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O ministro da Defesa, Paulo Sérgio Nogueira, encaminhou nesta quarta-feira (9) ao presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Alexandre de Moraes, o relatório de fiscalização do sistema eletrônico de votação. No documento, os técnicos militares não apontaram indícios de fraude nas urnas eletrônicas – disseram que o objetivo do trabalho não era apurar crimes eleitorais. Por outro lado, apontaram a possibilidade de “relevante risco” à segurança na fase de compilação (preparação) dos programas instalados nas máquinas, pela possibilidade de acesso à rede dos computadores usados nesse processo.
Além disso, a pasta afirmou que, no teste de integridade das urnas – realizado no dia das eleições, “não é possível afirmar que o sistema eletrônico de votação está isento da influência de um eventual código malicioso que possa alterar o seu funcionamento”. Neste ano, o TSE atendeu a uma das sugestões das Forças Armadas de realizar esse teste com a biometria de eleitores reais perto ou dentro das seções de votação.
Ao encaminhar o relatório a Moraes, Paulo Sérgio comunicou a sugestão dos técnicos militares de realizar uma “investigação técnica”, “para melhor conhecimento do ocorrido na compilação do código-fonte e de seus possíveis efeitos”. Além disso, “promover a análise minuciosa dos códigos binários que efetivamente foram executados nas urnas eletrônicas”. Boa parte do relatório diz que não foi possível aos técnicos examinar de forma abrangente e aprofundada todos os sistemas e os códigos-fonte usados nas urnas eletrônicas.
“Apesar da intenção de conferir transparência ao processo, as ferramentas e os procedimentos disponibilizados pela equipe técnica do TSE para o trabalho das entidades fiscalizadoras não foram suficientes para uma análise técnica mais completa”, diz a conclusão do relatório, assinado pelo coronel do Exército Marcelo de Sousa, pelo coronel aviador da Aeronáutica Wagner da Silva, e pelo capitão da Marinha Marcus Andrade.
Em nota publicada pelo TSE após o recebimento e a divulgação do documento, Alexandre de Moraes afirmou que a Corte recebeu o documento "com satisfação". "Assim como todas as demais entidades fiscalizadoras, [o Ministério da Defesa] não apontou a existência de nenhuma fraude ou inconsistência nas urnas eletrônicas e no processo eleitoral de 2022", diz a nota.
Informou ainda que as "as sugestões encaminhadas para aperfeiçoamento do sistema serão oportunamente analisadas" e finalizou afirmando que "as urnas eletrônicas são motivo de orgulho nacional, e que as Eleições de 2022 comprovam a eficácia, a lisura e a total transparência da apuração e da totalização dos votos."
Há várias semanas, o relatório de fiscalização era aguardado com ansiedade, seja por ministros do Supremo Tribunal Federal e do TSE apreensivos com a possibilidade de que fosse usado pelo presidente Jair Bolsonaro (PL) para contestar a eleição do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), seja por apoiadores do atual mandatário que têm se reunido em frente aos quartéis, em capitais e várias cidades do país, para pedir uma intervenção das Forças Armadas para impedir a posse do petista, com base em uma suspeita infundada de fraude.
O envio do documento ao tribunal foi antecipado – inicialmente, o plano da Defesa era encaminhar o relatório 30 dias após a análise de toda a fiscalização realizada. No ofício a Moraes, Paulo Sérgio Nogueira ressalta a importância do processo eleitoral "para a harmonia política e social do Brasil" e, por isso, solicita ao TSE "considerar a urgência na apreciação da presente proposição".
“Relevante risco de segurança”, aponta relatório da Defesa
O relatório da Defesa apontou “relevante risco à segurança” da preparação das urnas num capítulo do relatório que descreve a fiscalização realizada pelos militares na cerimônia de assinatura digital e lacração dos sistemas. Trata-se de uma etapa do processo eleitoral em que os programas elaborados pelo TSE para serem executados são compilados – procedimento no qual os códigos-fonte contendo os comandos são transformados em códigos binários, de modo que o hardware da urna possa executá-los.
A cerimônia e a lacração dos sistemas têm por objetivo demonstrar que os softwares utilizados não sofreram alterações após sua realização. O relatório, porém, diz que, na etapa anterior, de compilação, os computadores que executam o procedimento “acessaram infraestrutura de rede, para obtenção dos código-fonte ou bibliotecas de software de terceiros”. “Na ocasião, não foram informadas as estruturas acessadas ou suas localizações, impossibilitando aferir a correspondência entre o código-fonte inspecionado e o efetivamente compilado”.
Nas entrelinhas, o relatório indica não haver garantia de que o código-fonte examinado pelas entidades fiscalizadoras – as próprias Forças Armadas, técnicos de partidos e outros especialistas – é o mesmo instalado nas urnas na forma de programas executáveis.
“A ocorrência de acesso à rede durante a compilação pode configurar relevante risco de segurança ao processo”, completa o relatório. No documento, as Forças Armadas ainda registram que pediram ao TSE um esclarecimento sobre o assunto com prazo de 10 dias, mas que não houve resposta. O relatório também narra que a Defesa pediu ao TSE acesso a um sistema de controle das versões do código-fonte, para saber se o que foi inspecionado efetivamente corresponde ao que foi instalado. O TSE respondeu, segundo o documento, que “o processo de inspeção não contempla a análise de seu histórico de modificações diárias”.
A atenção das Forças Armadas a esse ponto se relaciona com a preocupação da comunidade científica, de que haveria brechas para que invasores externos acessem sistemas do TSE e consigam inserir códigos maliciosos que alterem o funcionamento regular da urna, para desviar ou anular votos em determinado candidato.
Para contornar esse problema, os militares sugeriram ampliar o escopo de fiscalização, para incluir as infraestruturas externas ao ambiente de compilação – ou seja, rastrear a rede conectada a esses computadores.
Teste pedido por militares não encontra anomalia
Outra parte do relatório é dedicada à fiscalização feita sobre o teste de integridade, tanto em seu modelo tradicional, executado desde 2002; quanto num novo formato, sugerido pelos militares. No primeiro, urnas são retiradas das seções no dia ou na véspera da eleição e são levadas para os Tribunais Regionais Eleitorais (TREs), onde votos previamente preparados por partidos são digitados nas urnas e inscritos em cédulas, para que ao final os dois resultados sejam comparados. No projeto-piloto proposto pelas Forças Armadas, o teste é feito dentro ou perto do local de votação e as urnas são ativadas pela biometria de eleitores reais.
O objetivo foi testar as máquinas em condições normais de uso, para evitar que elas identificassem que estavam sendo testadas e se comportassem de maneira diferente. A suspeita é que poderia ser instalado nas urnas um código malicioso que escapasse ao teste.
Nos dois formatos do teste, as Forças Armadas não identificaram anomalias. Foram testadas urnas de todos os modelos, do mais recente, de 2020, a todos os anteriores, de 2009, 2010, 2011, 2013 e 2015, espalhas por todo o país. “Durante a execução do teste de integridade, as funcionalidades das urnas não apresentaram anomalias”, diz o relatório.
Ainda assim, a Defesa sugeriu que o teste de integridade com biometria seja realizado em todos os estados – e não somente em 19, como neste ano –, e tenha maior participação de eleitores voluntários. A adesão foi considerada baixa: média de 13% dos eleitores de cada seção. O ideal, segundo a Defesa, é que passe dos 82%, de modo a reproduzir mais fielmente uma votação real e, com isso, novamente evitar que urna reconheça que passa por um teste. Uma das sugestões é que os servidores convidem todos os eleitores das seções sorteadas para fazer o teste e não somente parte deles, como ocorreu.
Em outra etapa da fiscalização, os militares conferiram se boletins de urna impressos em 462 seções sorteadas tinham os mesmos dados de seus respectivos arquivos digitais enviados ao TSE para a totalização do resultado. Nesse documento, emitido pela urna ao final da votação, aparecem os votos que cada candidato recebeu. Trata-se da base oficial de contagem. A Defesa concluiu que não houve diferença entre os números impressos nas seções e aqueles divulgados pelo TSE na página de resultados. Ainda assim, constataram que nem todas as seções visitadas afixavam esse documento em local visível e acessível, como determina a lei.
Relação tensa entre TSE e Forças Armadas começou em 2021
A entrega do relatório nesta quarta encerra uma relação tensa, iniciada em 2021, entre as Forças Armadas e o TSE. Tradicionalmente, os militares não participam da fiscalização do sistema de votação, e sempre colaboraram nas eleições transportando urnas para locais remotos e garantindo a segurança da votação em áreas de perigo.
No ano passado, porém, após a rejeição, pelo Congresso, da proposta do voto impresso – bandeira histórica de Bolsonaro, mas que sempre sofreu grande oposição por parte de servidores e ministros do TSE – o então presidente da Corte, Luís Roberto Barroso, resolveu convidar a Defesa para ser uma das entidades fiscalizadoras das urnas eletrônicas.
A pasta passou a fazer parte de um grupo de instituições e entidades que sempre participaram das auditorias internas do sistema, controladas pelos técnicos do tribunal, mas que sempre chancelaram a integridade das urnas. Alinhados às suspeitas de Bolsonaro, os técnicos militares passaram a esquadrinhar a fundo o sistema, apresentando uma série de questionamentos aos técnicos do TSE, cujas respostas – apontando supostos erros de conceito e cálculos nas perguntas – incomodaram os oficiais encarregados da fiscalização.
O estranhamento entre TSE e Defesa chegou ao ápice neste ano, quando Barroso disse, num evento acadêmico no exterior, que os militares estariam sendo orientados a atacar o processo eleitoral. Em reposta, o ministro da Defesa, Paulo Sérgio Nogueira, disse que a declaração, sem provas, era “irresponsável” e uma “ofensa grave”. Outro incômodo veio depois, quando Edson Fachin, que assumiu a presidência do TSE em fevereiro, disse que as eleições cabiam às “forças desarmadas”, declaração vista como provocativa, ao lado de outras indiretas contra Bolsonaro.
A partir de agosto, quando Alexandre de Moraes passou a comandar o TSE, a relação deu sinais de melhora. O ministro passou a receber Nogueira para reavaliar sugestões foram apresentadas para melhorar a fiscalização das urnas, mas haviam sido rejeitadas na gestão Fachin.
Com maior capacidade de diálogo com a caserna, Moraes acolheu a principal recomendação: realizar o teste de integridade – pelo qual urnas são retiradas das seções no dia da eleição para verificar se computam corretamente os votos – com a biometria de eleitores e perto dos locais de votação. A ideia era aproximar o teste ao máximo possível de uma votação real. Das 641 urnas testadas – um número recorde – 58 foram submetidas ao modelo proposto pelos militares; nos dois casos, segundo o TSE, não foram detectadas discrepâncias nos resultados.