O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Celso de Mello divulgou praticamente a íntegra do vídeo da reunião de Jair Bolsonaro e seus ministros em 22 de abril. Convocado pelo ministro Braga Netto (Casa Civil) para discutir o programa Pró-Brasil, de recuperação da economia pós-coronavírus, o encontro acabou abordando diversos outros assuntos em meio a palavrões, ameaças e ataques a membros do Supremo Tribunal Federal (STF) e a governadores.
Do ponto de vista eleitoral, a tendência é de que a gravação reforce o prestígio de Bolsonaro entre seu eleitorado fiel, mas eventualmente afaste a parcela da população que não se identifica totalmente com sua postura e convicções. Politicamente, as revelações trazidas pelo vídeo podem isolar mais o Executivo, depois de um breve momento de aproximação com Congresso e governadores, além de criar problemas com o Supremo.
A divulgação resgatou o debate sobre o armamento da população, algo que Bolsonaro voltou a defender neste sábado (23). O vídeo também deixou claro que o ideário liberal de Paulo Guedes não é unanimidade entre os ministros e trouxe à tona o plano do titular da Economia de privatizar o Banco do Brasil, algo que ele já havia defendido publicamente antes, mas dizendo ser em tom de brincadeira.
As principais revelações da reunião
O presidente Jair Bolsonaro afirmou, durante a reunião ministerial, que tem um sistema de informações particular. O ministro Ricardo Salles (Meio Ambiente), revelou sua ideia de aproveitar a “distração” da pandemia para “ir passando a boiada”, uma referência a aprovar reformas infralegais de desregulamentação e simplificação na área do meio ambiente.
No encontro, Bolsonaro chamou os governadores de São Paulo e do Rio de Janeiro, João Doria e Wilson Witzel respectivamente, de “bosta” e “estrume”. E o ministro Abraham Weintraub (Educação) aproveitou para insultar os ministros do Supremo, ao chamá-los de “vagabundos” que deveriam ir para “cadeia”.
FRASES FORTES E POLÊMICAS: Assista ao vídeo da reunião ministerial
Ainda durante a reunião, Bolsonaro reforçou sua ideia de flexibilizar o porte de armas e “armar a população” para evitar uma “ditadura”. Também ameaçou de demissão os ministros que não apoiem as pautas do governo.
Por fim, o ministro Paulo Guedes (Economia) afirmou que precisa vender a “p...” do Banco do Brasil logo; e que o plano do ministro Rogério Marinho (Desenvolvimento Regional) de apostar em obras públicas para acabar com as desigualdades sociais pode levar o governo Bolsonaro a acabar igual ao de Dilma Rousseff (PT). Marinho rebateu dizendo que é preciso superar “dogmas”.
Os impactos para o governo
Em entrevista à Gazeta do Povo, o sociólogo e cientista político Antônio Lavareda acredita que o vídeo terá impacto para o governo em duas principais dimensões: eleitoral e política, além do próprio inquérito em curso no STF, sobre possível interferência de Bolsonaro na Polícia Federal.
Sobre o impacto eleitoral, ele afirma que o vídeo reforça a popularidade de Bolsonaro entre seu eleitorado cativo, mas pode afastar aquele eleitor não tão fiel às convicções do presidente.
“O conteúdo do vídeo reforça o vínculo dele [Bolsonaro] com uma parte do eleitorado, o eleitorado raiz, original, que o presidente conquistou até setembro de 2018. Ele expressa com toda clareza aqueles valores, atitudes que o conectaram com aquele eleitorado raiz. Por outro lado, é possível que a crueza de algumas colocações e o exagero retórico de alguns ministros tenha criado constrangimento de uma parcela de eleitores que se somou ao Bolsonaro no fim do primeiro turno e no segundo turno”, avalia Lavareda.
Do ponto de vista político, o cientista político acredita que o vídeo aumentou a temperatura de uma crise que havia esfriado na quinta-feira (21), véspera da divulgação, com a reunião entre o presidente com os governadores. “Houve uma série de insultos a governadores, ministros, partidos e isso já provocou reações e certamente provocará ainda mais. O vídeo eleva a temperatura da crise que, diga-se de passagem, já estava se começando a se esmaecer, quando houve um clima de concórdia na reunião com os governadores”, diz Lavareda.
Para o especialista, o vídeo de ontem devolveu o país a “algumas casas atrás” do grande fato da semana, que deveria ter sido a reunião que sinalizou para uma possível pacificação do presidente Bolsonaro com os governadores e os presidentes da Câmara e do Senado, Rodrigo Maia (DEM-RJ) e Davi Alcolumbre (DEM-AP). “A ninguém interessa hoje essa temperatura da crise”, finalizou.
Para Mário Aquino Alves e Marco Antonio Carvalho Teixeira, professores da FGV-EAESP, o vídeo joga o governo ainda mais no isolamento. “Para um governo que precisa ampliar apoios para buscar sustentação política no Congresso, que precisa dialogar com governadores e prefeitos – que também aparecem sendo xingados no vídeo – para juntos combaterem o problema mais desafiador do país, a Covid-19, o vídeo joga governo ainda mais no isolamento e tem potencial para diminuir a sua reputação tanto interna, junto aos que ainda o apoiam; quanto externa, pela forma em que as questões públicas e em relação a outros países são tratadas”, escrevem em artigo publicado no jornal "O Estado de S. Paulo".
Veja, abaixo, os possíveis principais impactos da reunião ministerial do governo Bolsonaro:
Clima de "pacificação" com governadores foi por água abaixo
O possível clima de “pacificação”, externado durante a reunião de Bolsonaro com governadores e com os presidentes da Câmara e do Senado na última quinta-feira (21), foi por água abaixo com a divulgação do vídeo. Durante a reunião ministerial, Bolsonaro chamou os governadores de São Paulo e do Rio de Janeiro, João Dória e Wilson Witzel respectivamente, de “bosta” e “estrume”.
“Que os caras querem é a nossa hemorroida! É a nossa liberdade! Isso é uma verdade. O que esses caras fizeram com o vírus, esse bosta desse governador de São Paulo, esse estrume do Rio de Janeiro, entre outros, é exatamente isso. Aproveitaram o vírus, tá um bosta de um prefeito lá de Manaus agora, abrindo covas coletivas. Um bosta”, disse Bolsonaro.
O governador de São Paulo, João Doria (PSDB), disse que o Brasil está "atônito com o nível da reunião ministerial". Ele afirmou que a gravação revela "descaso com a democracia, desprezo pela Nação e agressões à institucionalidade da Presidência da República” além de um “exemplo ruim diante da pandemia da Covid-19".
O governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel (PSC), também reagiu com uma mensagem postada nas redes sociais. Ele escreveu que "a falta de respeito de Bolsonaro pelos poderes atinge a honra de todos. Sinto na pele seu desapreço pela independência dos poderes".
Em nota, o prefeito de Manaus, Arthur Virgílio (PSDB), afirmou que os insultos do presidente Bolsonaro representam um verdadeiro “strip-tease moral” feito por quem não tem mais a “mínima condição de governar o Brasil". “O presidente da República, em seu criminoso boicote ao isolamento social, em seu desprezo aos indígenas, em seu apreço a garimpeiros que poluem rios, sonegam impostos e invadem áreas indígenas, é claramente cúmplice de tantas mortes causadas pelo Covid 19. Trata-se de um ser despreparado, inculto e deseducado”, escreveu Virgílio.
Vídeo resgatou discussão sobre flexibilizar o porte e a posse de armas
Na reunião ministerial, Bolsonaro demonstrou que não abandou a ideia de flexibilizar a posse e o porte de armas. “Aí, que é a demonstração nossa, eu peço ao Fernando [ministro da Defesa] e ao Moro [então ministro da Justiça] que, por favor, assine essa portaria hoje que eu quero dar um puta de um recado pra esses bosta [prefeitos e governadores a favor do isolamento social]! Por que que eu tô armando o povo? Porque eu não quero uma ditadura! E não dá pra segurar mais! Não é? Não dá pra segurar mais”, disse Bolsonaro.
Neste sábado (23), em suas redes sociais, Bolsonaro reforçou a ideia de armar a população como forma de evitar uma ditadura. "Como se começa uma ditadura? Desarmando o povo. O bem maior do homem? Sua liberdade", escreveu, compartilhando o trecho do vídeo em que defende uma portaria que facilite o acesso às armas.
Para apoiadores, vídeo foi propaganda eleitoral antecipada
Para apoiadores de Bolsonaro, o vídeo acabou sendo uma propaganda eleitoral antecipada que vai fortalecer a base de apoiadores do presidente. A deputada federal Carla Zambelli (PSL-SP), por exemplo, escreveu em seu perfil no Twitter: "Ao ex-padrinho @SF_Moro, gostaria de agradecer por ter contribuído para a reeleição do nosso PR @jairbolsonaro. Prezado, o Sr está desculpado", completou.
“O que eu recebi de ligação de ontem pra hoje... muita gente que tava adormecida depois da campanha, estão todos apostos pra 2022. Vamo pra cima!!!”, escreveu o deputado federal delegado Éder Mauro (PSD-PA). A hashtag #Bolsonaroreeleito alcançou mais de 1 milhão de citações no Twitter.
Até mesmo pessoas que não integram mais a base de apoio do presidente, como a deputada estadual Janaína Paschoal (PSL-SP), tiveram a mesma impressão. “Eu não sei se eu estou vendo a fita que vinha sendo anunciada. Realmente não sei. A fita que eu estou vendo reelege o Presidente”, escreveu Janaína em seu perfil no Twitter.
Para opositores, vídeo reforçou indicações de interferências de Bolsonaro
Para opositores, o vídeo reforçou as indicações de uma possível interferência na Polícia Federal e mostrou um clima hostil que deve isolar o governo. O ex-candidato à Presidência Guilherme Boulos (Psol) acredita que Bolsonaro teria confessado, no vídeo, a intenção de interferir na PF. No Twitter, ele escreveu que as declarações durante a reunião "não são palavras de um chefe de Estado, mas de um chefe de milícia".
Em nota conjunta, os partidos de oposição (PDT, PCdoB, Psol, PSB, PT e Rede) disseram que o conteúdo do vídeo “desfaz qualquer legitimidade do atual governo no comando dos destinos da Nação" e "indica a tentativa de formação de milícias em defesa de um projeto antinacional e antidemocrático".
Para o PSDB, a reunião "ficará marcada como um dos momentos mais baixos e deprimentes da história recente brasileira. Nenhum apego à liturgia do cargo, linguagem chula, ameaças gratuitas".
Bolsonaro disse ter um sistema de informações particular
Durante a reunião ministerial, Bolsonaro revelou que tem um sistema de informações particular. A declaração chamou atenção para o possível vazamento de investigações para o presidente, algo que já é investigado no mesmo inquérito que apura suposta interferência de Bolsonaro na Polícia Federal. No último fim de semana, o empresário Paulo Marinho, suplente de Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ), disse que o senador e filho do presidente soube por antecedência de operação que mirou o ex-assessor Fabrício Queiroz.
“Se reunindo de madrugada, pra lá, pra cá. Sistemas de informações: o meu funciona. O meu particular funciona. Os que tem oficialmente, desinforma”, disse Bolsonaro na reunião.
O presidente ainda reclamou que os serviços oficiais de inteligência não fornecem informações a ele. “Pô, eu tenho a PF que não me dá informações. Eu tenho as inteligências das Forças Armadas, que não tenho informações. Abin tem os seus problemas, tenho algumas informações. Só não tenho mais porque tá faltando, realmente, temos problemas, pô! Aparelhamento etc. Mas a gente num pode viver sem informação.”
Na noite de sexta, após a divulgação do vídeo, Bolsonaro afirmou que o sistema a que se referiu no vídeo é formado por colegas de várias áreas, que fornecem a ele informações melhores que as dos órgãos oficiais.
“Informação pessoal é um colega de vocês da imprensa que, com toda certeza, eu tenho. É um sargento no batalhão de Operações Especiais no Rio, um capitão do Exército do grupo de artilharia de Nioque, é um policial civil em Manaus, um amigo que fiz em... que gosta de informações, que liga pra mim, mantém contato no Zap [WhatsApp]”, disse a jornalistas no portão do Palácio da Alvorada .
“Essa informação que eu tenho, pessoal minha, que eu descubro muitas coisas que lamentavelmente não descubro via as inteligências oficiais, da PF, da Marinha, Aeronáutica e Exército e Abin”, completou.
Ambientalistas veem desvio de finalidade na atuação de Salles
O vídeo da reunião ministerial também deixou em situação delicada o ministro Ricardo Salles (Meio Ambiente). O deputado federal Célio Studart (PV-CE) anunciou na noite de sexta-feira (22) que apresentará um pedido de impeachment do ministro. Para o deputado, as declarações são graves e mostram que Salles é um inimigo do meio ambiente, ao aproveitar o momento de pandemia para tentar enfraquecer a legislação ambiental.
Durante a reunião ministerial, Salles sugeriu que o governo deveria aproveitar a atenção da imprensa à pandemia do novo coronavírus para aprovar "reformas de desregulamentação e simplificação" na área do meio ambiente e "ir passando a boiada". Além disso, declarou que muitas das reformas não precisariam do aval do Congresso e poderiam ser feitas de forma infralegal.
Entidades e organizações que atuam em defesa do meio ambiente emitiram notas repudiando as declarações de Salles e apoiando um possível afastamento do ministro. “Esperamos que Ministério Público Federal, STF e Congresso tomem medidas imediatas para o afastamento do ministro Ricardo Salles. Ao tramar dolosamente contra a própria pasta, demonstra agir com desvio de finalidade", disse o Observatório do Clima.
Neste sábado, Salles repetiu parte do que disse na reunião, mas agora afirmando que se trata de desregulamentar e simplificar a burocracia sem retirar garantias que são relevantes.
Weintraub entra na mira dos ministros do Supremo
Mais fortes foram as palavras do ministro da Educação, Abraham Weintraub. Na reunião, ele insultou os ministros do Supremo. “Eu, por mim, botava esses vagabundos todos na cadeia. Começando no STF”, disse durante a reunião ministerial.
Na decisão que liberou o conteúdo do vídeo, o ministro do Supremo Celso de Mello afirmou que as palavras proferidas por Weintraub podem configurar crime contra a honra. Mello ainda determinou que se oficiem todos os ministros do STF sobre o fato, enviando a eles cópia de sua decisão, para que possam, “querendo”, “adotar as medidas que julgarem pertinentes".
“Essa gravíssima aleivosia perpetrada por referido Ministro de Estado, consubstanciada em discurso contumelioso e aparentemente ofensivo ao patrimônio moral dos Ministros da Suprema Corte brasileira ("Eu, por mim, botava esses vagabundos todos na cadeia. Começando no STF") – externada em plena reunião governamental ocorrida no próprio Palácio do Planalto, que contou com a presença de inúmeros participantes –, põe em evidência, além do seu destacado grau de incivilidade e de inaceitável grosseria, que tal afirmação configuraria possível delito contra a honra (como o crime de injúria)”, escreveu Celso de Mello.
Neste sábado (23), o ministro do Supremo Marco Aurélio Mello pediu a saída de Weintraub. Porém, afirmou que não cogita tomar nenhuma medida contra o titular da Educação. "De forma alguma. Não sou vagabundo. A carapuça passou longe", disse.
Diferença entre agenda de Guedes e ala militar ficou evidente
A reunião trouxe à luz as divergências entre a agenda do ministro Paulo Guedes e a de parte do governo. Enquanto a ala militar e o ministro Rogério Marinho (Desenvolvimento Regional) defendem investir em obras públicas para acelerar a economia, Guedes rechaça a ideia e diz que o único caminho é a agenda liberal.
"Não se fala Plano Marshall, porque é um desastre. Vai revelar falta de compreensão das coisas. A segunda coisa é o seguinte, é super bem-vinda essa iniciativa, para nos integrarmos todos. Agora, não vamos nos iludir. A retomada do crescimento vem pelos investimentos privados, pelo turismo, pela abertura da economia, pelas reformas. Nós já estávamos crescendo", disse Guedes.
“O caminho desenvolvimentista foi seguido, o Brasil quebrou por isso, o Brasil estagnou. A política foi corrompida, a economia estagnou através do excesso de gastos públicos. Então achar agora que você pode se levantar pelo suspensório, como é que um governo quebrado vai investir, vai fazer grandes investimentos públicos?”, indagou o ministro.
Ele ainda acusou Marinho de tentar afundar o governo, igual fez a ex-presidente Dilma Rousseff. “"Isso [investir em obras públicas para diminuir as desigualdades regionais] é o que o Lula, o que a Dilma tão fazendo há trinta anos. Se a gente quiser acabar igual a Dilma, a gente segue esse caminho”. Marinho rebateu e disse que é preciso superar “dogmas”.
Guedes pede para vender Banco do Brasil, Bolsonaro prefere em 2023
O vídeo da reunião ministerial também confirmou o desejo do ministro da Economia, Paulo Guedes, de privatizar o Banco do Brasil. "É um caso pronto e a gente não tá dando esse passo. Senhor já notou que o BNDE [antiga sigla do BNDES] e o… e o… e a Caixa que são nossos, públicos, a gente faz o que a gente quer. Banco do Brasil a gente não consegue fazer nada e tem um liberal lá. Então tem que vender essa p... logo", disse Guedes.
Bolsonaro brinca que, se for assim, Rubens Novaes não estará na próxima reunião ministerial e pede, em meio a risos, para deixar para depois de 2022. Guedes, então, pede para Novaes confessar que seu sonho é privatizar o banco. Bolsonaro brinca: “Deixa para depois, confessa não. Faz assim: só em vinte e três [2023] você confessa, agora não".
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