Os projetos de lei apresentados na semana passada pelo ministro da Justiça, Flávio Dino, para coibir tentativas de “destruição do Estado Democrático de Direito” tendem a ameaçar a oposição política atual governo e reproduzir, em larga escala, excessos que vêm sendo cometidos contra a direita, nos últimos anos, pelo Supremo Tribunal Federal. Penas maiores, definições abertas de novos crimes e permissão para bloqueios de bens e perda de mandatos de forma sumária são as maiores preocupações entre criminalistas consultados pela Gazeta do Povo.
Gestadas nos primeiros meses do ano, após a depredação das sedes dos Poderes em 8 de janeiro, as propostas foram anunciadas uma semana após o entrevero entre o ministro Alexandre de Moraes e um grupo de brasileiros no aeroporto de Roma. Na versão de Moraes, uma família o teria xingado e agredido seu filho; já a família afirmou que houve excesso do filho do ministro e que a confusão se deu por causa do acesso à sala VIP do local; para Dino, houve tentativa de impedir ou restringir o exercício do Poder Judiciário.
Essa conduta, caso configurada, caracteriza o crime de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, com pena de 4 a 8 anos de prisão. A tentativa de depor, por meio de violência ou grave ameaça, o governo legitimamente constituído, como se aponta no 8 de janeiro, constitui o crime de golpe de Estado, punido com 4 a 12 anos de prisão. Esses e outros crimes foram inseridos no Código Penal em 2021 em substituição à antiga Lei de Segurança Nacional, de 1983.
A proposta de Dino pretende incluir na lei o delito de incitação e financiamento a esses crimes, com penas que podem chegar a 4 e 12 anos, respectivamente. Ele propôs também criar um crime, de “tentar impedir o livre exercício das funções” de autoridades específicas, “mediante violência ou grave ameaça”. Valeria para presidente da República, vice-presidente, ministros do governo, presidentes do Senado e da Câmara, ministros do STF e procurador-geral da República. A pena seria de 4 a 8 anos de prisão.
Caso a pessoa condenada seja um político, perde o mandato e fica impedido de ocupar cargo público por 8 anos após o fim da pena. Se for uma pessoa comum, fica impedido de ser contratado pelo Poder Público, ou receber qualquer benefícios estatais, por até 5 anos após a sentença definitiva. Se for sócia de uma empresa, a pessoa poderá ser suspensa da sociedade.
No segundo projeto, Dino propôs que, antes da condenação, caso haja “indícios suficientes” de autoria ou de financiamento de crimes contra o Estado Democrático, o juiz seja autorizado, por iniciativa própria ou a pedido do Ministério Público ou polícia, a bloquear bens e contas bancárias da pessoa investigada, dos ativos de sua empresa e até de “interpostas pessoas”.
Especialistas consultados pela reportagem veem vários perigos.
André Marsiglia, advogado que milita em defesa da liberdade de expressão, considera que o pacote atinge em cheio os críticos do governo e a oposição. “Esse projeto delega ao Judiciário um poder absurdo, de fazer com que os parlamentares fiquem reféns da possibilidade de, a todo tempo e a qualquer hora, perderem o seu mandato, não mais apenas pelo TSE, mas pelo próprio Supremo, porque para os parlamentares federais há prerrogativa de foro. A ideia é constranger a oposição”, diz.
Ele nota que a proposta diz que, após a condenação, esse efeito será “automático”. “Quer dizer que o juiz pode deferir isso liminarmente? Que não precisa aguardar o trânsito em julgado? Não há nem clareza aqui do que isso significa na prática.”
Outro impacto importante, segundo ele, se dá sobre a livre iniciativa, nos dispositivos que permitem bloquear ativos de uma empresa ou destituir um sócio investigado ou condenado por atos antidemocráticos.
“Não será punida dessa forma severa apenas a pessoa que cometer esses crimes com grave violência, mas as pessoas que incitarem por qualquer meio – leia-se imprensa e internet – esses crimes. Então a crítica pode ser lida como incitação e as pessoas podem perder seus cargos, podem perder as suas empresas, e estarão reféns, portanto, da impossibilidade de criticar o governo ou as autoridades públicas. Isso aqui é absolutamente inconstitucional”.
Para a doutora e professora em direito penal Janaina Paschoal, a possibilidade de confiscar bens das pessoas, antes mesmo de uma condenação, é o ponto mais grave do pacote. “Não há nenhuma exigência de correlação com o crime ou proporcionalidade da medida. Vão alcançar os bens das empresas e familiares. Qualquer comportamento, o Estado tira tudo que uma pessoa tem. Vão começar a tirar o patrimônio dos críticos, tratando críticas como ataques. Imagine isso ocorrendo nas mais diversas comarcas, contra os mais diversos críticos”, diz.
As definições abertas e abrangentes da proposta são uma preocupação especial, principalmente pelos precedentes abertos pelo STF nos últimos anos em sua aplicação. Delegado aposentado, mestre e professor de direito penal, Eduardo Cabette reconhece que restrições à liberdade de expressão são legítimas quando o direito é usado para caluniar, difamar e injuriar pessoas, autoridades ou não.
“O problema dessas legislações está na redação desses tipos penais, que são muito abertos. Eles têm muitas expressões que não são bem definidas, como ‘atos antidemocráticos’, ‘movimentos antidemocráticos’, ‘qualquer atentado’. Essas coisas fazem com que, por exemplo, se enquadre uma mera discussão de aeroporto numa legislação que diz respeito a atentados contra o Estado Democrático, contra a estabilidade da democracia, do próprio Estado brasileiro. Não é o caso”, diz.
“Se eu ou um político dizer que, se um ministro do STF não agir corretamente, não cumprir a lei, vamos entrar com um pedido de impeachment contra ele, isso será uma ‘ameaça’?”, exemplifica. Ele nota uma contradição da esquerda, que sempre criticou a antiga Lei de Segurança Nacional, mas agora tenta repeti-la numa legislação “mil vezes mais autoritária”, “fazendo um uso retórico da palavra democracia como uma desculpa, um pretexto para todo tipo de abuso das regras, dos princípios do direito penal, do processo penal”.
A eventual aprovação da proposta, segundo ele, poderá criar um efeito cascata por todo o Judiciário. “Seria muito importante que o próprio Judiciário, o Ministério Público e a polícia tivessem consciência de que devem aplicar essas legislações com grano salis, com muito cuidado, apenas nos casos muito graves. Mas isso está difícil porque você tem uma contaminação hierárquica que vem lá de cima do STF, do STJ e desce, escorre até a base da pirâmide das autoridades, pegando promotores, delegados, juízes de primeiro grau. Então, essas interpretações muito amplas acabam sendo acatadas e repetidas por todas as autoridades. É preciso haver uma conscientização de que isso tem que parar”, alerta.
Para ele, uma proposta mais razoável seria no sentido de definir melhor os crimes e, além disso, retirá-los do Código Penal, deixando-os numa lei à parte, para deixar claro que seria aplicada apenas em casos especiais. Medidas como bloqueio de bens e busca e apreensão, ademais, já estão previstas na atual legislação, mas são, em regra, aplicadas quando há indícios suficientes de autoria e materialidade de um crime, além de justa causa.
Por fim, Cabette também vê um excesso nas penas maiores propostas. “Aumento de penas, da reprimenda, não resolve os problemas. Se as pessoas querem que esse clima de revanchismo, de conflito, melhore, qual o melhor caminho? Não é mudar a lei, é pegar as leis que nós temos e agir sempre, em todos os casos, dentro da lei, cumprir a Constituição, o Código Civil, o Código Penal, o Código de Processo Penal, o Código de Processo Civil, cumprir de maneira igual para todos. Reconhecer os direitos de todas as pessoas, não importa de que espectro político, de direita, esquerda, centro. Uma falsa solução, que vem através de repressão, não vai funcionar. Só vai aumentar a pressão, a conflituosidade. E vai gerar uma série de abusos, uma série de injustiças”, diz.
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