Uma proposta de emenda à Constituição (PEC) no Congresso pretende mudar a lei para garantir a prisão após condenação em segunda instância, mas o projeto pode esbarrar em um detalhe técnico: há quem considere o artigo que a PEC quer alterar uma cláusula pétrea, ou seja, um dispositivo da Constituição que não pode ser modificado.
Na próxima quinta-feira (7), o Supremo Tribunal Federal (STF) retoma o julgamento sobre a validade da prisão em segunda instância. Os ministros vão decidir se a Constituição permite a prisão para cumprimento da pena após uma condenação em segundo grau, ou seja, antes do fim definitivo do processo na Justiça. O placar está em 4 a 3 a favor da prisão, mas o resultado final pode ser contrário à prisão antecipada.
A PEC em tramitação na Câmara é de autoria do deputado federal Alex Manente (Cidadania-SP). A proposta altera o artigo 5.º da Constituição, inciso LVII, que atualmente prevê que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.
Pelo texto sugerido por Manete, o dispositivo passaria a dizer que “ninguém será considerado culpado até a confirmação de sentença penal condenatória em grau de recurso”. A PEC foi colocada para tramitar na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) na mesma semana em que o STF anunciou o julgamento sobre prisão em segunda instância.
Afinal, o que é cláusula pétrea
Cláusulas pétreas são dispositivos da Constituição que não podem ser alterados, nem pelo Congresso Nacional. A própria Constituição define quais são esses dispositivos, no artigo 60, parágrafo 4.º, que determina que “não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: a forma federativa de Estado; o voto direto, secreto, universal e periódico; a separação dos Poderes; e os direitos e garantias individuais”.
Os direitos e garantias individuais estão previstos no artigo 5.º da Constituição, justamente onde está a previsão do princípio de inocência que a PEC em tramitação na CCJ quer alterar. Acontece que, para alguns juristas, todo o artigo 5.º da Constituição é considerado cláusula pétrea, enquanto para outros, apenas os princípios previstos ali são imutáveis, mas o texto pode ser ajustado.
Há quem diga que prisão em 2.ª instância não fere cláusula pétrea...
Na própria CCJ, uma parte dos deputados já alertou que a PEC não pode ser aprovada por ferir uma cláusula pétrea da Constituição. Na semana passada, a comissão realizou uma audiência pública para debater a proposta e o tema foi abordado pelos especialistas convidados pelos deputados.
Para o procurador do Distrito Federal, Jorge Galvão, a PEC da prisão em segunda instância não altera uma cláusula pétrea da Constituição. “Não vejo, a priori, qualquer tipo de inconstitucionalidade ou violação à cláusula pétrea. A alteração de redação não é violação de cláusula pétrea, desde que você não desnature a própria identidade constitucional”, disse o procurador.
“Essa PEC não me parece algo que vá ferir a Constituição”, concordou o chefe da assessoria especial de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça e Segurança Pública, Vladimir Passos de Freitas.
O autor da PEC também acredita que a mudança não esbarra na proibição da Constituição em alterar cláusulas pétreas. “A cláusula pétrea nós estamos garantindo na nossa emenda constitucional, no momento em que não estamos mudando a presunção de inocência, que é o princípio constitucional”, explica Manete. “Nós estamos modificando o momento em que começa a ser cumprida a sua condenação. A presunção de inocência está sacramentada na Constituição, não estamos mexendo, mas não por isso precisamos esperar o trânsito em julgado para iniciar o cumprimento de pena”, completa.
A relatora da PEC na CCJ é a deputada Caroline de Toni (PSL-SC). Em seu parecer, ela também enfrentou a questão. “A incessante tensão entre o longo tempo de vigência do texto constitucional e a preservação ideal do seu projeto original é suficiente para deduzir que a proteção oferecida pelas cláusulas pétreas não deve ser rígida a ponto de impedir qualquer reformulação das normas constitucionais amparadas por essa pretensão de eternidade, mesmo se essa providência implicar, de algum modo, a diminuição do respectivo alcance normativo, desde que para preservar e fortalecer a ordem constitucional como um todo orgânico, uma unidade sistêmica”, escreveu a parlamentar em seu relatório, defendendo a prisão em segunda instância.
Coordenador da força-tarefa da Lava Jato no Ministério Público Federal (MPF) em Curitiba, o procurador Deltan Dallagnol também defendeu a mudança constitucional no final de outubro. Em uma palestra realizada no 7.º Congresso de Direito Constitucional em Santo André, na região do ABC paulista, ele afirmou que “nenhum princípio da Constituição é absoluto”.
… e há quem diga que a presunção de inocência não pode ser relativizada por PEC
Mas também há quem defenda que o tema não poderia estar sendo discutido na CCJ, por ser, sim, cláusula pétrea. “Nós entendemos que este texto não pode ser alterado, sob pena de alterar a essência dessa garantia fundamental, de violar a Constituição”, disse na audiência pública o vice-presidente da OAB, Luiz Viana Queiroz.
“A violação da Constituição é evidente. A emenda desfigura completamente a presunção de inocência, retirando dela a proteção que o legislador constituinte concedeu, alterando o que não pode ser alterado. O direito individual previsto no artigo 5.º, LVII, que é o de não ser considerado culpado antes do trânsito em julgado, simplesmente é eliminado, é suprimido, é abolido”, argumentou o juiz Marcelo Semer, do Tribunal de Justiça de São Paulo.
Semer rebateu a fala de Deltan, sem citar o nome do procurador. “Tem se dito por aí, para justificar uma interpretação caolha, que não há princípio absoluto, mas esse é um equívoco grosseiro. A começar pelo fato de que no caso tem-se a eliminação de uma cláusula pétrea, que não é chamada assim à toa”, disse o juiz. “Não por outro motivo que, depois de 30 anos, jamais foi objeto de supressão qualquer inciso ou alínea do artigo 5.º. Não é que não possa ser alterada a regra que visa abolir direitos e garantias individuais, ela não pode ser, segundo a Constituição, objeto de deliberação, não pode ser votada”, defendeu o magistrado.
Para o presidente do Conselho Fundador da Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst), Flávio Pansieri, o inciso LVII do artigo 5.º não pode ser alterado pela PEC. “Todos os dispositivos do artigo 5.º são cláusula pétrea”, disse em entrevista à Gazeta do Povo. “Não tem interpretação possível sobre isso”, garantiu Pansieri.
Dois ministros do STF também já disseram que a prisão em segunda instância não pode ser permitida por ferir uma cláusula pétrea da Constituição. O primeiro foi o ministro Marco Aurélio, relator do julgamento em andamento sobre o tema no Supremo. Ao votar, Marco Aurélio afirmou que é necessário repetir “à exaustão” que o inciso LVII do artigo 5.º não pode ser alterado.
“Nem mesmo o poder constituinte derivado [o Congresso] está autorizado a restringir”, disse o relator. “Uma PEC esbarraria no artigo 60 da Constituição Federal”, afirmou Marco Aurélio no julgamento.
O ministro Ricardo Lewandowski também defendeu que a presunção de inocência é cláusula pétrea e que é um “antídoto contra volta de regimes ditatoriais” como o de 1964. Os dois votaram contra a prisão em segunda instância, ao lado da ministra Rosa Weber.
Alternativas para garantir prisão em 2.ª instância
No Legislativo, há pelo menos duas alternativas sendo gestadas que podem garantir a prisão em segunda instância sem alterar o inciso LVII do artigo 5.º da Constituição. Uma delas foi proposta em 2011, pelo então presidente do STF, Cezar Peluso.
A PEC dos Recursos, como ficou conhecida a proposta de Peluso, estabelece o final do processo após duas decisões judiciais. Para isso, altera os artigos 102 e 105 da Constituição, que estabelecem os recursos que podem ser julgados pelo STF e pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ).
Pela PEC proposta por Peluso, os recursos ao STF e ao STJ não impedirão a execução imediata das decisões dos tribunais estaduais e regionais. Os recursos continuam existindo, mas serão tratados como processos novos, sem interromper a conclusão dos processos originais, que levaram à condenação. A PEC chegou a tramitar no Senado, mas acabou arquivada em 2018, no final da legislatura.
Outra alternativa está sendo costurada por deputados na Câmara. Os parlamentares estudam propor uma PEC que altera o inciso LXI do artigo 5.º da Constituição. O dispositivo estabelece que “ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei”.
O que os deputados estudam é acrescentar a esse dispositivo a prisão em segunda instância. Assim, o inciso que trata da presunção de inocência, um princípio constitucional, ficaria mantido. Esse grupo de deputados considera que o artigo 5.º não é todo cláusula pétrea, apenas os princípios que ele prevê.
Toffoli também fez sugestão
O presidente do STF, Dias Toffoli, enviou recentemente uma proposta ao Congresso que altera as regras para prescrição de crimes. A proposta de Toffoli suspende a prescrição até o fim do julgamento de recursos nos tribunais superiores.
O presidente do STF propõe alterar o Código Penal e determinar que "enquanto pendente de julgamento os recursos especial [no STJ] ou extraordinário [no STF] ou os respectivos agravos", o prazo de prescrição ficará "congelado". Na prática, a proposta suspende o cálculo da prescrição, que deixaria de ser contado, após condenação em segunda instância, enquanto o processo aguarda julgamento de recursos no STJ e no STF.
A proposta seria uma alternativa para evitar a impunidade, caso o Supremo proíba a prisão em segunda instância.
O julgamento do STF sobre prisão em 2ª instância
O STF vai retomar o julgamento sobre prisão após condenação em segunda instância nesta quinta-feira (7). Por enquanto, o placar está em 4 a 3 a favor da prisão, mas o placar ainda pode ser revertido.
Já votaram a favor da prisão os ministros Alexandre de Moraes, Edson Fachin, Luís Roberto Barroso e Luiz Fux. Contra a prisão votaram os ministros Marco Aurélio, Rosa Weber e Ricardo Lewandowski.
Ainda faltam os votos dos ministros Carmen Lúcia, Gilmar Mendes, Celso de Mello e do presidente, Dias Toffoli. A tendência é que o julgamento chegue empatado às mãos de Toffoli, que é o último a votar. Historicamente, o presidente do STF é contra a prisão em segunda instância, mas deu a entender que pode mudar o voto nesta semana.