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A notícia de que o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), teria autorizado uma quebra de sigilos telefônico e telemático generalizada trouxe apreensão a advogados que atuam nos inquéritos das “fake news” e das “milícias digitais”. A quebra de sigilos atingiria não apenas oito investigados por promover supostos atos antidemocráticos, mas também interlocutores que mantiveram contato com eles ao longo dos últimos anos.
Advogados ouvidos pela Gazeta do Povo temem que a medida, decretada em sigilo, já esteja em execução, e que dificilmente possa ser revertida no STF. Eles também avaliam que a medida acarrete violação em massa de direitos das pessoas atingidas, como de privacidade e de defesa, além da prerrogativa dos próprios advogados de manter sigilosa a relação deles com seus clientes investigados.
A quebra de sigilo foi revelada pelo site Metrópoles e teria como objetivo alcançar o núcleo político mais próximo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL). A suspeita seria de que partiriam desses aliados, e talvez do próprio ex-presidente, ordens para supostamente promover ataques às instituições. Outra finalidade da quebra de sigilos seria desvendar financiadores dos supostos atos antidemocráticos.
Segundo o site Metrópoles, a Polícia Federal (PF) estaria automaticamente autorizada a coletar dados de ligações, e-mails e mensagens trocadas pelos interlocutores dos investigados, desde 2017, e ainda saber em que local eles estavam no momento dos contatos por celular. O despacho teria sido assinado no dia 12 de dezembro e está em sigilo para não frustrar as investigações.
Quebra de sigilos distorce fundamentos jurídicos, dizem advogados
A Gazeta do Povo entrou em contato com vários advogados de investigados nos inquéritos conduzidos por Alexandre de Moraes, que manifestaram espanto com a medida. Eles dizem que quebras de sigilo devem ser justificadas individualmente, a partir de indícios de cometimento de crime pela pessoa alvo da medida, e não contra alvos desconhecidos e indefinidos que não tenham qualquer relação com supostos atos ilícitos. Por temor de retaliação, no entanto, os advogados não quiseram se manifestar e comentar publicamente a decisão, a qual não tiveram acesso.
“O STF distorce todos os fundamentos jurídicos”, diz um dos advogados, que afirma ser óbvia a necessidade de fundamentar a quebra de sigilo de cada pessoa atingida.
Outra advogada, que também atua nos inquéritos, lembra que a Constituição permite a quebra do sigilo das comunicações nas investigações criminais “nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer”. A lei em questão trata das interceptações telefônicas e diz que esse tipo de procedimento – que implica gravação de conversas – exige que o juiz constate a presença de “indícios razoáveis da autoria ou participação em infração penal” e que a prova buscada na investigação não possa ser feita por outros meios disponíveis.
Embora sejam requisitos para as interceptações, não necessariamente para as quebras de sigilo, os advogados entendem que também se aplicam para a obtenção dos dados das ligações (quem ligou para quem, em que hora e local), e sobretudo para dados telemáticos (que incluem o conteúdo de mensagens de WhatsApp ou e-mails trocados, por exemplo).
Sem a necessidade de demonstrar indícios de crimes sobre os alvos, a quebra de sigilo violaria a privacidade das pessoas de forma indevida. Também daria margem para o que no meio jurídico é chamado de “fishing expedition” ("pescaria probatória", em português) – que é devassar toda a vida da pessoa em busca de qualquer infração que possa comprometê-la, mesmo que não haja suspeitas iniciais sobre ela.
“Pelo que está escrito na matéria [do site Metrópoles], temos na decisão aquilo que o Günther Jakobs, um grande doutrinador alemão, chama de 'Direito Penal do inimigo'. Um Direito Penal cujas regras penais são completamente distintas”, diz outro advogado, que também pediu para não se identificar.
Segundo esse advogado, os interlocutores apareceriam na quebra de sigilo telefônico dos investigados, mas a mesma medida só poderia ser posteriormente adotada contra os primeiros caso se verificasse o que foi dito nessas ligações, quantos contatos foram feitos, e se existem outras medidas para desvendar as suspeitas.
Para o advogado e doutor em Direito Constitucional Acacio Miranda, que não integra a defesa de nenhum dos investigados nos inquéritos conduzidos por Moraes, a medida do ministro do STF é temerária, caso seja confirmada. “Me causa certa perplexidade, uma vez que, por mais que existam indícios razoáveis acerca do cometimento de crimes contra o Estado Democrático de Direito, os crimes são cometidos por pessoas definidas, que devem ser objeto daquela investigação. Não é possível que seja permitida uma investigação telefônica daquelas pessoas que tiveram contato com os investigados sem que elementos razoáveis no cometimento do crime em relação a esses terceiros sejam apresentados”, diz.
Miranda afirma que, mesmo que a decisão não envolva interceptação, a quebra de sigilo, em geral, é um passo anterior. “Primeiro eles encontram quais aparelhos que conversaram e quais foram os diálogos. A partir daí, podem tomar outras medidas não razoáveis. Você cava um pênalti, cria um caminho para a construção de uma prova”, explica ele.
Em decisão a favor de Lula, STF assegurou privacidade entre advogado e cliente
Advogados dos alvos dos inquéritos de Alexandre de Moraes também temem que a quebra de sigilo telefônico e telemático atinja as ligações que eles tiveram com seus clientes investigados, e avance para uma interceptação telefônica, gravando suas conversas – que também tem o sigilo assegurado por lei.
Em 2021, por exemplo, o próprio STF, ao declarar a suspeição de Sergio Moro nos processos contra o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, apontou que um dos motivos da parcialidade do então juiz da operação foi a interceptação de ramais telefônicos dos advogados do petista. A decisão do Supremo diz que isso “consistiu em flagrante violação do direito constitucional à ampla defesa”.
“O ex-juiz [Moro] realizou [quando ainda conduzia a Lava Jato] a quebra de sigilos telefônicos do paciente [Lula], de seus familiares e até mesmo de seus advogados, com o intuito de monitorar e antecipar as estratégias defensivas. Tanto a interceptação do ramal-tronco do escritório de advocacia Teixeira, Martins & Advogados [que defendeu o petista na Lava Jato] quanto a interceptação do telefone celular do advogado Roberto Teixeira [amigo de Lula] perduraram por quase 30 (trinta dias), de 19.2.2016 a 16.3.2016. Durante esse período, foram ouvidas e gravadas todas as conversas havidas entre os 25 (vinte e cinco) advogados integrantes da sociedade, bem como entre o advogado Roberto Teixeira e o paciente [Lula]”, descreve a decisão do STF.