso “fiscalizar quem está cometendo ilegalidades, mas também reconhecer de outro lado que muitas das supostas irregularidades não são. E é preciso que haja uma postura correta do ente público em reconhecer que certas situações alardeadas para os quatro cantos em muitos momentos não são infração. Elas são simplesmente implementação de dispositivos legais de direito de propriedade”.

O que se sabe

Desde dezembro do ano passado, o Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente) conta com uma ferramenta desenvolvida em parceria com a Rede MapBiomas que funciona como uma espécie de radar de velocidade que fotografa a placa do veículo infrator. O sistema cruza as imagens de sistemas diferentes de alertas de desmatamento com os dados do Cadastro Ambiental Rural e de autorizações de supressão de vegetação, o que permite identificar a legalidade ou não do desmatamento para a elaboração de um laudo detalhado.

Levantamento feito pelo jornal O Estado de S. Paulo, com base nos dados do Ministério do Meio Ambiente, aponta que 15% do desmatamento registrado pelo Prodes – Projeto de Monitoramento do Desmatamento na Amazônia Legal por Satélite em 2018 (feito pelo Inpe) ocorreu em unidade de conservação e em terra indígena. O resto aconteceu em terra pública grilada para especulação imobiliária e privada, sendo 19% em propriedades inscritas no CAR. Dados oficiais do governo registraram, entre agosto de 2017 e julho de 2018, aumento de 13,7% no desmatamento da Amazônia Legal.

Desmatamento zero

O que diz o governo

“O Brasil continua sendo exemplo de conservação, e nenhuma medida concreta foi tomada pelo governo contra a preservação", disse Salles à BBC Brasil, em junho. Segundo o ministro, os dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais são “genéricos” e o Brasil já alcançou o “zero relativo” de desmatamento. "Busca-se o zero absoluto ou o zero relativo? O zero relativo nós já atingimos", disse Salles à Folha de S. Paulo comentando os números do Inpe.

Augusto Heleno afirmou à BBC Brasil que “esses índices de desmatamento são manipulados. Se você somar os porcentuais que já anunciaram até hoje de desmatamento na Amazônia, a Amazônia já seria um deserto. No entanto, nós temos muito mais da metade da Amazônia intocada”. Questionado pela Gazeta do Povo sobre quais índices seriam manipulados, o ministro negou ter se referido aos do Inpe. Mesmo assim defendeu que os números do Inpe “merecem certa reserva”.

O que se sabe

O Brasil ratificou em 2016 o Acordo de Paris sobre o clima que prevê zerar o desmatamento ilegal até 2030. Por enquanto, porém, os dados parecem ir de encontro ao objetivo. Monitoramento do MapBiomas (projeto criado em 2015 em parceria entre universidades, ONGs, institutos nacionais e o Google) aponta que 953 mil hectares foram desmatados em unidades de Conservação (UCs), terras indígenas (TIs) e quilombolas que deveriam ter permanecido integralmente preservados. Isto equivale a uma área equivalente a seis cidades de São Paulo.

Como a Amazônia é monitorada

Por meio de satélites, três sistemas fazem o monitoramento da Amazônia Legal, sendo dois governamentais operados pelo Inpe, e um independente, gerenciado pelo Imazon (Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia). São eles:

Deter - Detecção de Desmatamento em Tempo Real

Comandando pelo Inpe e lançado em 2004, o Deter emite notificações diárias ao Ibama e divulga relatórios trimestrais (em fevereiro, maio, agosto e novembro). Por meio dos satélites Landsat e CBERS-2/2B, o Deter registra dois tipos de desmatamento: a degradação da floresta, que é a retirada de algumas árvores de valor comercial, e o corte raso, que é a remoção total da vegetação. O Deter aponta uma tendência de desmatamento, que segundo o MapBiomas, em 90% dos casos é confirmada por dados mais consolidados.

O Deter revela desmatamento a partir de 25 hectares, equivalente a 25 campos de futebol. Por ser um sistema ótico, a cobertura das nuvens prejudica a leitura das imagens, porém, o problema é contornado graças a um radar que emite ondas eletromagnéticas e que faz a leitura através as nuvens: este sensor cobre 17% da Amazônia legal, na área com maior incidência de nuvens. O sistema conta também com outro satélite que produz imagens com resolução maior, a partir de 6,25 hectares.

Prodes - Programa de Cálculo do Desflorestamento da Amazônia

Também comandado pelo Inpe, o Prodes calcula, desde 1988, a taxa anual oficial de desflorestamento: os dados são divulgados em agosto. O foco do Prodes é a identificação do corte raso com uma resolução a partir de 6,25 hectares. O sistema cruza imagens de três satélites, dessa forma, ao longo do ano, consegue monitorar as áreas cobertas por nuvens.

Para a estimativa da taxa de desmatamento do Prodes, é levado em consideração não só o valor de incremento de supressão florestal, mas também, por exemplo, as áreas desmatadas que estavam sob nuvem em anos anteriores.

Sad – Sistema de Alerta de Desmatamento

O Sad é operado por um órgão independente, o Imazon (Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia). O sistema detecta a degradação (perda parcial da floresta) e o corte raso (perda total). A divulgação dos dados é mensal. O objetivo desse monitoramento é subsidiar os órgãos de fiscalização nas operações de identificação e punição dos infratores.

O sistema usa um dos mesmos satélites do Deter, porém a leitura das imagens é diferente: ela é realizada pelo método híbrido, com classificação digital e interpretação visual. Dessa forma, o sistema é capaz de detectar o desmatamento a partir de 10 hectares. Como é um leitor ótico, as nuvens podem atrapalhar a coleta de dados.

As imagens não diferenciam desmatamento legal do ilegal. Para isso é preciso combinar as informações obtidas pelos sistemas de monitoramento com as informações de autorizações de desmatamento concedidas pelos estados.

Como funcionam os 3 sistemas de monitoramento

Credibilidade do Inpe

Dados do Inpe são utilizados há décadas pela comunidade científica internacional. Uma busca no motor de pesquisa Google Acadêmico mostra que o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais é citado em 228 mil publicações, sendo que mais de 50 mil são em língua estrangeira. O portal UOL calculou que, excluindo as universidades, o Inpe tem a terceira maior produção científica no país, atrás apenas da Embrapa e da Fundação Oswaldo Cruz, e desde 1972, acumula mais de 9 mil registros na Scopus, uma das maiores bases de citações científicas do mundo.

Em 2007, a revista norte-americana Science escreveu que “o sistema de monitoramento [da Amazônia] do Brasil faz inveja ao mundo inteiro” e que outras nações tropicais gostariam de emular o sistema do Inpe. Em julho desse ano, após Jair Bolsonaro questionar a veridicidade dos dados sobre o desmatamento, Bill Laurence, diretor do Centro de Ciência Sustentável e Meio Ambiente Tropical, da universidade australiana James Cook, afirmou à revista Science que “esses dados são há muito tempo um barômetro confiável do que acontece na Amazônia brasileira” e que não acreditar neles é igual a argumentar que a Terra é plana.

Na mesma revista, Douglas Morton, chefe do laboratório de ciências da biosfera da Nasa, disse que “sempre ficou impressionado com as habilidades técnicas dos cientistas do Inpe e que bate palmas por eles serem os pioneiros no esforço de fornecer estimativas anuais de desflorestação”.

Carlos Souza Jr, do Imazon, afirmou à BBC Brasil que o Inpe tem alto grau de transparência e que "o Brasil tem um sistema de monitoramento (do desmatamento) que é reconhecido mundialmente, seja pela academia, pelos cientistas e por governos". "É o mesmo sistema que foi usado para controlar o desmatamento, quando nós tivemos, de 2004 a 2012 essa redução significativa, que foi reconhecida como a maior contribuição de uma nação para a redução na emissão de gases do efeito estufa", disse.

História do Inpe

Criado no começo dos anos 1960 em São José dos Campos (SP), o Inpe é um órgão ligado ao Ministério da Ciência e Tecnologia. Iniciou a mapear o desmatamento na Amazônia em 1974 e a partir de 1988 coleta de forma sistemática dados que se tornaram a fonte primária de informações para as decisões do governo federal nas políticas de combate ao desmatamento.

Cientistas do Inpe elaboram relatórios sobre as mudanças climáticas para a Organização das Nações Unidas e, desde os anos 1980, o instituto coopera internacionalmente. Os satélites CBERS, cujas imagens são usadas para monitorar a Amazônia, por exemplo, foram construídos em parceria com a China. O primeiro satélite foi lançado em 1988, o último em 2014.

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