As medidas de isolamento social foram adotadas no Brasil como medida para achatar a curva de disseminação do novo coronavírus e evitar o colapso da rede de saúde. Parte dessa estratégia previa a aquisição de mais equipamentos, como respiradores para leitos de UTI. Mas, com o agravamento da pandemia no país e no mundo, não tem sido uma tarefa simples obtê-los.
O Ministério da Saúde cancelou a compra de 15 mil respiradores que viriam da China por falta de entrega no prazo pré-estabelecido. Apostou, então, na indústria nacional e firmou três contratos para adquirir 14.100 respiradores, com entrega escalonada de abril a julho. Mas só recebeu até agora 487 aparelhos — o equivalente a um quarto do que deveria ter sido entregue no mês passado.
Os respiradores são essenciais para o tratamento de casos graves do coronavírus, e são fundamentais no atual contexto de agravamento da pandemia no país. A dificuldade em obtê-los foi apontada pelo ministro da Saúde, Nelson Teich, em reunião com a Comissão Externa de Ações contra o Coronavírus da Câmara dos Deputados, da qual ele participou por videoconferência na quinta-feira (7).
No encontro, Teich falou da dificuldade em negociações para trazer os aparelhos de fora e mencionou a produção nacional, além de falar sobre autonomia da preparação dos estados para enfrentarem realidades distintas em fases diferentes da pandemia.
"Tudo o que nós falamos aqui não é um problema Brasil, é um problema mundo, e nós temos que entender o contexto em que nós estamos, o contexto em que vivemos para que as nossas estratégias não permitam que aconteça o que aconteceu, por exemplo, com respiradores e EPIs", declarou.
Teich já havia admitido em pronunciamento – 11 dias após assumir a pasta – que a situação no país é preocupante, esclarecendo que o número de mortes elevado não era resultado apenas de um acúmulo de notificações, mas sim “um problema, com uma curva que vem crescendo com o agravamento da situação”.
Essa declaração foi feita no dia 28 de abril, quando o país registrou 474 mortes em um dia. O quadro da pandemia piorou rapidamente: o Brasil registra mais de 600 mortes diárias há três dias consecutivos, com cerca de 9,1 mil mortos e 135,1 mil infectados. No Amazonas, o sistema de saúde já colapsou na capital Manaus e há estados, como Pará e Maranhão, decretando lockdown em algumas cidades ou regiões para tentar frear a disseminação da Covid-19. Nesta sexta-feira (8) foi a vez de Fortaleza. O sistema de saúde da capital cearense também está próximo de colapsar.
Cronograma de entrega dos respiradores está atrasado
As medidas duras de isolamento se mostram necessárias porque não há regularidade na entrega dos equipamentos, como os respiradores. O Ministério da Saúde têm três contratos ativos com empresas brasileiras, todos assinados entre 7 e 20 de abril – dois deles, portanto, foram firmados ainda durante a gestão de Luiz Henrique Mandetta na pasta.
Para produzir os 14.100 respiradores foram contratadas as empresas Magnamed (6.500), Intermed (4.300) e KTC (3.300) ao custo de R$ 658,5 milhões. A Gazeta do Povo verificou todos os contratos, que apresentam cronograma de entrega mensal. Em abril, de acordo com os documentos, deveriam ter sido entregues 2.240 aparelhos, mas a pasta só recebeu e distribuiu 487 respiradores até o momento.
Questionado sobre a razão do atraso e que providências seriam tomadas para o cumprimento do contrato, o ministério respondeu, em nota, que a produção tem “prazo de entrega até 90 dias” e que “embora os contratos tenham sido firmados diretamente com três empresas brasileiras, mais de 15 instituições estão envolvidas, o que inclui fabricantes processadores, instituições financeiras e empresas de alta tecnologia, entre outras”. “A distribuição dos equipamentos tem ocorrido conforme a capacidade de produção da indústria nacional”, diz a nota.
Essa força-tarefa de empresas unidas para produção de respiradores tem explicação: o Brasil tem quatro fábricas desse tipo de equipamento. A produção anual delas, em períodos normais, é de cerca de 10 mil unidades por ano. Agora, tem um trimestre para produzir os 14,1 mil aparelhos.
De fato, todos os contratos mencionam o prazo de entrega de até 90 dias, assim como estabelecem o cronograma de entrega mensal. O documento 120/2020, firmado com a Intermed, prevê a compra de 6.500 respiradores, ao custo de R$ 322,5 milhões. Desses, 1.940 seriam entregues em abril, 2.590 em maio e 1.970 em junho. Com a Intermed, foi acordada a compra de 4.300 equipamentos, ao custo de R$ 258 milhões, no contrato 137/2020. Seriam entregues 300 aparelhos em abril, 1.500 em maio e 2.500 em junho.
Já com a KTK – contrato 145/2020, já assinado na gestão de Teich na pasta, foram adquiridos 3.300 respiradores ao custo de R$ 78 milhões. O cronograma de entregas prevê 1.150 aparelhos em maio, 1.650 em junho e 500 em julho.
Sem saber quando os novos equipamentos chegarão, o ministério já distribuiu os 487 respiradores que possuía para dez estados. De acordo com a pasta, foram enviados para Amazonas (90), Pará (80), Ceará (75), Amapá (65), Rio de Janeiro (60), Pernambuco (50), Paraíba (20), Paraná (20), Santa Catarina (17) e Espírito Santo (10).
Nenhum valor foi pago aos chineses, diz ministério
Em relação ao contrato firmado com a empresa chinesa Santos - Produtos do Brasil (MACAU) Companhia de Investimento e de Comércio, para a aquisição de 15 mil respiradores ao custo de R$ 1 bilhão, a pasta esclarece que nenhum valor foi pago e “como as entregas não foram feitas o contrato deverá ser rescindido”.
O contrato 106/2020, assinado em 3 de abril, previa prazo máximo de entrega de 30 dias. O ministério informou a dissolução do negócio em matéria publicada no site da pasta no dia 26 de abril, que menciona que a compra “precisou ser cancelada pois o fornecedor não conseguiu os aparelhos”.
O Brasil tinha, em fevereiro, 65.411 respiradores/ventiladores, sendo que 46.663 estão disponíveis no SUS. Aproximadamente 3,6 mil desses aparelhos não estavam funcionando por problemas como a falta de manutenção.
Segundo o ministério da Saúde, a pasta está apoiando estados e municípios para o fortalecimento do SUS e já repassou R$ 5,3 bilhões “para organização da atenção hospitalar em todo o país para resposta à pandemia de coronavírus”.
A nota ainda diz que o ministério já habilitou 2.644 leitos de UTI, com respiradores, em 91 cidades, além da locação e distribuição de 340 leitos de UTI de instalação rápida, com respiradores, para 11 estados. Entre os contratos firmados pela pasta desde o início da crise, há documentos específicos que estabelecem os critérios de compras dos chamados “kits UTIs”, já que as unidades intensivas exigem uma gama maior de equipamentos do que um leito comum.
Acesso aos respiradores provoca disputa entre União, estados e municípios
Há uma disputa em curso entre União e demais entes por respiradores. Isso ocorre porque, diante da gravidade do quadro da saúde pública, a Lei 13.979/2020 prevê que o Ministério da Saúde pode requisitar administrativamente equipamentos e insumos que são necessários para o enfrentamento do coronavírus. Os respiradores estão nessa lista. “A medida é temporária e busca regular o sistema, garantindo que todos os estados sejam abastecidos conforme o princípio constitucional da equidade”, informou em nota a pasta.
Uma disputa que já ocorreu foi entre o governo federal e o Maranhão. O estado montou uma "operação de guerra" para conseguir comprar 107 respiradores da China. O governo do estado já havia sido atravessado em três tentativas de adquirir os aparelhos – inclusive pelos Estados Unidos, que foram acusados de “pirataria moderna” por oferecerem mais dinheiro para compras feitas por outros países e ameaçarem reter cargas com insumos médicos que passassem pelo país.
Para levar os equipamentos para o estado, o governo fez a compra por intermédio da Vale e de uma empresa local, o Grupo Mateus, além de usar bons contatos comerciais no país. Os respiradores foram embarcados na China e fizeram uma escala na Etiópia, de onde a carga seguiu para o Brasil.
O avião cargueiro chegou na madrugada a Guarulhos (SP) e transferiu os equipamentos para outra aeronave, que foi ao Maranhão. O desembaraço na aduana só foi feito no destino final. A Receita Federal alegou que a operação foi ilegal e que abriria um processo contra o estado.
Além desse episódio, a Saúde chegou a confiscar 68 respiradores comprados pelo estado para uso em UTI. Após a compra, feita em março, a pasta requisitou toda a produção da fábrica Intermed, que também assinou contrato com a União. O Supremo Tribunal Federal (STF), então, impediu o confisco e determinou que os equipamentos fossem entregues ao estado.
Não é o único caso. A prefeitura do Rio de Janeiro foi à Justiça e obteve uma liminar garantindo o recebimento de 80 respiradores que haviam sido adquiridos em dezembro de 2019 da empresa Magnamed – uma das contratadas pelo governo federal. A prefeitura alega que a empresa venceu um pregão presencial e que receberia cerca de R$ 4 milhões por 80 respiradores portáteis, adulto e pediátrico.
A empresa negava ter contrato com o município. Em nota, a Magnamed alegou que “não há contrato assinado entre a empresa e o município do Rio de Janeiro” e que desde 19 de março “sua produção e equipamentos em estoque, por determinação do ofício nº 43 do Ministério da Saúde lastreado na Lei 13.979 de fevereiro de 2020, estão direcionados ao governo federal (...). O Ministério da Saúde fará a distribuição dos equipamentos em acordo com seu planejamento”.
Em Pernambuco, o governo do estado recebeu no fim de abril 35 respiradores que havia comprado, mas não havia sido entregue. A Justiça determinou a busca e apreensão na sede da empresa Intermed, em Cotia (SP). A empresa havia alegado que estava impedida de efetuar a entrega, pois o material teria sido requisitado pelo governo federal.
O Ministério da Saúde respondeu, através de ofício, que esses aparelhos não foram objeto de requisição administrativa feita pela União. A busca e apreensão dos equipamentos foi determinada pelo juiz Teodomiro Noronha Cardoso, da 3ª Vara da Fazenda Pública do Recife, atendendo à ação impetrada pela Procuradoria-Geral de Pernambuco.
Respiradores são mal distribuídos
Uma pesquisa do IBGE, divulgada nesta semana, ajuda a dimensionar o tamanho do problema. O instituto analisou a distribuição dos respiradores em unidades de saúde públicas e privadas do país. A situação é de total discrepância.
De um lado, estão os estados com equipamentos em um número razoável na comparação com o tamanho de sua população. É o caso do Distrito Federal, que tem índice de 63 respiradores por 100 mil habitantes, seguido pelo Rio de Janeiro (42), São Paulo (39), Mato Grosso (38) e Espírito Santo (35).
Na outra ponta, estados do Norte e Nordeste são os menos equipados, na comparação entre aparelhos a cada 100 mil habitantes: Amapá (10), Piauí (13), Maranhão (13), Alagoas (15) e Acre (16).
O IBGE também avaliou regiões de atendimento de saúde com mais de 500 mil habitantes. Em Santarém, no Pará, o índice é de sete aparelhos por 100 mil habitantes. Há casos piores, como a região de Governador Nunes Freire, no Maranhão, que soma 149 mil habitantes e nenhum respirador disponível.
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