Ao determinar uma averiguação preliminar para investigar indícios de que o presidente Jair Bolsonaro manteve um esquema de rachadinhas em seu gabinete, entre os anos de 1991 e 2018, o procurador-geral da República, Augusto Aras, coloca pai e filho sob uma mesma suspeita: o uso de ex-funcionários comissionados para desvios de dinheiro público.
O senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ) atualmente é alvo de investigação instaurada pelo Ministério Público do Rio de Janeiro (MPRJ), sob suspeita de desvios de recursos quando era deputado estadual na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj). Segundo o MPRJ, os servidores eram obrigados a depositar parte dos salários na conta do ex-assessor Fabrício Queiroz, que hoje cumpre prisão domiciliar.
Queiroz se tornou conhecido no final de 2018, quando veio a público um relatório do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) identificando movimentações suspeitas da ordem de R$ 1,2 milhão, valores incompatíveis com a sua renda. A suspeita do Ministério Público fluminense é que Queiroz recebia os valores dos funcionários de Flávio Bolsonaro e, com esse dinheiro, custeava despesas pessoais do então deputado estadual. O senador nega as irregularidades.
No caso do presidente da República, as suspeitas de que ele tenha sido beneficiado por esquema semelhante vem sendo levantadas desde a campanha de 2018. Nenhuma delas com provas até o momento. Agora, integrantes da Procuradoria-Geral da República (PGR) admitem nos bastidores que o Ministério Público terá a oportunidade de esclarecer um assunto que sempre foi alvo de conversas políticas em Brasília: as pouco típicas exonerações e nomeações de servidores determinadas pelo presidente na época em que ele era deputado federal.
O processo de contratação e demissão desses ex-servidores chamam a atenção e, conforme investigadores, podem ser um elo entre as supostas rachadinhas de Flávio e de Jair. O caso mais emblemático é o da personal trainer Nathália Queiroz, filha do policial Fabrício Queiroz. Nathália trabalhou como assessora parlamentar de Jair Bolsonaro entre 2016 e 2018.
Dados da quebra de sigilo bancário de Nathália obtidos pela Folha de São Paulo mostraram que ela transferiu R$ 150,5 mil para as contas do pai entre janeiro de 2017 e setembro de 2018. Esse valor representava 77% do que ela recebeu como secretária parlamentar na Câmara. Nesse período, Nathália recebia aproximadamente R$ 10 mil como secretária parlamentar.
Filha de Queiroz é considerada maior elo entre “rachadinhas”
Durante o período em que esteve lotada no gabinete de Jair, Nathália dava aulas como personal no Rio de Janeiro. Segundo informações da Câmara dos Deputados encaminhadas ao MPF do Distrito Federal, três pessoas eram responsáveis por bater o ponto da então servidora. A defesa de Nathália alegou que Queiroz centralizava as despesas domésticas. Por isso, ela efetuava o depósito de seu salário nas contas do policial militar.
Outro caso que ficou notório e que dá indícios de que o modus operandi não era exclusivo do senador Flávio Bolsonaro diz respeito à Walderice Santos da Conceição, também conhecida como “Wal do Açaí”. Ela foi flagrada pela Folha vendendo açaí na Vila Histórica de Mambucaba, a 50 km de Angra dos Reis, no litoral fluminense, durante o horário de expediente na Câmara. Ela pediu demissão após o episódio. Wal era servidora do então deputado Jair Bolsonaro desde o ano de 2003. O Ministério Público estudou a abertura de uma investigação por suspeita de crime de improbidade administrativa, mas o procedimento preliminar acabou arquivado.
Informações ou suspeitas sobre supostas rachadinhas ou que servidores do então deputado federal atuaram financiando campanhas eleitorais da família Bolsonaro não são novidade. Um exemplo é Jorge Francisco, pai de Jorge Antônio de Oliveira, ministro da secretaria-geral da Presidência.
Já falecido, Francisco até hoje é considerado como peça vital no financiamento das campanhas dos filhos do presidente da República, seja por meio de dinheiro vivo ou por prestação de serviços. Ele ajudou a financiar as campanhas do clã desde 2002.
Quando foi eleito pela primeira vez para o cargo de deputado estadual, Flávio Bolsonaro recebeu, na época, R$ 5,9 mil de Francisco (em torno de R$ 20 mil em valores atuais). O então chefe de gabinete de Bolsonaro foi o único doador da campanha de Flávio naquele ano.
Com o tempo, ele também efetuou doações para as campanhas vitoriosas de Carlos e Eduardo e do próprio Jair, como em 2006. Esta última para a Câmara Federal. Na época, o então servidor de Bolsonaro repassou R$ 10 mil para o seu próprio chefe (hoje, aproximadamente R$ 24 mil em valores atualizados).
Procedimento prévio foi instaurado em resposta a pedido de inquérito
A instauração de procedimento investigatório prévio sobre as supostas rachadinhas no gabinete de Jair Bolsonaro foi uma resposta a pedido de inquérito impetrado pelo advogado Ricardo Bretanha Schmidt, baseado em uma reportagem da Folha de S. Paulo. A reportagem, publicada em julho desse ano, informa que, entre 1991 e 2018, houve uma “intensa e incomum rotatividade salarial de seus assessores, atingindo cerca de um terço das mais de cem pessoas que passaram por seu gabinete nesse período”.
Uma das suspeitas recaíram em funcionários que foram exonerados e recontratados no mesmo dia. Neste momento da apuração, a procuradoria vai avaliar se há elementos que indiquem algum ilícito relacionado à movimentação salarial ou à contratação de servidores durante este período. Se a PGR encontrar ilícitos na contratação dos ex-assessores, a tendência é que o processo seja encaminhado para o Ministério Público Federal (MPF) em primeira instância e a investigação continue após Bolsonaro deixar o cargo de presidente da República.
A situação é análoga ao que ocorreu com o ex-presidente Michel Temer (MDB) no chamado inquérito dos portos, quando ele somente respondeu criminalmente após deixar a Presidência da República. Caso a PGR não encontre elementos que fundamentem uma investigação mais aprofundada, é possível que Aras recomende o arquivamento da denúncia.
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