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Uma portaria do Comando Logístico do Exército Brasileiro (COLOG) publicada na última terça-feira (27) está dando esperança de sobrevivência para instrutores e clubes de tiro pelo Brasil. Ela regulamenta o decreto antiarmas do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e deve destravar a partir de 10 de janeiro de 2024 a emissão de novos Certificados de Registro para Caçadores, Atiradores Esportivos e Colecionadores (CACs) e a compra e venda de armas, munições e assessórios.
Esses processos feitos pelo Exército para atiradores esportivos estavam congelados desde janeiro do ano passado, logo após a publicação do primeiro decreto assinado pelo presidente Lula em seu terceiro mandato (a Polícia Federal concede autorizações de compra e posse de alguns tipos de armas). Lula revogou na ocasião todos os textos aprovados pelo ex-presidente Jair Bolsonaro, que desburocratizaram o acesso a armas de fogo pela população civil. Tecnicamente, o decreto não proibia a emissão de registros para atiradores esportivos e armas novas, mas na prática era isso o que acontecia.
O Exército, que é o responsável pelo Sistema Militar de Gerenciamento de Armas (Sigma), optou por suspender o atendimento para diversos serviços, entre eles as transferências de armas entre atiradores, a aquisição de armamentos de uso restrito e a emissão de novos certificados de registro (CRs) para pessoas físicas. O texto atual que regulamenta a atividade e destrava o setor era aguardado desde julho por clubes de tiro. Julho foi o mês da publicação do último decreto do governo (11.615/2023) sobre o tema.
Por ser uma das principais fontes de receita para os clubes, a suspensão dos CRs por um ano significou a demissão de mais de 43 mil funcionários e colaboradores e o fechamento de várias entidades pelo país, segundo estudo da Associação Brasileira de Importação de Armas e Materiais Bélicos (ABIAMB).
Para os clubes que conseguiram sobreviver a esse período conturbado, o momento é de esperança com a volta dos serviços. Ainda distante de um texto ideal, a portaria possibilita a retomada do setor, mesmo com uma série de restrições. Romildo Pereira Pires, dono do clube de tiro Caveira, em Natal, no Rio Grande do Norte, lembra que 2023 foi um ano difícil para o setor armamentista, principalmente por conta da paralisação dos serviços do Exército Brasileiro.
“Essa portaria, por mais limitante que seja, nos dá um vislumbre de futuro, de no mínimo atrair novos clientes para o esporte e dar um ânimo aos mais pessimistas que achavam que nossa atividade seria extinta”, desabafou.
Segundo Pires, até mesmo no Nordeste do país, onde a cultura do tiro esportivo é mais fraca, a expectativa é de que a procura pelos clubes cresça por conta da demanda reprimida. “Agora temos um fôlego para dar continuidade à nossa luta pelo esporte que tanto amamos e que é nosso meio de vida”, disse Pires.
Paulo Aguiar, proprietário do clube de tiro Patriotas do Brasil, em Planaltina de Goiás, lembra que as restrições impostas pelo governo Lula o obrigaram a cancelar eventos importantes ao longo do ano. “Entre esses eventos estava uma etapa do campeonato nacional de Handgun [armas curtas como revólveres e pistolas], o que geraria cerca de 100 empregos diretos e indiretos. Com essa nova portaria e a retomada da análise dos processos já sinto acender uma chama de esperança para 2024. Pelo menos voltamos a dormir com um pouco mais de tranquilidade”, comemorou o empresário goiano.
Com as novas regras publicadas na portaria, as vendas de armas, munições, insumos e acessórios devem voltar à normalidade, com a emissão de autorizações de compra de armas pelo SisGCorp (Sistema de Gestão Corporativo) do Exército. Outra novidade é que, a partir de janeiro, o Exército tem um prazo máximo de 90 dias para analisar esses pedidos de autorização ou avaliar a concessão de Certificados de Registro para novos atiradores.
Anteriormente, a entidade utilizava a norma geral dos processos públicos, que dava um prazo de 60 dias renováveis de acordo com as limitações do órgão. Na prática isso gerava grandes atrasos e algumas pessoas chegavam a ficar mais de um ano aguardando uma definição sobre seus pedidos de licença.
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O que muda nos Certificados de Registro
Os documentos conhecidos como CRs, que autorizam os cidadãos a praticar tiro esportivo e comprar armas e munições, passam a ter validade de 3 anos. Durante o governo do ex-presidente jair Bolsonaro (PL), a validade era de 10 anos.
Para os praticantes de tiro que já possuiam CRs antes de Lula assumir, a validade do documento começa a contar a partir de 21 de julho de 2023, data do último decreto do sobre o setor. Para novos atiradores, o prazo vale a partir da data de concessão do CR a partir do ano que vem.
Também mudou a validade do laudo de avaliação psicológica, que passa a ser de dois anos (o prazo anterior era um ano). O atirador também terá que confirmar anualmente seus dados cadastrais pela internet por meio do sistema SisGCorp. (Veja no fim do texto o que é preciso para tirar um CR pela nova portaria).
Clubes de Tiro também precisam de um tipo específico de CR para funcionar. A portaria nova regulamenta uma nova exigência estabelecida pelo decreto de julho: os clubes não podem funcionar a menos de um quilômetro (em linha reta) de uma escola ou instituição de ensino.
O presidente da Confederação Brasileira de Tiro Defensivo e Caça, Sérgio Bittancourt, afirmou que esse é um dos aspectos que mais trará problemas ao setor. "A portaria ainda precisa de alguns ajustes pontuais, que vamos tentar mudar ao longo do próximo ano. Um desses pontos absurdos, puramente ideológicos, é o da distância dos clubes para as escolas. Não foi feito nenhum estudo técnico que justificasse essa medida. Se isso não for derrubado, mais de 80% dos clubes do país vão fechar”, explicou.
A mesma opinião é compartilhada pelo presidente da Associação Nacional da Indústria de Armas e Munições e CEO da Taurus, uma das maiores fábricas do segmento no mundo, Salesio Nuhs. “Caso não consigamos discutir de forma política, vamos buscar de forma jurídica. Entendemos que a União não pode interferir no plano de zoneamento dos municípios”, afirmou o empresário em um comunicado divulgado pela associação para clubes de tiro neste ano. Salesio entende que a questão está definida no plano diretor de cada município.
Ao longo do ano, mais de 350 municípios brasileiros aprovaram leis específicas sobre o funcionamento dos clubes e lojas de armas. As decisões foram fundamentadas em um parecer do Supremo Tribunal Federal, emitido em maio de 2020, que afirma que a responsabilidade pelo zoneamento e funcionamento do comércio é de responsabilidade das câmaras municipais.
Portaria deve gerar dificuldades para revalidação futura de Certificados de Registro
Um novo gargalo de emissão de licenças deve se formar daqui a dois anos e meio, quando vencerá a validade de Certificados de Registro expedidos antes do governo Lula. Segundo estimativas de entidades do setor, hoje há cerca de 1,2 milhão de CRs ativos. Todos esses documentos vão vencer ao mesmo tempo no dia 21 de julho de 2026, possivelmente sobrecarregando o sistema.
Além disso há uma série de novas exigências para a revalidação dos CRs para atiradores esportivos baseadas em assiduidade em treinamentos e competições de tiro que vão dificultar a renovação.
Não será autorizada a revalidação para os atiradores desportivos que não comprovarem ter realizado oito treinamentos ou competições em clube de tiro, em eventos distintos, nos doze meses anteriores ao pedido, por cada calibre de arma que o atirador possuir.
Os novos atiradores podem comprar pelo menos quatro calibres diferentes de armas (esse numero aumenta para quem já é atirador há mais tempo). Se uma pessoa exercer esse direito de ter quatro armas de diferentes calibres, terá que comprovar a participação em 32 treinamentos ou competições ao longo de um ano. Isso tornará muito cara e difícil a manutenção de muitos armamentos.
O empresário da Taurus, Salesio Nuhs, também criticou a obrigatoriedade de número de treinamentos por calibre que, segundo ele, vai no sentido contrário ao principal discurso do governo Lula, que é tirar armas de circulação. “Aí o próprio governo obriga o atirador a sair de casa com quatro ou cinco armas para ir num clube num final de semana”, disse no comunicado.
A nova portaria também regulamentou a volta dos níveis entre os atletas do tiro, de acordo com a quantidade comprovada de participações em treinamentos e competições – as chamadas habitualidades. Regra similar valia durante o governo da ex-presidente Dilma Rousseff. A distinção, entre outros pontos, determina quantas armas, insumos e munições o CAC poderá adquirir durante o ano. Para isso foram criados três níveis.
Atiradores de nível 1 poderão comprar até quatro armas de uso permitido, como pistolas, revólveres e rifles de calibre 22, 380 e 38 e espingardas calibre 12. Eles poderão adquirir 4 mil cartuchos de munição por ano (8 mil no caso de calibre 22, que é um dos mais fracos do tiro esportivo). Atiradores nível 2 terão acesso a até oito armas de uso permitido e 10 mil cartuchos por ano (16 mil munições no caso de calibre 22).
Atiradores de nível 3, que já possuem registro há muitos anos, poderão ter até 16 armas, sendo quatro de uso restrito, inclusive fuzis. Eles terão permissão para comprar até 20 mil munições por ano (32 mil no caso de calibre 22).
Quanto custa e qual é a burocracia para ser atirador esportivo?
As regras do governo Lula para o licenciamento de atiradores esportivos visam tornar a atividade cada vez mais restritiva por causa da burocracia necessária e dos altos custos envolvidos.
A emissão de Certificado de Registro para CACs se destina a quem realmente quer praticar tiro e não para quem quer ter armas para defesa pessoal. No passado, a categoria de CAC foi muito procurada por quem apenas queria ter uma arma para defesa, porque o processo era menos burocrático e arbitrário que o sistema da Polícia Federal.
Apesar de um referendo realizado em 2005 ter refutado o Estatuto do Desarmamento no Brasil, os governos do Partido dos Trabalhadores vêm implementando políticas que restringem a liberdade dos cidadãos para decidir se querem ou não possuir armas de fogo, argumentando sem apresentar evidências concretas que as armas colaborariam para o aumento da violência.
Quando o decreto de desarmamento foi estabelecido em janeiro de 2023, a emissão de novos registros de CACs foram suspensas. Mas a Polícia Federal continuou emitindo autorizações de compra e posse de armamento para defesa pessoal, em casos específicos mediante comprovação de necessidade. Os portes de arma são concedidos apenas para casos extremamente específicos.
A partir de 10 de janeiro de 2024, cidadãos poderão requisitar ao Exército novos CRs, mas para isso terão que atender a uma extensa lista de requisitos e de apresentação de documentos. A emissão desses comprovantes, realização de exames e filiação obrigatória a um clube de tiro devem gerar custos altos. Em Brasília, o processo deve custar aproximadamente R$ 1.500 (apenas para a emissão do CR, sem a compra de armas). Em São Paulo o processo pode custar até R$ 5 mil, segundo preços apurados pela reportagem.
Confira abaixo os requisitos exigidos pela nova portaria para a emissão de Certificado de Registro para Caçador, Atirador Esportivo e Colecionador:
- Documento de identificação pessoal
- Certidão de Antecedentes Criminais (Nada Consta), por meio de certidões da Justiça Federal, Estadual (ou Distrital), Militar e Eleitoral. (Para comprovação da idoneidade, deverão ser apresentadas certidões negativas específicas, referentes aos locais de domicílio dos últimos cinco anos do interessado)
- Comprovante de ocupação lícita
- Comprovantes de residência fixa dos últimos cinco anos
- Declaração de endereço de guarda do acervo de armas
- Declaração de segurança do acervo
- Laudo de aptidão psicológica para o manuseio de arma de fogo
- Comprovante de capacidade técnica para o manuseio da arma de fogo
- Comprovante de filiação a entidade de tiro ou caça
- Comprovantes de pagamento de taxas