A disposição da Procuradoria-Geral da República (PGR) em oferecer um acordo de não persecução penal aos réus do 8 de janeiro que estavam acampados no Quartel-General (QG) do Exército trouxe um dilema para eles. Se por um lado ficam tentados a fazer o acordo, para se livrar logo do desgastante processo, do monitoramento com a tornozeleira eletrônica e de uma condenação quase certa no Supremo Tribunal Federal (STF), por outro lado, seriam forçados a confessar crimes que estão certos que não cometeram. É o que advogados de vários acusados têm ponderado junto a eles, em conversas iniciadas na semana passada.
Vários desses defensores, que atuam em grupo, já planejam realizar uma transmissão ao vivo para os denunciados e suas famílias para explicar as vantagens e desvantagens do acordo, suas consequências práticas e até os efeitos no psicológico dos réus, muitos dos quais têm enfrentando intenso sofrimento durante os últimos meses.
Nesta terça-feira (22), o ministro Alexandre de Moraes, que conduz as investigações no STF e a quem cabe homologar eventual acordo, deu um sinal positivo para as negociações. Suspendeu as ações penais já abertas contra mais de mil réus que não participaram diretamente da invasão e depredação das sedes dos Poderes, dando tempo à PGR para avaliar as condições que serão propostas a eles para se livrar do processo.
O acordo de não persecução penal é uma criação recente, aprovado em 2019 pelo Congresso dentro do chamado pacote anticrime. Muito comum nos Estados Unidos, ele pode ser pactuado entre o Ministério Público, órgão encarregado da acusação, e a pessoa investigada, diante da ocorrência de crimes menos graves, com pena de até 4 anos; cometidos sem violência ou grave ameaça; e quando o investigado confessa que cometeu o delito.
Cabe ao próprio MP avaliar a concessão desse benefício, se considerar que ele é necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime. Nesse caso, o órgão propõe ao investigado a confissão e o cumprimento de alguns deveres, como reparar o dano causado, abrir mão de bens ou direitos adquiridos com os crimes, prestar serviços à comunidade e pagar multa.
Se o investigado aceitar e cumprir tudo, ele se livra da denúncia, do processo criminal, de eventuais restrições – como uso da tornozeleira, proibições de contato com outros investigados, deslocamentos limitados – e de eventual condenação. Não terá uma ficha suja na Justiça, nem registro de maus antecedentes. Mas também não poderá fazer outro acordo nos próximos cinco anos; assim, caso se envolva em algum outro crime, terá de pagar por ele.
Acusados precisam avaliar consequências de eventual condenação
A possibilidade de fechar um acordo do tipo têm atraído a atenção de boa parte das 1.156 pessoas presas em frente ao QG do Exército em 9 de janeiro, dia seguinte à invasão e depredação do STF, do Congresso e do Palácio do Planalto. A PGR reconhece não ter provas de que eles não se envolveram em atos de vandalismo nem tentaram dar um golpe de Estado. No máximo, se reuniram para incitar os militares a contestar a eleição ou destituir o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
Por isso, o órgão acusou-os pelos crimes de incitar animosidade das Forças Armadas contra os poderes constitucionais e de associação criminosa, cujas penas somadas alcançam 3 anos e 6 meses de prisão – nesse patamar, o condenado fica no regime aberto e a punição é convertida em prestação de serviços e multa. Essas seriam, mais ou menos, as mesmas obrigações que seriam impostas num acordo de não persecução penal.
A diferença é que não haveria condenação e suas duras consequências: a ficha suja, o que implica que, num futuro crime, a pessoa já seria considerada reincidente ou com maus antecedentes e, por isso, pegaria uma pena maior, se condenada; o estigma social causado pela condenação criminal, que pode prejudicar a busca por um emprego; além da suspensão dos direitos políticos, que é a proibição de votar e se candidatar, até o fim da pena.
A sugestão de oferecimento de acordo aos réus acampados partiu da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e foi encampada pela PGR. Apesar de muitos réus ficarem tentados a aceitar, uma parte ainda resiste, porque consideram que não cometeram crime nenhum. Estavam no QG manifestando uma indignação em relação ao processo eleitoral, que consideravam parcial para beneficiar a vitória de Lula, e portanto, injusto com o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL).
Ainda se sentiam seguros e entendiam que estavam dentro da legalidade, sobretudo depois que as Forças Armadas, numa nota oficial emitida em novembro, consideraram que eles tinham o direito de se manifestar pacificamente no local. “O fato de existirem faixas com ‘SOS Forças Armadas’, para daí imputar uma incitação a um golpe é forçar demais”, diz Carolina Siebra, advogada de vários réus acampados.
"Acordo joga para debaixo do tapete prisões prolongadas e desumanas", diz advogada
Além de considerá-los inocentes, Carolina Siebra argumenta que o processo a que foram submetidos está repleto de ilegalidades e que não há provas para condená-los, porque a denúncia é genérica e não individualiza a conduta de cada um.
Para a advogada, a decisão da PGR de oferecer um acordo tem por finalidade jogar para debaixo do tapete prisões prolongadas e desumanas a que os acampados foram submetidos. Ela diz que alguns presos e acusados nem estavam em Brasília no dia 8 de janeiro e, portanto, não participavam do acampamento. Foram detidos porque estavam na manhã do dia 9 no local para recolher pertences de familiares e acabaram levados para um ginásio sem saber que estavam sendo presos. Havia idosos que não sabiam o que estava acontecendo, segundo ela.
“Sabem que a polícia cometeu ilegalidade ao prender e esse acordo é uma forma de driblar isso, constrangendo as pessoas a confessar e, assim, dizer que sempre estiveram certos”, diz Carolina. “Se a gente estivesse no Estado Democrático normal, essas pessoas seriam claramente inocentadas. Até porque não tem prova de que cometeram nada”, acrescenta a advogada.
Para ela, uma evidência de que a PGR sabe que muitos são inocentes é que inicialmente, quando denunciou os acampados, o órgão afirmou ao STF que não iria oferecer um acordo de não persecução penal por entender que os crimes eram graves e que o benefício não serviria para prevenir e reprovar a conduta.
A PGR mudou sua visão e diz agora que houve uma “dissipação” das ameaças ao Estado Democrático. O órgão defendeu a pactuação do acordo mesmo após o oferecimento e aceitação da denúncia – o STF ainda avalia se isso é possível. Pela lógica, caso considerasse que não havia gravidade nem ameaça de reiteração de delitos, a PGR poderia ter oferecido o acordo antes de qualquer acusação formal.
Defensor vê pouca perspectiva de absolvição, diante de declarações de ministros
O defensor público Gustavo Ribeiro, que com os colegas da Defensoria Pública da União (DPU) atende a mais de uma centena de réus que estavam acampados, diz que caberá a cada um, individualmente, escolher se aceita ou não o acordo. “A desvantagem é que não vai se discutir o caso no mérito. Mesmo que a pessoa se considere inocente, ela assume a culpa”, resume ele.
A escolha por não aceitar o acordo tem consequências. Para ele, a pessoa enfrentará um processo com pouca perspectiva de absolvição, em razão das diversas declarações já dadas pela maioria dos ministros do STF de dura reprovação da conduta, o que sinaliza que votarão pela condenação. Além disso, como já estão sendo processados na última instância da Justiça, a chance de reversão é mínima – é possível apresentar recursos, mas os julgadores serão os mesmos e é muito raro que ministros revejam suas próprias sentenças.
O defensor ainda diz que, caso a PGR possa efetivamente oferecer o acordo – isso ainda dependerá da autorização de Alexandre de Moraes – e se o réu aceitar, caberá ainda a ele avaliar, com a defesa, se a contrapartida exigida é razoável. Na prática, se os serviços à comunidade e a multa estipulada são compatíveis com a condição individual da pessoa.
“Não adianta impor uma coisa que a pessoa não consegue cumprir”, diz Ribeiro, lembrando que vários réus são pessoas pobres e idosas. Ou seja, podem não ter renda e patrimônio para pagar um valor alto e talvez não tenham condição física de prestar o serviço comunitário que venha a ser exigido. Nesse caso, caberá uma negociação individual, e não uma proposta coletiva – isso difere do procedimento atual, com denúncias padronizadas para todos.
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