A vitória do libertário Javier Milei nas primárias da eleição Argentina acendeu um alerta no governo brasileiro. Caso seja o vencedor do pleito geral, em outubro, o argentino pode prejudicar os planos de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) para a América do Sul, principalmente em temas relacionados ao Mercado Comum do Sul (Mercosul) e à pauta ideológica do petista, já que ele tem posicionamento político oposto ao de Lula. Além disso, para a oposição brasileira, a vitória de Milei representa um sopro de esperança para a direita no continente e seria fundamental para reduzir o espaço da esquerda na política da região.
Para os especialistas ouvidos pela Gazeta do Povo, a relação entre Argentina e Brasil é a que menos seria alterada em um cenário de vitória de Milei nas eleições gerais, já que o país possui uma grande dependência financeira do Brasil. Porém, a agenda internacional comum entre os dois países poderia passar a ter mudanças, conforme analisa Rogério Pereira de Campos, doutor em Ciências Sociais e pesquisador da Fundação Araporã.
"Pautas envolvendo a União de Nações Sul-Americanas (Unasul) e o Mercado Comum do Sul (Mercosul) podem ser impactadas. Acredito que este seja o grande problema da relação entre os dois líderes. Mas não creio que haja uma grande ruptura entre os dois países, tendo em vista que a economia de ambos são interdependentes", pontua Campos.
A Unasul é uma coalizão de viés ideológico fundada em 2008 por oito países sul-americanos que eram liderados por presidentes de esquerda. Conforme o cenário político na região passou por mudanças, o bloco se fragilizou e sofreu uma ruptura. Sem sucesso, Lula tentou reativá-lo neste ano quando reuniu todos os presidentes da América do Sul em Brasília. A pauta não avançou, inclusive devido à participação do ditador venezuelano, Nicolás Maduro, no evento.
De acordo com Cezar Roedel, mestre em Relações Internacionais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e doutor em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), a proximidade de Lula com ditaduras é uma das grandes razões para sua perda de influência na América do Sul, e o motivo que pode afetar sua relação com Milei.
Para Roedel, o argentino se afastaria da "retórica lulista em criar uma moeda intra-bloco e questionaria o ideal de integração regional de Lula, que é puramente ideológico. O discurso de Milei é absolutamente contrário às ditaduras. Enxerga também a relativa fraqueza de líderes ocidentais perante a ameaça de Putin, possuindo uma visão clara em relação à guerra na Ucrânia, diferentemente de Lula".
Protagonismo de Lula na América do Sul pode ser enfraquecido com vitória de Milei
A aproximação de Lula com ditadores como Maduro e Daniel Ortega, da Nicarágua, já deixou o petista em situações desconfortáveis neste ano. Durante a Cúpula da América do Sul, em maio, quando tentou restabelecer a Unasul, Lula foi criticado por presidentes de direita e de esquerda ao dizer que a ditadura venezuelana "é uma narrativa".
As declarações do petista também geraram críticas entre seus aliados. “Não é uma questão de narrativa como disse o presidente Lula. É a realidade e é uma questão de direitos humanos”, disse o presidente do Chile, Gabriel Boric, que é de esquerda, à época.
Lula também defende que a Venezuela possa retomar seus compromissos no Mercosul e volte ao centro das discussões geopolíticas. O país enfrenta a ditadura de Maduro há 10 anos, autocrata acusado de crimes contra os direitos humanos, de manipular as eleições venezuelanas e de prender e torturar quem se opõe ao seu governo.
Além das declarações contraditórias sobre as ditaduras de esquerda na Venezuela, Nicarágua e na China, o presidente brasileiro também cometeu deslizes ao comentar sobre a guerra causada pela invasão da Rússia à Ucrânia. O petista chegou a dizer que a Ucrânia, país que foi invadido por tropas russas em fevereiro de 2022, era tão culpada pelo conflito quanto a nação invasora.
Ainda que a América do Sul seja majoritariamente liderada por presidentes de esquerda, a tendência é de que este cenário possa mudar nos próximos anos. Em paralelo a isso, a oposição de líderes da direita a Lula é constantemente endossada, como no caso do presidente do Uruguai, Luís Lacalle Pou, que já demonstrou insatisfação com a Unasul e com o Mercosul.
Lula aposta em estratégia "apartidária" para evitar maior desgaste na América do Sul
Enfrentando desgaste na América do Sul, o governo brasileiro pode evitar tomar partido nas eleições argentinas. Conforme apurou a Gazeta do Povo com membros do Ministério das Relações Exteriores, a eleição de Milei não é dada como concreta pelo governo brasileiro. Independentemente disso, Lula não deve tomar partido de nenhum candidato. Com isso, o petista não deve declarar apoio ao candidato peronista Sérgio Massa, o mais votado da coalizão de esquerda, mas que ficou em terceiro lugar nas prévias. Ele é o postulante ao cargo apoiado pelo atual presidente da Argentina, Alberto Fernández, que é aliado do chefe do Executivo brasileiro.
A estratégia do petista pode ser uma tentativa de não "afetar sua imagem" política na América do Sul e também de não atrelar o fracasso eleitoral do peronismo argentino à esquerda brasileira. Como Milei foi o vencedor das primárias, as chances do libertário chegar à presidência da Argentina aumentam, levando em consideração o histórico eleitoral no país.
Caso decidisse apoiar o candidato peronista e ele saísse derrotado nas eleições gerais, o petista poderia demonstrar "fraqueza" de influência política e ainda iniciar uma relação não amigável com o vencedor nas urnas.
A decisão de Alberto Fernández, atual presidente argentino, de não tentar se reeleger para um segundo mandato - motivada pela alta rejeição e o insucesso de sua gestão - foi uma das razões que motivou Lula em seus esforços para ajudar o “amigo”. Nos últimos meses, o petista chegou a dizer que “faria de tudo para ajudar a Argentina” a superar a grave crise econômica que o país enfrenta.
Entre as tentativas, o mandatário brasileiro anunciou a possibilidade de financiar a conclusão do Gasoduto Néstor Kirchner, na região de Vaca Muerta, por meio do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES); o fim do uso do dólar para negociações entre os dois países e a tentativa de uma eventual adesão da Argentina ao Banco dos BRICS – grupo formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul.
Tais estratégias, conforme afirmaram os especialistas acima, não são de interesse de Milei, que tem um posicionamento liberal. O candidato, inclusive, já se mostrou um entusiasta do dólar como solução para tirar a Argentina do sufoco econômico.
Sua principal proposta, se eleito, será a dolarização da Argentina. Segundo Milei, a medida irá controlar a inflação, por meio da erradicação do peso, colocando a moeda americana, que já é comercializada dentro do país, como a principal para negociações.
Mercosul pode ser ainda mais fragilizado com Milei no governo argentino
Além da relação política entre os países sul-americanos, o pesquisador da Fundação Araporã Rogério Pereira de Campos analisa que o Mercosul pode ser ainda mais fragilizado com Milei na presidência argentina. O cenário no bloco já não é um dos melhores e, com sua eleição, o Mercosul pode acabar ainda mais enfraquecido. Diferentemente do posicionamento adotado por Lula, o bloco não é uma das prioridades do candidato libertário argentino.
"Pelo programa de governo nacional apresentado pela Coalizão Avanza Libertad [partido de Milei], buscar-se-ia maior abertura comercial e, consequentemente maior competitividade. Neste sentido, certamente haveria questionamento sobre o Mercosul, que há décadas não passa por revisão, principalmente a Tarifa Externa Comum. A tendência seria a de se priorizar acordos comerciais bilaterais", avalia Cezar Roedel.
Atualmente, o bloco é formado por Argentina, Brasil, Uruguai e Paraguai. A aproximação de Lula de ditaduras e intenção de reintegrar a Venezuela ao bloco, tem causado insatisfação de outros líderes, como é o caso Pou, do Uruguai – que, ao lado do Paraguai, são os países de direita do Mercosul.
Recentemente, durante cerimônia em que o mandatário brasileiro assumiu a presidência do Mercosul, o uruguaio se recusou a assinar a declaração conjunta e ameaçou deixar o bloco para fechar um acordo bilateral com a China – que, caso seja concretizado, pode por um fim no acordo de livre comércio Mercosul-União Europeia.
Desde que assumiu para o seu terceiro mandato, Lula tem tentado tirar o acordo de livre comércio com a União Europeia do papel, mas não teve sucesso. O libertário argentino, contudo, pode apoiar ideias de Pou e fortalecer a oposição ao bloco.
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