A Câmara dos Deputados deve votar nos próximos dias o projeto que cria o Código de Processo Eleitoral. O texto traz diversas normas que podem entrar em vigor já para as eleições de 2022. A relatora da proposta, deputada Margarete Coelho (PP-PI), incluiu um dispositivo que prevê a tipificação do crime de caixa 2 em campanhas eleitorais – o que hoje não existe. Mas, segundo especialistas ouvidos pela Gazeta do Povo, o texto, da forma como foi construído, abre brecha para a impunidade por caixa 2.
Atualmente, não existe na legislação brasileira a tipificação de caixa 2. Ainda assim, a Justiça Eleitoral costuma enquadrar esses casos como crime de falsidade ideológica, que tem pena que varia de dois a cinco anos de prisão e pagamento de multa. A falsidade ideológica é caracterizada porque o candidato deixa de prestar contas adequadamente, fraudando a documentação apresentada à Justiça Eleitoral.
Durante a Lava Jato, o caixa 2 também passou a ser enquadrado, em algumas situações, como corrupção passiva (no caso do candidato que recebeu o valor em troca de alguma ação futura) e corrupção ativa (a empresa ou pessoa que financiou o candidato ilegalmente para obter benefícios públicos). A pena da corrupção ativa e passiva varia de dois a 12 anos de prisão, além de multa.
De acordo com o último parecer do Código de Processo Eleitoral apresentado pela relatora, fica tipificado o crime de caixa 2. O texto define o crime como “doar, receber, ter em depósito ou utilizar, de qualquer modo, nas campanhas eleitorais ou para fins de campanha eleitoral, recursos financeiros fora das hipóteses da legislação eleitoral”.
A pena prevista vai de dois a cinco anos de prisão e multa – a mesma punição prevista para o caso de falsidade ideológica, mas menor do que no caso de corrupção. O texto de Margarete Coelho prevê que a Justiça poderá deixar de aplicar a pena se a omissão ou irregularidade na prestação de contas for de pequeno valor.
Além disso, o projeto prevê que possa ser firmado pelo candidato que praticou caixa 2 um acordo de persecução penal. Ou seja, ele pode negociar com o Ministério Público que não seja processado pelo crime, em troca de alguma reparação.
Caso o projeto seja aprovado sem alterações nos plenários da Câmara e do Senado e sancionado pelo presidente Jair Bolsonaro até o começo de outubro deste ano, a mudança já entrará em vigor para 2022 – mudanças legais nas regras eleitorais têm de ser aprovadas pelo menos um ano antes das eleições, por determinação da lei.
Especialistas dizem que impunidade vai aumentar
A Gazeta do Povo ouviu especialistas para analisar a tipificação do crime de caixa 2 eleitoral que consta do projeto do Código de Processo Eleitoral. Eles dizem que seria positivo definir exatamente o que constitui o crime. Mas também afirmam que o texto em discussão na Câmara abre brecha para a impunidade. E isso ocorre, dentre outros motivos, porque o projeto afrouxa uma série de outros mecanismos de fiscalização de candidatos e partidos.
Advogada e cofundadora do Instituto Não Aceito Corrupção, Monica Rosenberg afirma que, apesar da tipificação do caixa 2 ser positiva, o texto vai dificultar a punição do crime. "A verdade é que esse crime já vinha sendo punido e a legislação era suficiente. No entanto, é melhor quando é tipificado. Mas o que falta é certeza de punição", diz ela.
De acordo com a advogada, apesar da tipificação, os congressistas estão inviabilizando a punição no mesmo projeto. "Eles dificultaram a punição desse crime. Eles reduziram a transparência [de candidatos e partidos] e reduziram os mecanismos de fiscalização [da Justiça Eleitoral]", diz Monica Rosenberg. "Por isso vai ser mais difícil identificar [o caixa 2]."
Lucas Fernandes, consultor político da BMJ Consultores Associados, também acredita que a proposta é ruim por enfraquecer a Justiça Eleitoral. "A gente está discutindo um Código muito problemático. Vamos ver os deputados defendendo a aprovação como se ele fosse bom. Mas na verdade não é. Esse pacote vai favorecer a impunidade. Apesar de tipificar o crime de caixa dois, eles estão reduzindo os mecanismos de fiscalização da Justiça Eleitoral", diz Fernandes.
Um dos dos trechos do projeto prevê, por exemplo, que as contas dos partidos sejam auditadas por empresas privadas. Essa empresas então enviariam um relatório à Justiça Eleitoral – que hoje é a única responsável por fazer a análise das contas. Para os especialistas, isso fragiliza a fiscalização pública.
O projeto também permite que o Congresso possa sustar atos normativos da Justiça Eleitoral, caso considerem a norma abusiva. Hoje, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) é responsável por regulamentar a legislação eleitoral, o que inclui regras para uso de dinheiro nas eleições.
O consultor Lucas Fernandes também vê problemas na possibilidade, prevista no projeto, de não haver punição se o valor do caixa 2 for pequeno. "A gente tem uma redação que diz que a Justiça poderá deixar de aplicar a pena para os casos de caixa 2 se a omissão ou irregularidade na prestação de contas for de pequeno valor. Como é que se vai definir um valor pequeno para ser considerado caixa 2 ou não? O conjunto da obra é bem negativo, tanto de punição, quanto para a transparência."
O movimento Freio na Reforma, constituído por uma série de entidades da sociedade civil, também vê problemas no acordo de não persecução penal. Esse dispositivo do projeto foi classificado como um dos retrocessos da proposta do novo Código Eleitoral.
A advogada Monica Rosenberg também vê problemas: "Facilitaram o acordo [de não persecução penal no caso de caixa 2]. O infrator vai fazer um acordo e não vai ser punido".
Para ela, o crime de caixa dois tem enfraquecido a democracia no Brasil. "Ele subverte a democracia. Quem tem poder econômico compra o mandato. A gente tem no Brasil as chamadas bancada da série B. Essas bancadas são formadas pelo financiamento não declarado das campanhas e elas são muito nocivas para a democracia."
Tipificação do caixa 2 é necessária, apesar dos problemas do projeto
Apesar dos problemas no projeto do Código Eleitoral, a tipificação do caixa 2 eleitoral como crime é vista como algo necessário. Uma das razões seria para dar segurança jurídica para que a Justiça possa punir esse tipo de delito sem que o acusado argumente em outras instâncias que sua condenação foi ilegal.
Em um manifesto, o movimento Freio na Reforma explica esse entendimento: "A proposta do Novo Código Eleitoral introduz a necessária criminalização do caixa dois eleitoral. Na legislação em vigor, o caixa dois eleitoral não tem um tipo penal específico, sendo equiparado ao delito de falsidade ideológica previsto no artigo 350 do atual Código Eleitoral, construção que para alguns é hipótese que fere o princípio da tipicidade penal. Assim, a tipificação do caixa dois eleitoral representa avanço importante na legislação, criminalizando de forma específica conduta grave, que deslegitima o processo eleitoral, uma vez que desiguala de maneira indevida os concorrentes. Ao mesmo tempo, afasta a possibilidade de utilização da figura da analogia na seara criminal, prestigiando-se o princípio da legalidade penal, segundo o qual não há crime sem lei anterior que o defina. Observa-se, entretanto, que nada obstante esse aspecto positivo, a nova tipificação poderia estar submetida ao benefício do acordo de não persecução penal", diz o manifesto das entidades.
Ex-ministra do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Luciana Lóssio diz que legislação atual é uma “colcha de retalhos”.
O presidente da Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR), Fábio George Cruz da Nóbrega, afirma que a não tipificação do caixa 2 abriu brecha para o chamado ativismo judicial – termo usado para definir quando o Judiciário toma decisões que, em tese, teriam de ser de tomadas por outros Poderes. Mas, segundo ele, isso ocorreu por omissão legislativa, que até hoje não tinha tipificado o crime de caixa dois – o que levou a própria Justiça a promover a punição do crime por meio uma legislação que não foi criada especificamente para esse fim.
Moro recuou de tipificação no pacote anticrime
O ex-juiz e ex-ministro Sergio Moro tentou aprovar a tipificação do crime de caixa 2 enquanto comandava o Ministério da Justiça, durante a tramitação do pacote anticrime no Congresso. No entanto, acabou recuando por causa da pressão de parlamentares.
“Houve uma reclamação por parte de alguns agentes políticos de que o caixa 2 é um crime grave, mas não tem a mesma gravidade que corrupção, que crime organizado e crimes violentos. Então, nós acabamos optando por colocar a criminalização em um projeto à parte”, disse Moro à época. Mas esse projeto não avançou.
Segundo Moro, o que mais lhe chamou a atenção no decorrer das investigações da Lava Jato foi o fato de os investigados citarem "de forma muito natural" o pagamento e o recebimento de propina. “Eu particularmente sou favorável a essa criminalização [de caixa 2]. Tenho uma posição muito clara: eu acho que o caixa dois muitas vezes é visto como um ilícito menor, mas é trapaça em uma eleição. E há uma carência da nossa legislação de tipificar esse tipo de atividade", disse.
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