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No comando da Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional (CRE) do Senado há três semanas, o senador Renan Calheiros (MDB-AL) está pautando no colegiado uma série de temas com o objetivo de investigar posturas de militares na condução da pandemia e nos atos de vandalismo do 8 de janeiro. O senador emedebista, aliado do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), também quer anular medidas em favor do porte de armas, adotadas pelo ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), além de ter auxiliado o Planalto a tirar de postos-chave os diplomatas ligados ao antigo mandatário.
Nas três primeiras sessões que presidiu até agora, Calheiros foi questionado por seus pares devido ao "rumo enviesado" dos trabalhos. O senador Esperidião Amin (PP-SC), que antecedeu Calheiros no comando do colegiado, disse que "é notória a lista de assuntos estranhos que foi trazida pelo presidente [Renan Calheiros à comissão]". "Eles refletem conflitos políticos nacionais e, por isso, deveriam ser debatidos no plenário do Senado", observou.
Calheiros descartou qualquer revanchismo contra militares e aliados de Bolsonaro. Disse que colabora com o plano de Lula para as áreas de defesa e diplomacia e que a “vigilância pela democracia” está entre as atribuições da comissão. Na prática, contudo, ele resgatou propostas da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid, da qual foi relator, e a ela adicionou outras. Nesse sentido, a prioridade é tipificar crimes de “genocídio contra a humanidade”.
Recolocar a pandemia na agenda política é parte da estratégia de Calheiros para creditar erros a Bolsonaro e militares. Não por acaso, o colegiado que preside deverá rediscutir a participação do general Eduardo Pazuello, eleito deputado federal pelo PL-RJ, à frente do Ministério da Saúde. Além disso, polêmicas envolvendo oficiais, como o episódio das joias presenteadas ao ex-presidente pelo governo saudita, com envolvimento do almirante Bento Albuquerque, então ministro de Minas e Energia, e o ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, tenente-coronel Mauro Cid, serão avaliadas.
Logo na primeira reunião deliberativa à frente da CRE, Calheiros mandou recado direto aos militares, lembrando que o artigo 142 da Constituição é explícito ao vincular as Forças Armadas à defesa do Estado Democrático de Direito. No que se refere às relações externas, suas falas repetem a crítica recorrente de aliados de Lula de que a gestão Bolsonaro tornou o país “pária mundial”. “O Brasil voltou ao centro das atenções. O mundo estava com saudades da gente”, discursou Calheiros.
Para efetivar o que considera uma reconfiguração da diplomacia brasileira, a primeira tarefa do presidente da CRE foi identificar, em parceria com o Itamaraty, os últimos diplomatas alinhados ao governo anterior e que ainda estavam lotados em postos avançados. Os afastamentos na sequência envolvem representações em embaixadas, consulados e organismos internacionais mundo afora.
Nessa toada, o Planalto sustou 16 nomes indicados por Bolsonaro para assumir vagas no exterior e que seriam submetidos ao crivo da comissão, enquanto prepara outra lista. Em reforço a essa "limpa", Calheiros quer criar um modelo para agilizar o processo legislativo de escolha de diplomatas, de modo a garantir maior alinhamento político.
Oposição critica presença de temas estranhos ao colegiado
Diante da reorientação de foco da CRE, o senador Esperidião Amin (PP-SC) pediu que a comissão tenha acesso a dados do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) de 2 a 8 de janeiro, período que antecede e culmina nos atos em Brasília. Os senadores da oposição exigiram também informações do governo Lula sobre a revogação da dispensa dos pedidos de visto do Brasil a visitantes de Austrália, Canadá, Estados Unidos e Japão, com impactos sobre o turismo.
“Quero ouvir dos ministros as razões da mudança, no papel de parlamentar oposicionista e de representante de um estado que recebe grande número de turistas estrangeiros”, disse Carlos Portinho (PL-RJ).
Mas o foco especial do senador alagoano está mesmo nos assuntos internos. Na quinta-feira passada (23), os membros da CRE, presidida na sessão pelo vice Cid Gomes (PDT-CE), aprovaram o plano de trabalho do colegiado para o biênio 2023-2024, proposto por Renan Calheiros.
Embora o texto tenha evitado críticas explícitas ao governo anterior e aos militares, destacou temas da diplomacia da gestão Lula, como conservação ambiental e relações com países emergentes, e evidenciou a intenção de avançar no debate dos marcos jurídicos dos setores de defesa e de inteligência.
Neste sentido, o plano cita três documentos elaborados pela Comissão de Controle das Atividades de Inteligência do Congresso presentes no Projeto de Decreto Legislativo (PDL) 1.127/2021, já aprovado pelo Senado: a Política Nacional de Defesa (PND), a Estratégia Nacional de Defesa (END) e o Livro Branco de Defesa Nacional (LBDN).
Calheiros propõe a realização periódica de audiências públicas para tratar do sistema brasileiro de inteligência e do papel constitucional das Forças Armadas, com possibilidade até de criar subcomissões para tratar desses temas específicos.
Além dos requerimentos habituais para a realização de audiências públicas com os ministros da Defesa, José Múcio, e das Relações Exteriores, Mauro Vieira, a comissão também aprovou um convite para o ministro da Casa Civil, Rui Costa, e o diretor-adjunto da Agência Brasileira de Inteligência (Abin), Alessandro Moretti, a fim de obter informações sobre o suposto uso, durante o governo Bolsonaro, de um programa secreto para monitorar ilegalmente a localização de pessoas por meio de seus celulares.
Uma forma encontrada por Calheiros para atuar mais firmemente na área de inteligência é revitalizar a Comissão Mista de Controle das Atividades de Inteligência (CCAI) formada pelos presidentes das comissões de Relações Exteriores de Câmara e Senado. Este ano ela é presidida pelo deputado Paulo Alexandre Barbosa (PSDB-SP) e tem o senador como vice e relator. Em 2024, eles trocam de cargo.
Calheiros quer que CRE e CCAI investiguem juntas um suposto monitoramento irregular de cidadãos pela Abin, além de propor a reestruturação do órgão. No início do mês, Lula transferiu a agência do GSI para a Casa Civil, por estar incomodado com uma "militarização" dela no governo de Jair Bolsonaro.
Congresso tem pouco espaço para flexibilizar porte de armas
Renan Calheiros também definiu de imediato que a CRE atuará em favor de controle mais rígido sobre a circulação de armas no país. Em 16 de março, na primeira reunião do colegiado após ele ser eleito presidente, o senador anunciou a criação de grupo de trabalho para estudar o controle de armas nas mãos de colecionadores, caçadores e atiradores desportivos (CACs).
O decreto antiarmas editado por Lula no dia da posse já gerou no Congresso quase duas dezenas de projetos de lei ou decretos legislativos. A decisão do presidente suspende os registros para a aquisição e transferência de armas e de munições de uso restrito a CACs e particulares. O número de armas cadastradas comuns despencou no período.
Assessores jurídicos da oposição na Câmara e no Senado admitem ainda não terem encontrado a melhor forma para reverter efeitos do decreto do governo e outras medidas que colocaram fim à flexibilização do governo anterior. Como o Supremo Tribunal Federal (STF) deu sinal verde à revogação de atos regulamentares de Bolsonaro para dar mais acesso à compra e ao porte de armas, as chances de reação efetiva ficaram restritas.
“De fato, o texto do Estatuto do Armamento Lei 10.826/2003 dá margem para interpretações e para ser ainda mais restritivo. O governo atual deve aproveitar-se disso para endurecer as regras”, avalia Fidelis Fantin, consultor de Orçamento da Câmara dos Deputados e estudioso da regulamentação armamentista. Segundo ele, para a oposição resta apresentar projeto de lei (PL) para resgatar a flexibilização.
“O decreto legislativo poderia até servir para sustar decreto ou portaria do governo visto como abusivo, mas não me parece ser este o caso agora”, concluiu. Recorrer ao Judiciário também não lhe parece alternativa viável. O ideal para a oposição seria, a seu ver, aperfeiçoar o PL 3.722/2012, que regulamenta o porte de armas no país, além de revogar o Estatuto do Armamento. “Quem tem arma hoje está muito desconfortável, podendo ser facilmente posto em situação de ilegalidade, a exemplo de quando armas legais se tornaram ilegais em razão do Estatuto”, sublinha Fantini.
No campo jurídico, o especialista avalia que poderia haver um debate profundo sobre as contradições legais de criminalizar alguém apenas por ter determinado objeto, sem ter cometido crime de fato.
“Criminalizar alguém sem a caracterização de ação que cause danos a terceiros é estarrecedor. Trata-se de abordagem eminentemente ideológica, sem racionalidade”, argumenta. Por fim, ele duvida que o governo consiga cumprir a promessa de recadastrar todas armas, pois há itens ignorados por herdeiros.