Ao reclamar sobre a atuação da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) na investigação do caso Adélio Bispo, autor do atentado à faca do qual foi alvo, o presidente Jair Bolsonaro escancarou uma desavença antiga com o atual presidente da entidade, Felipe Santa Cruz. Reclamando que a OAB impediu a quebra do sigilo telefônico do advogado de Adélio, o presidente fez um ataque pessoal ao advogado, citando o desaparecimento de seu pai durante a ditadura militar. “Um dia, se o presidente da OAB quiser saber como é que o pai dele desapareceu no período militar, conto pra ele. Ele não vai querer ouvir a verdade. Conto pra ele", declarou Bolsonaro.
Felipe é filho de Fernando Augusto Santa Cruz de Oliveira, desaparecido em fevereiro de 1974, após ter sido preso junto de um amigo chamado Eduardo Collier por agentes do DOI-Codi, órgão de repressão da ditadura militar, no Rio de Janeiro. A prisão teria ocorrido na capital fluminense, durante o carnaval.
Em 2011, em palestra na Universidade Federal Fluminense, o então deputado federal Jair Bolsonaro declarou que Fernando Santa Cruz teria morrido “bêbado” após pular o carnaval, o que iniciou cruzada de Felipe contra Bolsonaro, culminando com um pedido de cassação do deputado por parte da seccional da OAB do Rio de Janeiro, quando a entidade era presidida por Felipe.
"Não é minha versão. É que a minha vivência me fez chegar nas conclusões naquele momento. O pai dele integrou a Ação Popular, o grupo mais sanguinário e violento da guerrilha lá de Pernambuco e veio desaparecer no Rio de Janeiro", disse Bolsonaro, nesta segunda-feira (29).
À frente da OAB-Rio, Felipe iniciou movimento em 2016 para pedir ao Supremo Tribunal Federal a cassação do mandato de Bolsonaro por “apologia à tortura", após o então deputado citar o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra – ex-chefe do DOI-Codi, na votação do impeachment de Dilma Rousseff (PT). Ao ser eleito presidente da OAB nacional, no início deste ano, afirmou, em discurso, que colocaria a entidade na linha de frente da defesa do direito de minorias e daqueles que “não têm voz”.
Desde a posse de Felipe Santa Cruz, a OAB tem se envolvido em alguns embates com o presidente Jair Bolsonaro. Em março, a Ordem assinou nota em desagravo a veículos de comunicação e defesa da liberdade de imprensa depois que o presidente fez ataques a jornalistas e veículos de comunicação por conta da divulgação de notícias relativas às investigações envolvendo seu filho Flávio Bolsonaro e seu ex-assessor Fabrício Queiroz.
Contrário ao exame da OAB, prova obrigatória para que bacharéis em direito possam exercer a advocacia, Bolsonaro já havia criticado a entidade há um mês, justamente pela posição da OAB em defesa dos advogados de Adélio Bispo Neto, questionando “Para que serve a OAB?”. A entidade respondeu que “a dificuldade em enxergar a função e a importância da OAB talvez se explique pela mesma dificuldade de ter compromisso com a verdade, de reconhecer o respeito à lei e à defesa do cidadão e de assumir o espírito democrático que deve reger as relações de um governante com seu povo, suas entidades e as instituições estabelecidas pela Constituição”.
Felipe Santa Cruz também já comprou briga com o ministro da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro, ao assinar manifestação do Conselho da OAB defendendo o afastamento de Moro por conta do vazamento de supostas conversas do então juiz com procuradores da força-tarefa da Operação Lava Jato. A entidade também foi à Justiça para pedir que as mensagens obtidas pelos hackers presos na Operação Spoofing não fossem destruídas, após declaração de Moro neste sentido.
"Crueldade e falta de empatia", reage presidente da OAB
Felipe Santa Cruz afirmou, em nota, que as declarações do presidente Jair Bolsonaro sobre o desaparecimento de seu pai demonstram "crueldade e falta de empatia". "Lamentavelmente, temos um presidente que trata a perda de um pai como se fosse assunto corriqueiro – e debocha do assassinato de um jovem aos 26 anos", diz.
"O mandatário da República deixa patente seu desconhecimento sobre a diferença entre público e privado, demonstrando mais uma vez traços de caráter graves em um governante: a crueldade e a falta de empatia. É de se estranhar tal comportamento em um homem que se diz cristão", escreveu.
"Meu pai era da juventude católica de Pernambuco, funcionário público, casado, aluno de Direito. Minha avó acaba de falecer, aos 105 anos, sem saber como o filho foi assassinado. Se o presidente sabe, por 'vivência', tanto sobre o presente caso quanto com relação aos de todos os demais 'desaparecidos', nossas famílias querem saber", afirma Santa Cruz.
A OAB também se manifestou a respeito, em nota assinada pela Diretoria do Conselho Federal, Colégio de Presidentes e o Conselho Pleno.
"A diretoria, o Conselho Pleno do Conselho Federal da OAB e o Colégio de Presidentes das 27 Seccionais da OAB repudiam as declarações do Senhor Presidente da República e permanecerão se posicionando contra qualquer tipo de retrocesso, na luta pela construção de uma sociedade livre, justa e solidária, e contra a violação das prerrogativas profissionais", diz a entidade.
Quem foi Fernando de Santa Cruz Oliveira
Militante da Ação Popular (AP), grupo marxista ligado à juventude católica fundado em 1962, o pai do atual presidente da OAB foi visto pela última vez por seus familiares em 23 de fevereiro de 1974, segundo o relatório da Comissão Nacional da Verdade.
A Comissão relata que Fernando e seu amigo —Eduardo Collier Filho, também militante contra a ditadura— provavelmente foram presos por agentes do DOI-Codi no Rio. O regime militar nunca confirmou as prisões.
Apesar da versão oficial, a Comissão da Verdade cita um documento de 1978 no qual o Ministério da Aeronáutica reconhece que Fernando foi preso em fevereiro de 1974.
A Comissão da Verdade elencou duas hipóteses para o caso do pai do atual presidente da OAB. A primeira é a de que, depois de preso no Rio, ele foi levado para o DOI-Codi em São Paulo.
Outra possibilidade levantada pela comissão é a de que Fernando e seu amigo foram encaminhados para a chamada Casa da Morte, em Petrópolis (RJ), “e seus corpos levados posteriormente para incineração em uma usina de açúcar”.
“Fernando de Santa Cruz Oliveira e Eduardo Collier Filho permanecem desaparecidos até hoje”, conclui a Comissão Nacional da Verdade.