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O fato de Jair Bolsonaro ter apresentado uma queixa-crime contra Alexandre de Moraes não torna o ministro automaticamente suspeito para conduzir as investigações contra o presidente da República. Essa possibilidade, já cogitada por apoiadores, foi rechaçada em decisões recentes da Corte, algumas envolvendo o próprio Moraes e o inquérito das fake news e, também por isso, é considerada remota entre os ministros no atual caso envolvendo o presidente.
Nesta quarta-feira (18), ao arquivar a queixa de Bolsonaro contra Moraes, o ministro Dias Toffoli antecipou que uma tentativa do tipo seria prontamente negada. Na decisão, ele escreveu que as objeções do presidente em relação à atuação do colega nem “sequer poderiam constituir matéria relacionada à suspeição do relator”, citando, em seguida, o artigo 256 do Código de Processo Penal, segundo o qual “a suspeição não poderá ser declarada nem reconhecida, quando a parte injuriar o juiz ou de propósito der motivo para criá-la”.
A lógica é que alguém não pode apontar a suspeição de um juiz – alegando que ele atua com parcialidade por ser inimigo ou ter interesse em prejudicar a pessoa, por exemplo – tendo por base um fato ou ato provocado pela própria parte – no caso de Bolsonaro, a queixa.
Trata-se de um entendimento já consolidado dentro do STF. O deputado Daniel Silveira (PTB-RJ), por exemplo, condenado em abril por ameaçar os ministros, tentou afastar Moraes da relatoria de seu caso e também seu acusador, o subprocurador Humberto Jacques de Medeiros, acusando ambos de atuar de forma combinada para prejudicá-lo.
Antes de pedir a suspeição, a defesa do parlamentar protocolou representações na PGR contra Moraes e Jacques por abuso de autoridade. Depois, pediu no STF que eles se afastassem do caso, não apenas por serem acusados por ele, mas alegando que estariam “perseguindo implacavelmente” Silveira, que o subprocurador era “inimigo óbvio” do deputado e do advogado, e que “aconselhou” Moraes na denúncia.
O ministro rejeitou o pedido de suspeição e depois, diante um recurso da defesa, obteve apoio unânime entre os colegas no STF para confirmar a decisão. O pedido de suspeição foi considerado “manifestamente improcedente”, porque revelaria apenas discordância em relação às decisões, sem que se comprovasse que Moraes e Jacques tivessem “inimizade capital” em relação a Silveira ou “interesse direto” em prejudicá-lo.
Para os ministros, era apenas uma manobra da defesa para blindar o deputado. “Eventuais representações do advogado em face do relator, ou em face do membro do Ministério Público, nos órgãos que entende pertinentes, também não se revelam como motivo caracterizador de suspeição ou impedimento. Se assim fosse, qualquer advogado, exercendo seu direito de petição (art. 5º, XXXIV, da Constituição Federal), poderia causar automaticamente a impossibilidade de determinado Juiz exercer a judicatura em todos os processos nos quais atua”, escreveu Moraes em sua decisão, referendada pelo plenário.
Em outubro, o presidente do STF, Luiz Fux, já havia rejeitado outro pedido de suspeição apresentado por Silveira contra Moraes. No caso, a defesa acusava o ministro de cerceá-la e impedir o livre exercício da advocacia na ação penal. Fux citou precedente segundo o qual a suspeição só pode ser declarada se for demonstrada de “modo cabal”.
“A causa de suspeição atinente à inimizade capital em relação a uma das partes (art. 254, I, c/c 258, ambos do CPP) não se perfaz com mera alegação de animosidade, exigindo-se indicação da plausibilidade de que o agente atua movido por razões de ódio, rancor ou vingança. Esse quadro não se verifica se o agente público cinge-se a funcionar nos limites de suas atribuições constitucionais, mantida, por óbvio, a possibilidade de controle judicial, a tempo e modo, do conteúdo dos atos praticados”, diz uma decisão de 2019 da Corte citada por Fux.
Para o presidente do STF, não ficou demonstrada, “de forma objetiva e específica”, por quais razões Moraes teria atuado com “ódio, rancor ou vingança”. Para ele, a defesa de Silveira fez apenas “alegações genéricas” contra o ministro.
Em 2020, Toffoli e Fux também rejeitaram um pedido de suspeição contra Moraes apresentado pela defesa da ativista Sara Winter. Então presidente da Corte, Toffoli disse que é ilegítima a alegação de suspeição “quando houver sido provocada por quem a alega”.
“É público e notório que eventual suspeição do ministro Alexandre de Moraes foi provocada pela arguente que, logo após sofrer medidas processuais de busca e apreensão no bojo do Inq [inquérito] no 4.781 [ameaças ao STF], em 27/5/2020, propalou críticas e ameaças à Sua Excelência por vídeo postado em redes sociais”, registrou o ministro.
A defesa recorreu e coube a Fux, que depois assumiu a presidência do STF, rejeitar novamente o pedido. Desta vez, considerou apenas que era “manifesta a improcedência”.
Também em 2020, num caso considerado emblemático, mas sem qualquer relação com os inquéritos de Moraes, a ministra Rosa Weber rejeitou uma queixa-crime contra 18 magistrados (incluindo ministros do Superior Tribunal de Justiça, além de desembargadores e juízes de São Paulo), apresentada no STF por uma mulher que havia perdido uma causa em todas as instâncias.
No processo, ela foi condenada a abrir mão de um imóvel para pagar uma dívida. Ela então acusou todos os julgadores por crimes como estelionato e prevaricação, pedindo que fossem afastados e presos preventivamente. Ao pedir o arquivamento, a Procuradoria-Geral da República (PGR) apontou mero “inconformismo” com as decisões contrárias e disse que, em qualquer processo, é natural que uma parte perca e que, após esgotados os recursos, deve se conformar.
“É certo que o poder jurisdicional exercido pelo magistrado não é absoluto, podendo ser responsabilizado caso atue com dolo ou fraude no exercício de suas funções. Porém, é garantido ao magistrado manifestar sua convicção, de forma independente e livre de pressões internas e externas”, afirmou o órgão.
Ao arquivar a acusação, Weber disse que acusações contra os juízes deveriam estar respaldadas em provas de atuação dolosa e fraudulenta e não baseada no resultado das decisões. Ao final, disse que imputações falsas a eles poderiam penalizar a própria mulher.
“Se em seu íntimo não puder aceitar revés processual, deve ao menos atentar para que o descontentamento e a frustração que o nutrem não transcendam para a exteriorização de atos que, uma vez praticados, podem dar causa à deflagração de novas contendas judiciais, nas quais o dissabor exteriorizado em escritos passa a ser o próprio objeto do litígio”, afirmou.
No STF, queixa de Bolsonaro é vista como peça política
Dentro do STF, assim como no Congresso, há a convicção entre os ministros de que a queixa de Bolsonaro contra Moraes tinha um objetivo político e não propriamente jurídico. Em primeiro lugar, a avaliação é que serve para desviar o foco da opinião pública de problemas mais graves, como a inflação nos alimentos e nos combustíveis. Mais do que isso, ainda ajudaria o presidente a embalar o discurso de que o obstáculo para o desenvolvimento do Brasil estaria no STF, que não deixaria o governo trabalhar.
É uma fórmula cada vez mais repetida pelo presidente. “Mais da metade do meu tempo passo me defendendo de interferências indevidas do Supremo Tribunal Federal”, disse Bolsonaro, por exemplo, nesta quinta-feira (19), um dia após a rejeição da queixa, durante evento sobre mercado de carbono no Rio de Janeiro.
Além disso, as reiteradas reclamações sobre as urnas eletrônicas, para a maioria dos ministros, não revelariam uma preocupação legítima com a lisura do sistema de votação. Seria apenas uma forma de encontrar um “culpado” em caso de derrota para o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) nas eleições de outubro.
Eles não acreditam, no entanto, na possibilidade de que esse discurso leve o presidente a não aceitar o resultado e tentar – com apoio das Forças Armadas – impedir a diplomação de um eventual sucessor em 2023.
É com base nessa avaliação que a maioria dos ministros também aprovou a decisão de Toffoli de rejeitar rapidamente a queixa contra Moraes, de modo a liquidar de imediato o que poderia ser mais uma fonte de embate entre Executivo e STF com fins políticos.
A alternativa – que é o procedimento mais comum em casos semelhantes – seria o ministro pedir manifestação da PGR antes de decidir. Toffoli, no entanto arquivou o caso em pouco mais de 12 horas, mesmo estando em viagem fora do Brasil.
Após a rejeição, Bolsonaro apresentou à PGR uma representação, com teor muito semelhante à queixa, mas a expectativa é que ela também seja rejeitada. O procurador-geral, Augusto Aras, delegou a análise à sua vice, Lindôra Araújo, que tende a rejeitar o pedido.