Aprovado no fim do ano passado na Câmara dos Deputados, o projeto de lei para regulamentar o lobby no Brasil começa a tramitar no Senado a partir do fim do recesso parlamentar, em 1.º de fevereiro. Mas o texto que passou ligou o sinal de alerta. Segundo especialistas, a proposta abre brechas para a corrupção.
O projeto original havia sido apresentado em 2007 com o objetivo de regulamentar a atividade praticada por pessoas que procuram agentes públicos para defender pontos de vista de grupos de interesse em políticas públicas – o lobby, ou “representação de interesses”, como a atividade é chamada no texto aprovado.
A proposta ganhou força em 2022 com um texto enviado à Casa pelo governo do então presidente Jair Bolsonaro (PL). O relator na Câmara, Lafayette de Andrada (Republicanos-MG), alterou pontos da proposta e a levou direto ao plenário, onde foi aprovada a toque de caixa, desconsiderando assuntos previamente discutidos nas comissões da Casa.
Especialistas afirmam que o texto aprovado pelos deputados têm brechas para atos que podem configurar corrupção. Por exemplo: apesar de vários trechos do projeto proibirem o recebimento, por agentes públicos, de qualquer vantagem indevida oferecidas pelos lobistas, é permitida a concessão de brinde – definido como “item de baixo valor econômico distribuído de forma generalizada a título de cortesia, propaganda ou divulgação habitual”.
O texto aprovado pelos deputados também autoriza a chamada “hospitalidade legítima”, definida como “oferta de serviço ou pagamento de despesas com transporte, alimentação, hospedagem, cursos, seminários, congressos, eventos e feiras”.
Nesse ponto, especialistas alertam para a possibilidade de empresas pagarem regalias para agentes públicos, com a oferta de pacotes de turismo, passagens de avião, hospedagem em hotéis de luxo e jantares caros, a pretexto de levá-los para um evento ligado à sua área de atuação.
O texto aprovado exige que “os valores sejam compatíveis, na hipótese de as mesmas hospitalidades serem ofertadas a outras pessoas nas mesmas condições”. A redação, porém, é considerada vaga, dando ampla margem para interpretação do que sejam os “valores compatíveis”. E a lei não define como seria uma apuração de descumprimento dessa norma ou qual seria a punição para quem desrespeitar a lei.
A parte relativa à responsabilização dos agentes públicos ou lobistas se limita a estabelecer sanções a quem deixar de divulgar informações sobre assunto discutido, participantes e interesses representados em reuniões que vierem a ser realizadas na discussão de alguma política pública ou projeto. O descumprimento dessas regras seria investigado pelo próprio órgão do agente público – que ficaria sujeito a punições disciplinares, que vão desde advertência a demissão, além de multas. Os lobistas também poderiam ser punidos com multas, e suspensão de suas atividades junto àquele órgão. Para pessoas físicas, a multa pode variar entre um e dez salários mínimos (de R$ 1.302 a R$ 13.020 em valores de 2023).
Os críticos do projeto também questionam a ausência de obrigatoriedade de divulgação dos documentos, estudos e pareceres que lobistas costumam entregar a órgãos públicos para influenciar a tomada de decisão sobre determinada política pública.
Ao contrário, a proposta protege tais informações. Só quando tiver anuência prévia da empresa que faz o lobby, o agente público poderá divulgar “informação privada”. Isso abrange, segundo o projeto, “dados mercadológicos ou comerciais cuja publicidade possa comprometer a atração direta de investimentos, o desenvolvimento econômico, a atividade industrial, a liberdade de empreender, a inovação, a geração de empregos e o ambiente concorrencial”.
No caso de entidades sem fins lucrativos (ONGs) que estão fazendo algum tipo de lobby, a exigência de prévia de autorização delas para a divulgação de documentos entregues ao setor público vale para a informação privada “que exponha estratégia ou dado sensível para representado cujo interesse seja causa social ou finalidade específica”. São termos considerados vagos que podem caracterizar qualquer informação que seja considerada sensível para uma ONG, por exemplo.
Projeto abre brecha para direcionamento de licitações
As regras sobre lobby previstas no projeto não valem apenas influenciar a tomada de decisões sobre políticas públicas, atos administrativos e regulamentos de determinada atividade. A proposta também admite que haja influência para definir como serão realizadas licitações e contratos do setor público.
Esse é outro ponto da proposta questionado por especialistas. Em grandes casos de corrupção no setor público, é comum que empresas que querem fraudar concorrências públicas enviem ao órgão público ou às estatais especificações de produtos ou serviços que só elas podem oferecer, de modo que seja a única que possa vencer a licitação. Ao não obrigar as empresas a divulgar os documentos enviados ao setor público, a proposta deixa de dar transparência a esse tipo de influência ilícita.
Projeto autoriza lobby em todas as esferas de poder, incluindo Judiciário e MP
O projeto de lei regula não apenas o lobby junto ao Executivo e Legislativo, mas também no Judiciário, Ministério Público (MP) e Tribunal de Contas da União (TCU). Nesses casos, o lobby poderia ser feito junto a ocupantes de cargos com “função de natureza executiva” – trata-se de um termo vago, que só seria definido “nos termos de regulamento a ser editado” por esses mesmos órgãos, segundo o texto aprovado pelos deputados.
Uma outra parte da proposta trata de autoridades da cúpula de todos os poderes, como políticos eleitos, ministros de governo, presidentes e diretores de estatais, ministros de tribunais superiores e chefes dos diversos ramos do Ministério Público. Todos são tratados no projeto como “pessoas politicamente expostas” que, “em razão da natureza das funções exercidas”, terão direito a “normas específicas objetivas de fiscalização de operações financeiras”.
Na prática, contarão com blindagem maior em caso de suspeita de transações suspeitas. Continuam mais protegidas mesmo após deixarem os cargos, por um período de cinco anos. “A condição de pessoa exposta politicamente perdura por 5 (cinco) anos contados da data em que a pessoa deixou de figurar em qualquer das posições”, diz um trecho da proposta.
"Temos aí forma disfarçada de legalizar a corrupção", diz procurador
O procurador de Justiça Roberto Livianu, presidente do Instituto Não Aceito Corrupção, critica o projeto aprovado pelos deputados. "Para se ter uma ideia dos riscos a que estamos chegando no tema do lobby, aprovou-se a absurda legitimação da oferta de presentes caros a agentes públicos, bem como sua participação em seminários e feiras luxuosas, por iniciativa de empresários, que poderão legalmente convidar parlamentares e outros agentes públicos, naturalizando essas práticas como se inexistisse conflito de interesses. Temos aí forma disfarçada e requintada de legalizar a corrupção”, diz Livianu.
Em seu parecer sobre o projeto, ao deputado Lafayette de Andrada (Republicanos-MG) defendeu o texto. Diz que ele conta com “mecanismos que possibilitam o controle social dos processos democráticos e incentivam a representação legítima de interesses, constitucionalmente garantida, sempre com base em transparência e acesso à informação”.
ONGs reclamam de "desvantagem" no lobby em relação a empresas privadas
O projeto que regulamenta o lobby também tem sido alvo de críticas de entidades sem fins lucrativos. AS ONGs temem que a proposta as deixe em desvantagem em relação a empresas privadas na atividade de pressionar e convencer o setor público a aderir às suas agendas.
As principais críticas são de ONGs da área ambiental e de entidades que representam minorias e que advogam por pautas progressistas. Elas argumentam que não podem se submeter às mesmas regras aplicadas a empresas, especialmente em multas que podem chegar até a 5% do faturamento bruto de uma organização, como prevê o projeto.
“Uma penalidade aplicada sobre uma organização sem fins econômicos, indígena ou quilombola, por exemplo, não teria o mesmo impacto caso feita sobre uma instituição dos setores industrial, da mineração ou do agronegócio”, diz um manifesto assinado em novembro por mais de 70 entidades, entre as quais o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), a Aliança Nacional LGBTI, o Greenpeace Brasil, a Comissão Brasileira Justiça e Paz (CBJP) da CNBB, o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), entre várias outras da sociedade civil organizada.
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