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O navio-aeródromo multipropósito “Atlântico”, o porta-helicópteros de assalto anfíbio e nau capitânia ("navio chefe") da Marinha, está sendo usado em sua primeira missão de ajuda humanitária de grandes proporções. Ele reforçará o atendimento médico às vítimas de desabamentos e aos desabrigados pelas fortes chuvas em São Sebastião (SP).
A ação é parte de um esforço dos militares para começar a recuperar seu prestígio, segundo analistas ouvidos pela reportagem. Eles foram envolvidos em uma sucessão de crises políticas ocorridas após as eleições presidenciais do ano passado.
Na prática, o navio da Marinha vai ser usado como hospital de campanha a partir desta quinta-feira (23), quando aporta em São Sebastião. Instalações médicas foram montadas em seu hangar.
O Atlântico substituiu o porta-aviões São Paulo como principal navio da esquadra brasileira. O último porta-aviões brasileiro virou sucata e foi afundado em alto mar no início deste mês.
A função principal do porta-helicópteros em uma guerra é o assalto anfíbio, ou seja, a tomada de uma parte do litoral inimigo. Mas, quando ele foi comprado do Reino Unido em 2018, um dos principais objetivos dos militares brasileiros era utilizá-lo em ações de ajuda humanitária dentro e fora do país.
O navio está levando seis helicópteros do Comando da Força Aeronaval e um grupamento com 180 Fuzileiros Navais, da Força de Fuzileiros da Esquadra, para a missão de socorro no litoral paulista. Além disso, foram embarcados microcarregadeiras, ambulâncias e um tipo de trator chamado pá carregadeira, para ajudar na desobstrução de vias e demais necessidades.
O navio também disporá de três embarcações de desembarque de veículos e de pessoal, com capacidade para embarque de 35 pessoas cada; uma lancha de transporte de pessoal, com capacidade para 20 pessoas; uma lancha operativa; e uma equipe de pronto emprego do Centro de Medicina Operativa da Marinha, composta por 28 médicos e militares da área de saúde.
O hospital de campanha do "Atlântico" dispõe de médicos de diferentes especialidades: ortopedista, cirurgião geral, anestesista, clínico geral, pediatra, cirurgião dentista, além de farmacêutico, técnicos em enfermagem, auxiliar de higiene bucal e auxiliar de laboratório.
Mas, nem toda a capacidade do navio está sendo utilizada. O Atlântico pode levar até 18 helicópteros, 432 tripulantes e até 1.400 fuzileiros. Ele é capaz de acomodar mais pessoas que alguns municípios brasileiros, como Serra da Saudade (MG), com apenas 771 habitantes; Borá (SP), com 839; Araguainha (MT), com 909; e Engenho Velho (RS), com 932 moradores.
Marinha atua em força-tarefa do governo federal
O apoio da Marinha faz parte da força-tarefa coordenada pelo Ministério da Integração e do Desenvolvimento Regional (MIDR), por meio do Sistema Federal de Proteção e Defesa Civil. A pasta informa que o objetivo é dar apoio às ações da Defesa Civil no socorro às vítimas das fortes chuvas que castigaram o litoral norte de São Paulo nos últimos dias.
O governo sustenta que a chegada do navio possibilitará a criação de uma estrutura que reforçará o atendimento médico aos desabrigados, aliviando a demanda dos hospitais locais, que ficarão com os casos mais graves.
O navio-aeródromo multipropósito “Atlântico” foi construído em meados da década de 1990 e já foi usado em diversas missões de ajuda humanitária no exterior. A mais recente ocorreu em 2017, quando foi empregado pela Marinha Real britânica na operação Ruman, que apoiou ações humanitárias nas ilhas do Caribe, afetadas pelo furacão Irma.
Ele também participou de ações humanitárias no Kosovo, na América Central, na Ásia e África. Em 2000, participou da Operação Palliser, de intervenção militar em Serra Leoa. Em seguida, operou no Oriente Médio, no grupo de combate do HMS Illustrious na Guerra do Iraque.
Em 2009, foi deslocado para a Ásia, novamente em operações navais e de apoio a ações humanitárias. Em 2011, participou da Operação Unified Protector, na Líbia. No ano seguinte, retornou à Inglaterra para reformas e, posteriormente, participou de operações navais, no âmbito da Otan (aliança militar ocidental).
Em 29 de junho de 2018, ele foi comprado pela Marinha do Brasil, tendo ancorado no Rio de Janeiro em 25 de agosto daquele mesmo ano. O objetivo oficial era manter a capacidade de realização de operações aéreas a partir de navios-aeródromos, tanto em alto-mar quanto projetando poder sobre terra. Mas o poder de um porta-helicópteros é muito inferior ao de um porta-aviões.
O "Atlântico" já foi usado exercícios operativos anuais da Marinha, o Almirantex, e outras atividades militares, mas é a primeira vez que é usado em uma missão de ajuda humanitária do porte da operação coordenada pelo governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
Forças Armadas querem recuperar prestígio
O apoio da Marinha — e também do Exército, que já atua em São Sebastião — ocorre meses após a cúpula das Forças Armadas ter ficado entre a cruz e a espada. Uma parcela da esquerda, incluindo o próprio governo, tratou os militares como bodes expiatórios para os atos de vandalismo ocorridos em 8 de janeiro. Lula, por exemplo, exigiu uma reunião com os três comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica para discutir o assunto. Depois, ele substituiu o comandante do Exército alegando desconfiança, mas sem apresentar provas.
Já uma parcela dos conservadores que defendia uma intervenção militar (baseando-se numa interpretação equivocada do artigo 142 da Constituição) acusou os militares de não terem "tomado partido" para evitar a posse de Lula. As críticas ao Alto Comando do Exército geraram constrangimento e isso levou o Exército a reagir a mensagens de manifestantes que chamavam generais de "comunistas".
Agora, com a atuação das Forças Armadas na ajuda humanitária, acredita-se que os militares possam começar a recuperar parte de seu capital político. "Com certeza ajuda a recuperar o prestígio depois de momentos conturbados nos últimos meses, mas esse não é o intuito da missão, e sim ajudar os brasileiros em apuros", diz o analista político Alexis Risden, especialista em segurança e defesa nacional da BMJ Consultores Associados.
O consultor político sustenta que a situação em São Sebastião é muito séria pois há poucos acessos liberados por vias terrestres. Ele avalia que o navio "Atlântico" vai dar um apoio tanto de base médica, com transporte feito por helicópteros, como de manutenção das rodovias, por meio do Batalhão de Engenharia dos Fuzileiros Navais.
"É um bom navio, que veio com vários sistemas e sensores removidos, mas acredito que a Marinha está cumprindo a missão do navio de prestar assistência às vítimas. Não é novidade para as Forças Armadas, em todas as calamidades públicas vindas de desastres naturais, elas sempre prestaram e vão prestar apoio aos brasileiros", sustenta Risden.
Analista prevê que o apoio humanitário é o primeiro de muitos
Capitão de fragata da reserva da Marinha e colunista da Gazeta do Povo, Robinson Farinazzo, entende que a atual missão pode não ser o único apoio humanitário prestado pelo "Atlântico" no Brasil. "Ele tem uma versatilidade grande, com uma grande capacidade de receber [militares e civis], tem as suas instalações médicas, ele pode receber helicópteros de grande porte, pode receber barcos. Com certeza ainda vai prestar grandes serviços à sociedade", avalia.
O militar entende que a compra do navio "foi um acerto" da Marinha, sobretudo pelo preço pago, de £ 84 milhões, que, à época, representou uma aquisição em torno de R$ 454 milhões. "É meio complicado acertar na compra de um navio que já foi usado, porque o navio é desenhado para quem projetou e para o primeiro país que encomendou, mas, em função do que a Marinha faz, ele caiu como uma 'luva', inclusive no preço", sustenta.
Farinazzo destaca o papel desempenhado pela Marinha e diz que a ajuda humanitária reforça o papel prestado pelas Forças Armadas. "Elas existem para servir a sociedade, são instituições de Estado, estão presentes desde a Batalha de Guararapes e nunca se furtarão ao atendimento ao Brasil, independentemente de presidente. O Brasil continua e temos que fazer o melhor possível", comenta.
O militar entende que não existe animosidade entre as Forças Armadas e o governo e reforça que elas farão o melhor possível pelas vítimas em São Sebastião. "Os militares da Marinha sempre trabalham com muito profissionalismo, é mais uma missão. Esses acontecimentos do litoral de São Paulo geraram comoção nacional e internacional e a Marinha não iria ficar indiferente, realmente ficamos sensibilizados. O pessoal está trabalhando com o coração e fazendo o melhor possível pelos brasileiros", analisa.
Exército destacou 600 militares para reabrir estradas
Além do “Atlântico”, a embarcação de desembarque de carga geral Guarapari também atuará no apoio aos desabrigados e já está a caminho de São Sebastião. O navio tem uma rampa capaz de atracar em praias para o resgate de vítimas que ainda estão em áreas isoladas. Nos últimos dias, ele transportou, de Santos a São Sebastião, suprimentos "extremamente necessários" para a ajuda humanitária, afirmou na quarta-feira (22) o comandante da Marinha, almirante de esquadra Marcos Sampaio Olsen.
O comandante em chefe da Esquadra, vice-almirante Edgar Luiz Barbosa, afirma que a Marinha está empenhada e comprometida em "levar esperança e solidariedade para as vítimas deste desastre natural". "A prontidão dos navios, aeronaves e unidades de fuzileiros navais, nossos homens e mulheres, marinheiros e fuzileiros navais, é o que temos de melhor para oferecer para amenizar o sofrimento dessas pessoas”, destacou.
Além da Marinha, o Exército também apoia com ajuda humanitária. O Comando Militar do Sudeste empregou cerca de 600 militares em uma grande operação de apoio à Defesa Civil em São Sebastião desde segunda-feira (20). A Força-Tarefa do 6° Batalhão de Infantaria Leve realiza a escavação e a procura por vítimas após deslizamentos de terra em Boiçucanga e Barra do Sahy.
O Exército também realiza transporte e escolta de donativos arrecadados pela prefeitura. O acesso terrestre até Barra do Sahy só se tornou possível, porque a Engenharia do Exército, junto a outras agências, trabalhou na desobstrução de pontos na BR 101 que tiveram quedas de barreiras.
Com seis aeronaves, a Aviação do Exército cumpre missões de reconhecimento, transporte de donativos até a região de Juquehy, que segue isolada, e transporte de equipes do Corpo de Bombeiros, da Defesa Civil e até dos cães farejadores da Guarda Civil Metropolitana de São Paulo, que apoiaram a busca por desaparecidos junto aos militares do Exército.