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O governo começou a revisar políticas sociais consideradas ineficientes para dar lugar ao Renda Brasil, um programa de renda básica permanente que deve substituir o auxílio emergencial. O auxílio será prorrogado por mais dois meses e, nesse meio tempo, o governo vai verificar o que se gasta com programas mal focalizados – ou seja, que custam muito caro mas não chegam necessariamente aos mais pobres – e direcionar os recursos para lançar o Renda Brasil.
O Renda Brasil, conforme explicou nesta terça-feira (30) o ministro da Economia, Paulo Guedes, vai ser focado nos brasileiros que hoje recebem o Bolsa Família e também em parte das pessoas que estão recebendo o auxílio emergencial, principalmente aquelas de baixa renda e sem emprego, que precisam de ajuda do governo, mas não se enquadravam nos critérios do Bolsa Família.
Para criar o novo programa, o governo vai precisar abrir espaço Orçamento para bancá-lo, pois não há condições fiscais para criar uma nova política social sem uma revisão das atuais despesas. Esse espaço deverá ser aberto com a incorporação do Bolsa Família ao Renda Brasil, e também com a revisão de programas ineficientes.
Entre os programas que estão na mira da equipe econômica estão o abono salarial, o seguro-defeso, o Farmácia Popular e o salário-família, segundo apurou a reportagem. O governo estuda propor a extinção ou a redução dessas políticas em troca da criação do Renda Brasil.
Em entrevista à Gazeta do Povo, o secretário demissionário do Tesouro Nacional, Mansueto Almeida, afirmou que a crise causada pela pandemia do novo coronavírus jogou luz ao que o ministro Paulo Guedes (Economia) costuma chamar de “40 milhões de invisíveis”, que são as pessoas de baixa renda que vivem na informalidade. Durante a pandemia, a situação desses invisíveis foi contornada com o auxílio emergencial de R$ 600, mas depois o governo precisará pensar em políticas permanentes para redução da desigualdade e da pobreza, explicou.
"O Brasil gasta com o social muito perto do que gasta um país rico da Europa, mas o efeito distributivo é muito pequeno. Porque muito do que se gasta com social não tem efeito distributivo. Então acho que a gente vai ter um debate positivo necessário sobre como melhorar o gasto social para de fato atingir as pessoas de baixa renda”, afirmou o secretário, que deixa o cargo em 31 de julho.
Abono salarial
Mansueto citou o abono salarial como exemplo de programa mal focalizado que está na mira da equipe econômica. “O abono é um 14.º salário pra quem ganha, mas não tem efeito distributivo. Se os R$ 17 bilhões que você gasta com o abono fossem utilizados integralmente no Bolsa Família, você poderia aumentar o Bolsa Família em mais de 50%, e o efeito distributivo seria maior.”
O abono salarial é pago a quem tenha trabalhado no mínimo 30 dias no ano e recebido remuneração mensal de até dois salários mínimos durante o ano. O valor do benefício é proporcional aos meses trabalhados, iniciando em R$ 88 para quem trabalhou um mês e chegando a até R$ 1.045 (um salário mínimo) para quem trabalhou o ano inteiro. A política está prevista na Constituição e foi regulamentada em 1990.
A previsão é gastar R$ 19,1 bilhões em 2020 com o pagamento do abono a 23,4 milhões de pessoas. No ano que vem, a estimativa é gastar R$ 20 bilhões com 23,7 milhões de pessoas.
Segundo estudo divulgado pelo Tesouro Nacional em dezembro do ano passado, o abono salarial está beneficiando principalmente a camada menos pobre da população. Primeiro, em decorrência da própria regra do benefício, que não olha para a renda familiar, e sim para o salário médio recebido pelo trabalhador. “O filho de milionário que esteja no primeiro emprego e receba entre 1 e 1,5 salário mínimo pode ter direito a abono. É a regra do benefício”, criticou Mansueto em coletiva ao divulgar o estudo.
A secretaria calculou que 58,3% dos recursos do abono salarial pagos em 2017 foram destinados aos 50% menos pobres da população, que ganham mais de R$ 1.220 mensais, segundo critérios da época do IBGE. Entre 1997 e 2017, a fatia paga aos 30% mais pobres da população caiu de 24% para 17%, evidenciando uma piora da focalização do abono nos últimos 20 anos, na avaliação do Tesouro.
Outro motivo para isso seria a própria valorização do salário mínimo, ao qual está atrelada à faixa para ter direito ao benefício (até dois salários mínimos, ou seja, R$ 2.090). “Para fins comparativos, o salário mínimo em 1997 atualizado pela inflação corresponderia a menos da metade (aproximadamente 45%) do salário mínimo atual”, explica o Tesouro.
O governo tentou, durante a reforma da Previdência, tornar o abono salarial mais bem focalizado. A equipe econômica propôs que só trabalhadores que recebessem até um salário mínimo tivessem direito ao benefício. Na Câmara, os deputados não concordaram com o teto e propuseram um novo valor: receber até R$ 1.364,43 por mês.
Só que, durante a votação no Senado, os congressistas entenderam que o ideal era manter o teto atual, de dois salários mínimos, e impuseram uma grande derrota ao governo, desidratando a reforma em R$ 76 bilhões – essa era a economia prevista em dez anos com o teto proposto pela Câmara.
O Tesouro estima que, caso não haja alterações nas regras do abono, a despesa com o benefício terá um crescimento real de 41,6% (cerca de 2,9% ao ano) no período 2018-2030. Até 2022, a despesa cresceria em velocidade similar à inflação, dada a hipótese de ausência de reajuste real do salário mínimo no período. A partir de 2023, o crescimento se tornaria mais rápido que o crescimento nominal do PIB, devido a um possível reajuste real do salário mínimo e a uma provável expansão do número de trabalhadores com carteira assinada decorrente da recuperação da economia.
Seguro-defeso
Além do abono salarial, o seguro-defeso está na mira da equipe econômica. O seguro é pago a pescadores artesanais durante o período de reprodução dos peixes, época em que a pesca é proibida. O valor do benefício é de um salário mínimo (R$ 1.045) e o dinheiro é pago durante o período de vedação à pesca. O governo deve gastar cerca de R$ 3 bilhões com o auxílio em 2020.
Estudo da Secretaria de Avaliação, Planejamento, Energia e Loteria do Ministério da Economia (Secap/ME), divulgado em agosto de 2019, encontrou diversos problemas na execução dessa política pública. Entre eles, a falta de produção de dados sobre pesca há mais de dez anos, a falta de articulação entre União e estados para fiscalização da atividade, períodos de proibição de pesca sem revisão e indícios de pagamento do benefício a indivíduos não elegíveis.
Segundo a Secap, o número de beneficiários do seguro-defeso deu um salto em torno de 16% ao ano entre 1998 e 2018, o que fez com que despesa da política saltasse de R$ 13 milhões para R$ 2,54 bilhões no período, um aumento de 29% ao ano, em média. Para a secretaria, os números são resultado da flexibilização dos requisitos de elegibilidade ao benefício, considerados como de fácil acesso e de difícil verificação.
A secretaria alerta que muitos dos atuais beneficiários podem, na verdade, não serem elegíveis de fato para o programa, mas continuam recebendo o auxílio pela falta de fiscalização. Em 2018, por exemplo, o número de beneficiários do seguro-defeso foi mais do que o dobro da quantidade de pescadores artesanais identificados pelo IBGE no país. Além disso, segundo dados da Controladoria-Geral da União (CGU), mais da metade dos beneficiários fiscalizados não obtêm renda exclusivamente da pesca, um dos requisitos para recebimento do seguro.
Farmácia Popular
Outro benefício considerado mal focalizado pela equipe econômica é o Farmácia Popular. Administrado pelo Ministério da Saúde, o programa permite que a população tenha acesso a medicamentos considerados essenciais a um baixo custo, já que o valor é subsidiado pelo governo.
Os medicamentos para o tratamento de hipertensão, diabetes e asma podem ser obtidos gratuitamente pelo paciente. Basta comparecer a uma farmácia credenciada e apresentar documento oficial com foto, número do CPF e receita médica válida.
O preço dos demais medicamentos credenciados pelo Farmácia Popular, como para dislipidemia (colesterol), rinite, doença de Parkinson, osteoporose, glaucoma e anticoncepcionais, assim como as fraldas geriátricas, é subsidiado em até 90% pelo governo, e o paciente paga somente o restante do valor.
O programa é considerado mal focalizado pela equipe econômica porque não estabelece um limite de renda para a pessoa ter acesso ao medicamento mais barato. A política deve custar os cofres públicos neste ano cerca de R$ 2,5 bilhões.
Salário-família
O salário-família também deve ser revisto para dar lugar ao Renda Brasil. O benefício é pago ao trabalhador de baixa renda que possui filhos menores de 14 anos ou filhos inválidos de qualquer idade. Para ter direito ao benefício, a renda do trabalhador não pode ultrapassar R$ 1.425,56 em 2020. O auxílio é de R$ 48,62 por filho menor de 14 anos ou inválido.
A estimativa é que o governo gaste R$ 2 bilhões neste ano com o auxílio. Apesar de ter uma faixa limite de renda, a equipe econômica entende que o benefício é mal focalizado porque somente trabalhadores assalariados podem requerer o auxílio, e os assalariados já contam com outras formas mais eficientes de proteção social.
Como deve ser o Renda Brasil
Além de unificar programas sociais considerados ineficientes, o Renda Brasil deve incorporar também o Bolsa Família, segundo informações preliminares divulgadas pelo ministro Paulo Guedes (Economia). O Bolsa Família é considerado um programa social bem focalizado, mas a intenção do governo Bolsonaro é ampliá-lo para o Renda Brasil.
O programa social do governo Bolsonaro deve mexer ainda com a revisão de isenções e deduções tributárias. O objetivo é obter mais fontes de receita para bancar o seu custo, além do remanejamento das despesas dos programas ineficientes. Os detalhes ainda estão sendo estudados pela equipe econômica e pelo Ministério da Cidadania. O programa deve ser lançado dentro 60 a 90 dias, disse Guedes.